segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

João Bosco e Zizi Possi | Vida Noturno

Urina

A quem escolhe o nome das coisas, falta um bocado de bom senso. Há nomes redondamente equivocados: nomes bonitos para coisas feias, nomes feios para coisas bonitas.
Borboleta” é um bom exemplo. Palavra que não tem nada de leve, nada de suave. “Borboleta” devia ser o nome de alguma coisa que se usa nas obras, pra apoiar os andaimes. Andaimes, por sinal, que não andam. Aliás, andar é tudo o que eles não podem fazer.
Fronha” também é péssimo. Quem quer encostar a cara numa fronha? Seria muito melhor deitar na filipina, na filigrana.
Meia”. “Meia”? Não só não é meia, nem é só inteira. São duas inteiras. Um par de inteiras, não um par de meias.
Mas nenhuma escolha foi mais infeliz que “urina”.
Urina. Repita: urina. Em voz alta: urina.
Urina é lindo! Urina não podia ser resíduo, excremento! Não!
Urina… Urina soa como pequenos cristais arrastados pela brisa.
Marina que veio de Urano. E que ri.
Ri a menina Urina.
Quem escolheu o nome das coisas me roubou a Urina.
Filha de olhinhos apertados por bochechas coradas, cor de sol.
Me roubou essa menina, Urina, luz dos meus olhos.
Urina. Urina. Pequenos cristais que se afastam.
Adeus, Urina, pequenina que nunca terei.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

Epifania

Você conversa com uma tia, num quarto.
Ela frisa a saia com a unha do polegar e exclama:
Assim também, deus me livre’.
De repente acontece o tempo se mostrando,
espesso como antes se podia fendê-lo aos oito anos.
Uma destas coisas vai acontecer:
um cachorro late,
um menino chora ou grita,
ou alguém chama do interior da casa:
O café está pronto’.
Aí, então, o gerúndio se recolhe
e você recomeça a existir.

Adélia Prado

Calvin e Haroldo

Estranho

Se é estrangeiro no cosmos quem desconhece o que nele há, não menos estranho é quem não sabe o que nele ocorre. É fugitivo quem foge da razão social. É cego quem fecha os olhos da compreensão. É pobre quem carece de outro e não possui tudo que é útil para a vida. É um abscesso no cosmos quem se afasta e se desconecta da razão da nossa natureza comum por se descontentar com o desenrolar dos fatos, pois a mesma ordenou você e os desenrolou. Amputa-se do estado quem secciona sua própria alma daquela dos animais racionais, as quais são uma.

Marco Aurélio, in Meditações do Imperador Marco Aurélio: Uma Nova Tradução

Azeite na roldana

Transpus, a porta da igreja e mergulhei na penumbra fresca e perfumada.
Estava deserta. Brilhavam suavemente os candelabros de bronze; a iconóstase finamente trabalhada ocupava todo o fundo, representando uma parreira de ouro carregada de uvas. As paredes, de alto a baixo, recobriam-se de afrescos meio apagados: horrendos ascetas esqueléticos, padres da igreja, a longa paixão de Cristo, anjos robustos e ferozes, com os cabelos presos por fitas largas e desbotadas.
Bom no alto, na abóbada, a Virgem de braços estendidos, implorante. A luz trêmula de uma pesada lamparina de prata acesa diante dela lambia e acariciava molemente seu longo rosto atormentado. Jamais esquecerei aqueles olhos dolorosos, a boca franzida e redonda, o queixo robusto e voluntarioso. Dizia comigo: eis a mãe completamente satisfeita, perfeitamente feliz, mesmo na sua dor mais torturante, pois ela sente que de suas entranhas perecíveis saiu algo de imortal.
Quando deixei a igreja, o sol já se escondia. Sentei-me à sombra da laranjeira, feliz. A cúpula coloria-se de rosa, como no romper da aurora. Retirados em suas celas, os monges repousavam.
Esta noite não dormiriam, precisavam ganhar forças. À tardinha Cristo começaria a subir o Gólgota, e iriam subir com ele. Duas porcas pretas, de tetas rosadas, cochilavam embaixo de uma alfarrobeira.
Pombos se amavam nos telhados.
Pensei: até quando poderei viver e sentir esta suavidade da terra, do ar, do silêncio e do perfume da laranjeira em flor? Um ícone de São Baco que contemplara na igreja tinha feito meu coração transbordar de felicidade. Tudo aquilo que me comove o mais profundamente: a unidade de vontade, a perseverança no esforço, se descobriu de novo diante de mim. Bendito seja esse pequenino e gracioso ícone do efebo cristão, com os cabelos crespos caindo em volta do rosto, em cachos pretos. Dionísio, o belo Deus do vinho e do êxtase, e São Baco misturavam-se em mim, tomando a mesma feição. Sob as folhas da vinha e sob o hábito de monge palpitava o mesmo corpo fremente, queimando de sol — a Grécia.
Zorba voltou.
O Higumeno chegou — disse-me precipitadamente; conversamos um pouco, está duro na queda: disse que não quer ceder a floresta por um pedaço de pão; quer mais, o safado, mas eu vou conseguir.
Duro na queda? mas nós não estamos de acordo?
Não se meta em nada, patrão, por favor! — suplicou Zorba. — vai estragar tudo. Você fala do antigo acordo, que já está enterrado! Vamos ter a floresta pela metade do preço!
Mas que está você tramando ainda, Zorba?
Não se preocupe, isso é cá comigo. Vou pôr azeite na roldana e ela vai rodar, morou?
Mas como? Não entendo nada.
Porque eu gastei mais do que devia em Cândia, é isso! Porque Lola me comeu, isto é, lhe comeu um bocado de erva. Acha que me esqueci? A gente tem amor-próprio, que é que você pensa? Nada de manchas na minha reputação! Eu gastei, eu pago. Fiz as contas: Lola custou sete mil dracmas, que eu vou tirar da floresta. O Higumeno, o mosteiro, a Santa Virgem, todos vão pagar por Lola. É este o meu plano, lhe agrada?
De jeito nenhum. Em que é que a Virgem é responsável por suas prodigalidades?
É responsável, é mesmo mais que responsável. Ela fez o seu filho, o bom Deus. O bom Deus fez a mim, Zorba, e me deu os instrumentos que você sabe. E os danados desses instrumentos me fazem perder a cabeça e abrir a bolsa quando encontro o bicho mulher. Morou? Então, Sua Graça é responsável, e mais que responsável. Que pague!
Não gosto disso, Zorba.
Isso é outra questão, patrão. Vamos primeiro salvar as sete notinhas, depois a gente discute. Beije-me, meu pequeno, depois serei novamente sua tia...”. Você conhece a canção?
O gordo padre hospitaleiro apareceu:
Queiram entrar — disse, numa voz melosa de eclesiástico, — o jantar está servido.
Descemos ao refeitório, uma grande sala com bancos e mesas compridas e estreitas. Cheirava a azedo e azeite rançoso. Um afresco ao fundo representava a Ceia. Os onze discípulos fiéis, amontoados como carneiros em torno de Cristo e, em frente, de costas voltadas para o espectador, sozinho, um ruivo de testa corcovada e nariz aquilino: Judas, o traidor. E Jesus só tinha olhos para ele.
Estamos na quaresma — disse, — e vocês me desculpem: nem azeite nem vinho, embora se trate de viajantes. Sejam bem-vindos!
Fizemos o sinal da cruz; servimo-nos em silencio, de azeitonas, cebolas verdes, favas frescas e salva. Mastigávamos lentamente, como coelhos.
Assim é a vida cá embaixo — disse o padre hospitaleiro, — uma crucificação, uma quaresma. Mas paciência, irmãos, paciência: um dia virá o reino dos céus.
Tossi. Zorba me deu uma pisadela, querendo dizer: “Cale-se”.
Eu vi o padre Zaharia... — falou Zorba, para mudar o assunto.
Sobressaltou-se o padre hospitaleiro.
Será que este possesso lhe disse alguma coisa? — perguntou preocupado. — está com os sete demônios, não lhe dê ouvidos! Sua alma é impura e ele vê impurezas em tudo.
O sino dobrou, lúgubre, a vigília. O padre hospitaleiro persignou-se e saiu da mesa.
Já me vou — disse ele. — começa a paixão de Cristo, vamos carregar a cruz com ele. Por essa noite, vocês podem descansar, estão fatigados da caminhada. Mas amanhã às matinas...
Seus porcos! — resmungou Zorba, entre dentes, mal o monge saiu. — porcos! Mentirosos! Mulas! Jumentos!
Que foi, Zorba! Zaharia disse a você alguma coisa?
Deixe, patrão, não se incomode; se não quiser assinar, vou mostrar a eles com que lenha eu me aqueço!
Chegamos à cela que nos tinham preparado. A um canto, um ícone representando a Virgem, de rosto colado ao do filho, os grandes olhos cheios de lágrimas.
Zorba balançou a cabeça.
Sabe por que ela chora, patrão?
Não.
Por que ela vê. Eu cá, se fosse pintor de ícone, desenhava a Virgem sem olhos, sem orelhas, sem nariz. Por que tenho pena dela.
Estendemo-nos nas duras camas. As traves recendiam a cipreste; pela janela aberta entrava o doce bafo da primavera, carregado dos perfumes das flores. De quando em quando, vinham do pátio, como rajadas de vento, as melodias fúnebres.
Um rouxinol se pôs a cantar perto da janela e logo um outro, um pouco mais longe, e outro ainda. A noite transbordava de amor.
Não conseguia dormir, o canto do rouxinol se fundiu com os lamentos de Cristo e eu lutava, entre as laranjeiras em flor, para subir, também, ao Gólgota, guiando-me pelas grossas gotas de sangue. Na noite azul de primavera via o suor frio de Cristo porejar em todo o seu corpo pálido e enfraquecido. Via-o de mãos estendidas e tremulas, parecendo suplicar, implorar. O pobre povo da Galileia se apressava a segui-lo, gritando: “Hosana! Hosana!” tinham as mãos cheias de palmas e estendiam os mantos sob seus passos. Ele olhava para os que amavam, mas nenhum deles adivinhava o seu desespero. Só ele sabia que caminhava para a morte. Sob as estrelas, chorando, silencioso, consolava seu pobre coração humano, cheio de pavor: “Como o grão de trigo, meu coração, deves também descer sob a terra e morrer. Não tenhas medo. Senão, como poderás tornar-te espiga? Como poderás nutrir os homens que morrem de fome?”
Mas dentro dele, tremia o coração de homem, palpitava e não queria morrer… 
[…]

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

domingo, 30 de janeiro de 2022

Ordinarius | Dois pra lá dois pra cá (João Bosco/Aldir Blanc)

O álbum branco | 9

Na Faculdade Estadual de São Francisco, naquela manhã, o vento soprava a chuva fria em rajadas sobre os gramados lamacentos e contra as janelas iluminadas das salas vazias. Dias antes tinha havido incêndios, aulas invadidas e um confronto com a Unidade Tática da polícia da cidade. Nas semanas seguintes, o campus ia se tornar o que muitas pessoas ficariam contentes de chamar de “campo de batalha”. A polícia, o gás lacrimogêneo e as prisões ao meio-dia se tornariam rotina na faculdade, e toda noite os combatentes recapitulariam o dia deles na televisão: as ondas de estudantes avançando, a comoção no canto do enquadramento, os cassetetes reluzindo, o instante de câmera trêmula que servia para sugerir a qual preço a filmagem tinha sido obtida; então um corte para a previsão do tempo. No começo houvera o indispensável “problema”, a suspensão de um professor de 22 anos que, por acaso, também era ministro da Educação do Partido dos Panteras Negras, mas esse problema, como a maioria, logo havia deixado de ser o objetivo até mesmo na mente dos participantes mais idiotas. A desordem era o objetivo.
Eu nunca antes tinha estado em um campus nessa situação, perdera até mesmo Berkeley e Columbia, e suponho que fui à Estadual de São Francisco esperando encontrar algo diferente do que encontrei. Em certo sentido, nada trivial, o cenário estava errado. A própria arquitetura das faculdades estaduais da Califórnia tende a negar ideias radicais. Em vez disso, reflete uma visão burocrata de bem-estar progressista, modesta e esperançosa. Enquanto eu andava de um lado para outro do campus naquele dia e nos dias seguintes, todo o dilema da Estadual de São Francisco — a politização gradual, os “problemas” aqui e ali, as “quinze demandas” obrigatórias, a agitação contínua da polícia e dos cidadãos indignados — parecia cada vez mais fora do tom, um caso de enfants terribles e conselho administrativo colaborando inconscientemente em uma fantasia ilusória (Revolução do Campus) e a levando a cabo a tempo do noticiário das seis horas. “Reunião do comitê de porpaganda no Redwood Room”, lia-se em uma anotação rabiscada na porta do refeitório certa manhã; apenas alguém muito desesperado responderia com tanta força um bando de guerrilheiros que não só anunciavam a própria reunião no quadro de avisos do inimigo como pareciam alheios à ortografia, e também ao significado, das palavras que usavam. “Hayakawa Hitler” era como alguns docentes começaram a chamar S.I. Hayakawa, o semanticista que se tornara o terceiro reitor da faculdade em um ano e tinha se exposto a um descontentamento considerável ao tentar manter o campus aberto.
Eichmann”, Kay Boyle gritara para ele em uma manifestação. Com esses poucos e amplos traços estava sendo pintado o outono de 1968 no campus de tons pastel da Estadual de São Francisco.
O lugar simplesmente nunca parecia sério. As manchetes eram sombrias naquele primeiro dia, a faculdade fora fechada “por tempo indeterminado”, tanto Ronald Reagan quanto Jesse Unruh ameaçavam represálias. Ainda assim, a atmosfera dentro do prédio da administração era a de uma comédia musical sobre a vida universitária.
De jeito nenhum a gente vai abrir amanhã”, informavam secretárias àqueles que telefonavam. “Vá esquiar, divirta-se.”
Militantes negros em greve apareciam para conversar com os reitores; radicais brancos em greve fofocavam nos corredores.
Sem entrevistas, sem imprensa”, anunciou um estudante líder da greve ao entrar no escritório do reitor, onde eu estava. No momento seguinte, ele ficou irritado porque ninguém tinha lhe dito que uma equipe de filmagem do Huntley-Brinkley estava no campus.
A gente ainda pode entrar nessa”, disse o reitor com calma.
Todo mundo parecia unido em uma camaradagem um tanto festiva, em um jargão em comum, em um senso compartilhado de momento: o futuro não era mais árduo e indefinido, era imediato e programático, radiante com a perspectiva dos problemas a serem “endereçados”, dos planos a serem “implementados”. Era um consenso que os confrontos podiam representar “uma evolução muito saudável”, que talvez uma paralisação fosse necessária para “algo ser feito”. O clima, como a arquitetura, era o funcional de 1948, um modelo de otimismo pragmático.
Talvez Evelyn Waugh pudesse ter descrito isso do jeito certo: Waugh era bom com cenas de autoilusão elaborada, cenas de pessoas absorvidas por jogos estranhos. Aqui, na Estadual de São Francisco, só os militantes negros podiam ser levados a sério. Para todos os efeitos, eles estavam escolhendo as partidas, ditando as regras e extraindo o que podiam daquilo que, para todos os outros, parecia apenas uma agradável fuga da rotina, da ansiedade institucional, do tédio do calendário acadêmico. Enquanto isso, os administradores podiam falar dos cursos. Enquanto isso, os radicais brancos, que não tinham nada a perder, podiam se ver como guerrilheiros urbanos. Esse jogo na Estadual de São Francisco era bom para todo mundo, e as virtudes peculiares dele nunca ficaram tão claras para mim quanto na tarde em que participei de uma reunião de cinquenta ou sessenta membros da Students for a Democratic Society. Eles tinham convocado uma coletiva de imprensa para mais tarde naquele dia, e agora discutiam “exatamente qual deveria ser o formato da coletiva de imprensa”.
Tem que ser nos nossos termos”, advertiu alguém. “Porque eles vão fazer perguntas bem capciosas, vão fazer perguntas.”
Mande submeterem todas as perguntas por escrito”, sugeriu outra pessoa. “A União dos Estudantes Negros faz isso e é muito bem-sucedida. Eles simplesmente não respondem nada que não queiram responder.”
Boa. Não caiam na armadilha.”
Algo que a gente devia enfatizar nessa coletiva de imprensa é quem controla a mídia.”
Você não acha que é de conhecimento geral que os jornais representam interesses corporativos?”, interrompeu uma pessoa com bom senso entre eles, em dúvida.
Não acho que isso seja compreendido…”
Duas horas e dezenas de votações depois, o grupo havia selecionado quatro membros para dizer à imprensa quem controlava a mídia, tinha decidido comparecer en masse a uma coletiva de imprensa e debatido várias palavras de ordem para a manifestação do dia seguinte.
Vamos ver, primeiro nós temos ‘William Randolph Hearst só conta o que quer’, aí ‘Chega de distorção da imprensa’ — essa é aquela que deu alguma controvérsia política…”
Antes de se dispersarem, eles ouviram um estudante que tinha vindo da Faculdade de San Mateo, uma instituição localizada descendo a península a partir de São Francisco.
Vim aqui hoje com alguns estudantes do Terceiro Mundo para dizer que estamos com vocês, e esperamos que estejam do nosso lado quando a gente tentar fazer uma greve na semana que vem, porque a gente está nessa de verdade, a gente carrega nossos capacetes o tempo todo, não consegue pensar, não consegue ir para aula.”
Ele fez uma pausa. Era um rapaz bonito, entusiasmado pela incumbência dele. Pensei na suave melancolia da vida em San Mateo, que é um dos condados com maior riqueza per capita dos Estados Unidos, e pensei se Wichita Lineman e as pétalas em um galho preto e molhado representavam ou não a falta de propósito da burguesia. Pensei na ilusão de um objetivo a ser alcançado com uma coletiva de imprensa, sendo o único problema das coletivas de imprensa o fato de que a imprensa fazia perguntas.
Vim aqui para dizer que, na Faculdade de San Mateo, estamos vivendo como revolucionários”, falou o garoto então.

Joan Didion, in O álbum branco

Livre arbítrio

Ladrões no terraço

Tem paciência, filhinha, já decidi. Hoje vamos ao cinema de qualquer maneira.
Mas, Dago, ainda não preparei os sanduíches para o aniversário do Guilherme…
O Guilherme que pare de fazer anos e de dar festa com sanduíches divinos-maravilhosos. Ao cinema!
E o Barriga? A gente vai deixar o garoto sozinho em casa? Ele é de morte.
Chame o Italianinho do 301 para fazer companhia a ele. Assim o Barriga sossega. Ao ci-ne-ma!
D. Neusa sempre achando razões para ficar em casa, trabalhando. Cinema ali pertinho, inaugurado há um mês, filme de Buñuel chamando, marido insistindo. E quando marido escande sílabas, mesmo sendo ótimo como aquele, paira ameaça sobre o casamento. Ela cedeu.
Italianinho acudiu pressuroso ao chamado. No 301, também os pais haviam saído, e a patota de adolescentes curtia uma festinha à base de som incrementado e luzes psicodélicas, de que, obviamente, estavam excluídos os menores de doze anos.
Que que a gente vai fazer?
Atirar setas e bolinhas na rua. Bolinhas nos carecas, e setas nas perucas das coroas.
Só nos carecas e nas coroas, não. Em todo mundo.
Tá.
Subiram os dois, de mansinho, pela escada de serviço, munidos de zarabatanas, bolinhas, setas e muita disposição. A chuvinha ranzinza peneirava, eles nem sentiam. E começou o ataque silencioso na noite. Não tão silencioso, pois corriam de um lado para outro, esbarrando aqui e ali, emitindo ruídos abafados de prazer quando atingiam o alvo — dava para perceber que alguma coisa de estranho se passava no terraço.
Juju, de ouvido afiado, num instante em que o som amortecia na festa, correu ao apartamento de seu Ivo:
Está na hora da batida.
Que batida? Vocês prometeram que só haveria chopinho. E o síndico não permite festa de brotos com batida.
O senhor não morou. Batida para pegar ladrão. Tem gente mexendo no terraço. Escute.
Escutou. Mexiam e paravam. Mexiam e paravam. Ladrões, na certa. Havia dias que vinham frequentando os terraços de edifícios daquele trecho de rua, “limpando” antenas, canos, torneiras, roupas, tudo. Alertados, síndicos e condôminos planejaram um serviço de vigilância. Ao menor sinal suspeito, os próprios moradores de cobertura dariam caça aos larápios, já que os vigias noturnos, como se sabe, têm sono pesado.
Seu Ivo achou prudente telefonar para os moradores das coberturas vizinhas, que compareceram imediatamente. Subiram os três, cada um de calibre 45 em punho. Entreaberta a porta do terraço, detiveram-se no penúltimo degrau, à espreita. Sentindo aproximação de gente (ladrões, sem dúvida), Barriga e Italianinho, tomados de pânico, meteram-se na casa de máquinas. Ladrões avançando, ladrões se escondendo dos outros ladrões — era a situação, debaixo de chuva mansa, durante um silêncio de dez minutos.
Não vão ficar a noite inteira na casa de máquinas — ponderou seu Ivo. — Esperemos.
E continuaram os três, respiração suspensa, mão no gatilho, aguardando.
Concluindo que se tratava de alarme falso, Italianinho e Barriga foram saindo de leve, pé ante pé, agachados junto à mureta.
É agora — comandou baixinho seu Ivo. — Vamos atirar pra valer, mas nos pés.
As armas foram baixando lentamente, para a pontaria. Súbito, seu Ivo exclamou, trêmulo, gago:
Não atirem! Não é o que nós pensamos!
Está doido, seu…?
Doido nada. São os moleques!
Seu Ivo reconhecera o Barriga, pelo volume abdominal característico. Entraram rápido no terraço, em direção contrária à dos meninos, para pegá-los desprevenidos. Os dois tentaram fugir, no passo de ema selvagem. Mas Italianinho sentiu uma coisa úmida e cálida escorrer-lhe pelo short, e quedou-se, desamparado, enquanto Barriga dava no pé.
Os homens estavam pálidos.
Quase que nós matávamos esses diabos!
Voltando do cinema, d. Neusa comentou:
Viu, Dago? Viu no que dá essa mania de ir ao cinema? A gente paga para ver Catherine Deneuve de perna cortada, e na volta, por pouco pouco, encontra nosso filhinho defunto!

Carlos Drummond de Andrade, in De notícias e não notícias faz-se a crônica

Sofrimento

Nenhum sofrimento humano é maior do que o planejado pela natureza.

Conversa ouvida em um jogo de dados.

Charles Bukowski, in Ao sul de lugar nenhum

Pavese e os sacrifícios humanos

Cesare Pavese

Todo romance de Pavese gira ao redor de um tema oculto, de uma coisa não dita que é a verdadeira coisa que ele quer dizer e que só se pode dizer silenciando-a. Estreitamente se tece em torno uma trama de sinais visíveis, de palavras pronunciadas: cada um desses sinais tem por sua vez uma face secreta (um significado polivalente ou incomunicável) que conta mais do que aquela evidente, mas o seu verdadeiro significado está na relação que os une à coisa não dita.
La luna e i faló [A lua e as fogueiras] é o romance de Pavese mais denso de signos emblemáticos, de motivos autobiográficos, de enunciações sentenciosas. Até demais: como se do modo pavesiano característico de narrar, reticente e elítico, se desprendesse de repente aquela prodigalidade de comunicação e de representação que permite ao conto transformar-se em romance. Mas a verdadeira ambição de Pavese não estava nesse sucesso romanesco: tudo aquilo que ele nos diz converge numa única direção, imagens e analogias gravitam sobre uma preocupação obsessiva: os sacrifícios humanos.
Não era um interesse momentâneo. Relacionar a etnologia e a mitologia greco-romana à sua autobiografia existencial e à sua construção literária fora o programa constante de Pavese. Na base de sua dedicação aos estudos dos etnólogos permanecem as sugestões de uma leitura juvenil: The golden bough [O ramo de ouro] de Frazer, uma obra que já fora fundamental para Freud, para Lawrence, para Eliot. The golden bough é uma espécie de volta ao mundo em busca da origem dos sacrifícios humanos e das festas do fogo. Temas que retornarão nas evocações mitológicas dos Dialoghi con Leucò [Diálogos com Leucò], cujas páginas sobre os ritos agrícolas e as mortes rituais preparam La luna e i faló. Com esse romance a exploração de Pavese se conclui: escrito entre setembro e novembro de 1949, foi publicado em abril de 1950, quatro meses antes que o autor acabasse com a vida, depois de ter lembrado numa carta os sacrifícios humanos dos astecas.
Em La luna e i faló, a personagem que diz “eu” retorna aos vinhedos da terra natal depois de ter feito fortuna nos Estados Unidos; o que busca não é somente a lembrança ou a reinserção numa sociedade ou a revanche sobre a miséria da juventude; procura o porquê de uma aldeia ser uma aldeia, o segredo que une lugares, nomes e gerações. Não por acaso é um “eu” sem nome: é um enjeitado de hospital, foi educado por agricultores pobres como mão de obra com salário ínfimo; e se tornou homem emigrando para os Estados Unidos, onde o presente tem menos raízes, onde cada um está de passagem e não tem de prestar contas de seu nome. Agora, de volta ao mundo imóvel de seus campos, quer conhecer a última substância daquelas imagens que são a única realidade de si mesmo.
O pesado fundo fatalista de Pavese é ideológico só como ponto de chegada. A zona cheia de colinas do Baixo Piemonte onde ele nasceu (“a Langa”) é famosa não só pelos vinhos e trufas, mas também pelas crises de desespero que golpeiam endemicamente as famílias camponesas. Pode-se dizer que não há semana em que os jornais de Turim não noticiem que um agricultor se enforcou ou se jogou no poço, ou então (como no episódio que está no centro desse romance) pôs fogo na casa, dentro da qual estavam ele mesmo, os animais e a família.
Certamente não é só na etnologia que Pavese procura a chave desse desespero autodestrutivo: o fundo social dos vales de pequena propriedade atrasada acha-se aqui representado nas várias classes com o desejo de completitude de um romance naturalista (isto é, de um tipo de literatura que Pavese sentia tão oposta à sua a ponto de considerar-se em condições de girar ao redor dela e anexar-lhe os territórios). A juventude do enjeitado é a de um servitore di campagna, uma expressão cujo significado poucos italianos conhecem, exceto — esperemos que por pouco tempo mais — os habitantes de algumas zonas pobres do Piemonte: um grau abaixo do assalariado, o rapaz que trabalha para uma família de pequenos agricultores ou meeiros e só recebe a comida e o direito de dormir no celeiro ou na estrebaria, mais uma paga mínima anual ou em cada estação.
Mas identificar-se com uma experiência tão diferente da sua é para Pavese apenas uma das tantas metáforas de seu tema lírico dominante: sentir-se excluído. Os capítulos mais belos do livro relatam dois dias de festa: um deles vivido pelo jovem desesperado que ficou em casa porque não tem sapatos, e o outro, pelo rapaz que deve guiar a charrete das filhas do patrão. A carga existencial que se celebra e se desafoga na festa, a humilhação social que busca a revanche, animam essas páginas em que se baseiam os vários planos de conhecimento sobre os quais Pavese desenvolve a sua pesquisa.
Uma necessidade de conhecimento arrastara o protagonista de volta à terra natal; e poderíamos distinguir pelo menos três planos sobre os quais a pesquisa se desenvolve: plano da memória, plano da história, plano da etnologia. Fato característico da posição pavesiana é que sobre os dois últimos planos (histórico-político e etnológico) é uma única personagem que funciona como Virgílio para aquele que narra. O carpinteiro Nuto, tocador de clarinete na banda cívica, é o marxista da aldeia, aquele que conhece as injustiças do mundo e sabe que o mundo pode mudar, mas também aquele que continua a acreditar nas fases da lua como condição para as várias operações agrícolas e nas fogueiras de São João que “despertam a terra”. A história revolucionária e a anti-história mítico-ritual têm nesse livro a mesma voz. Uma voz que é apenas um resmungo entre os dentes: Nuto é uma daquelas figuras impossíveis de se imaginar mais fechada e taciturna. É a situação antípoda de qualquer profissão de fé declarada; o romance consiste todo nos esforços do protagonista para arrancar quatro palavras da boca de Nuto. Mas é só assim que Pavese fala verdadeiramente.
O tom de Pavese quando se refere à política é sempre um tanto brusco e tranchant, sacudindo os ombros, como quando tudo já foi entendido e não vale a pena desperdiçar outras palavras. Ao contrário, não havia nada de entendido. O ponto de sutura entre o seu “comunismo” e a recuperação de um passado pré-histórico e atemporal do homem está longe de ser esclarecido. Pavese tinha plena consciência de que trabalhava com os materiais mais comprometidos com a cultura reacionária de nosso século: sabia que, se existe uma coisa com a qual não se pode brincar, isso é o fogo.
O homem que regressa à aldeia depois da guerra registra impressões, segue um fio invisível de analogias. As marcas da história (os cadáveres de guerrilheiros e de fascistas que de vez em quando o rio ainda traz até o vale) e os vestígios do rito (as fogueiras de pilriteiro acesas todos os verões no alto dos morros) perderam significado na memória lábil dos contemporâneos.
Que fim levou Santina, a bela e imprudente filha dos patrões? Era de fato uma espiã dos fascistas ou estava de acordo com os guerrilheiros? Ninguém pode dizê-lo com certeza, pois aquele que a conduzia era um abandonado qualquer no sorvedouro da guerra. E é inútil procurar o seu túmulo: depois de tê-la fuzilado, os guerrilheiros a envolveram em ramos secos de videira e puseram fogo no cadáver. “Ao meio-dia, era pura cinza. No ano seguinte, lá estava ainda a marca, feito a cama de uma fogueira.”

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

sábado, 29 de janeiro de 2022

Santuário | The Plankton Orchestra feat Yamandu Costa

Interpretação de dezembro

É talvez o menino
suspenso na memória.
Duas velas acesas
no fundo do quarto.
E o rosto judaico
na estampa, talvez.

O cheiro do fogão
vário a cada panela.
São pés caminhando
na neve, no sertão
ou na imaginação.

A boneca partida
antes de brincada,
também uma roda
rodando no jardim,
e o trem de ferro
passando sobre mim
tão leve: não me esmaga,
antes me recorda.

É a carta escrita
com letras difíceis,
posta num correio
sem selo e censura.
A janela aberta
onde se debruçam
olhos caminhantes,
olhos que te pedem
e não sabes dar.

O velho dormindo
na cadeira imprópria.
O jornal rasgado.
O cão farejando.
A barata andando.
O bolo cheirando.
O vento soprando.
E o relógio inerte.

O cântico de missa
mais do que abafado,
numa rua branca
o vestido branco
revoando ao frio.
O doce escondido,
o livro proibido,
o banho frustrado,
o sonho do baile
sobre chão de água
ou aquela viagem
ao sem-fim do tempo
lá onde não chega
a lei dos mais velhos.

É o isolamento
em frente às castanhas,
a zona de pasmo
na bola de som,
a mancha de vinho
na toalha bêbeda,
desgosto de quinhentas
bocas engolindo
falsos caramelos
ainda orvalhados
do pranto das ruas.

A cabana oca
na terra sem música.
O silêncio interessado
no país das formigas.
Sono de lagartos
que não ouvem o sino.
Conversa de peixes
sobre coisas líquidas.
São casos de aranha
em luta com mosquitos.
Manchas na madeira
cortada e apodrecida.
Usura da pedra
em lento solilóquio.
A mina de mica
e esse caramujo.
A noite natural
e não encantada.
Algo irredutível
ao sopro das lendas
mas incorporado
ao coração do mito.

É o menino em nós
ou fora de nós
recolhendo o mito.

Carlos Drummond de Andrade, in A rosa do povo

A brasilidade no traço de Portinari

As Baianas (1956), de Cândido Portinari

Pé calçado, pé descalço...

No grupo, as classes sociais estavam claramente definidas. Eram definidas pelos sapatos.
Havia, primeiro, os meninos que iam sem sapato. Isso queria dizer que os pais eram tão pobres que não tinham dinheiro para comprar sapatos. Dentre todos os pés descalços, os mais famosos eram os pés do Estelino, que se pareciam com nadadeiras, pé de pato. Os meninos eram malvados. Não perdoavam. Na rua, terminada a escola, gritavam: “Estelino pé de pato...” . O Estelino respondia: “Pé de pato, pé de pinto, vá peidar lá pros esquinto...” (“os quintos dos infernos”). Não era o sentido que importava. O que importava era a rima. Eram sempre os meninos que iam sem sapato.
Havia depois os ricos, que iam calçados. Eu era rico. Ia com os dois pés calçados. Mas sem meia. Não se usava.
E havia a “classe média”. Os da classe média eram aqueles que iam com um pé calçado e outro descalço. Isso mais acontecia com irmãos: um ia com o pé direito calçado e o esquerdo descalço. O outro ia com o pé esquerdo calçado e o direito descalço. Dessa forma, a função de proteção e higiene dos sapatos ficava anulada. Mas sua função era outra. Os pais que assim mandavam os filhos à escola estavam dizendo: “Somos pobres, mas não tanto...” .
Eu achava aquilo o máximo. Tinha inveja deles. Implorei à minha mãe que me deixasse ir com um pé calçado e o outro descalço. Ela não deixou. Não me entendeu. Não compreendeu que, naquele meu desejo, já se delineavam as minhas futuras lealdades políticas.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

O teu cabelo não nega | Irmãos Valença e Lamartine Babo, 1932


Num mundo cada vez mais regido pela cartilha do politicamente correto, “O teu cabelo não nega” não teria nascido. Patrulheiros da correção iriam acusar a letra de racista, principalmente pelo trecho “mas como a cor não pega”, em que os autores, buscando uma rima de sentido cômico para “nega”, declaram o incontrolável amor que sentem por aquela musa multirracial que tem “um sabor bem do Brasil”. Com ou sem intolerâncias, a marchinha dos Irmãos Valença e de Lamartine Babo (1904-1963) foi um sucesso espetacular no carnaval de 1932, como uma ode à beleza e ao charme da mestiça, que provoca uma guerra entre os portugueses e os marinheiros brasileiros.
Quando, meu bem, vieste à Terra / Portugal declarou guerra / A concorrência, então, foi colossal / Vasco da Gama contra o Batalhão Naval.”
Como muitas outras clássicas marchinhas, a irresistível “O teu cabelo não nega” tem um humor ingênuo e direto, que pega de primeira. A música, no entanto, tem história bem mais complexa. Nasceu a partir de um frevo, “Mulata”, que tinha animado o carnaval de Recife em 1929 e foi oferecido à gravadora Victor pelos seus autores, os irmãos pernambucanos Raul (1894-1977) e João Valença (1890-1983). O então diretor da companhia de discos implicou com a letra e Lamartine foi convocado para reescrevê-la. O carioca Lalá não só trocou muitos versos como mexeu na melodia, reforçou a pulsação rítmica, aumentando seu balanço. Também registrou a canção apenas em seu nome, com o título “O teu cabelo não nega”. Os Valença entraram com ação judicial, ganharam a causa e foram indenizados e adicionados à parceira.
Gravada pelo cantor e comediante Castro Barbosa, com acompanhamento do Grupo da Guarda Velha e arranjo e direção musical de Pixinguinha, “O teu cabelo não nega” foi lançada no carnaval de 1932 e desde então não para de animar ruas, blocos e salões Brasil afora.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Rio de sangue | 12

Estela saiu desvairada pelo caminho que deixava a casa dos marimbus, como se corresse de um incêndio. Seus filhos choravam e foram amparados por Santa e a filha, que andavam pela mesma estrada carregando trouxas de roupa e peixes. O grito da mulher havia sido tão desesperador que mobilizou boa parte dos moradores das cercanias. Estava vestida com uma camisola branca feita de um tecido delicado e quase transparente. Era possível ver os mamilos de seus seios jovens, rijos, por trás do tecido, movimentando-se agitados ao sabor dos nervos abalados. Ninguém conseguia entender o que ela dizia e o choro das crianças havia se tornado mais nítido porque chamavam pela mãe. Chamavam para que retornasse ao seu lugar, que os amparasse. Os homens replicaram para as mulheres e a notícia correu de casa em casa e pela estrada, com a velocidade das más notícias. Salomão estava morto.
Salu se deslocou da curta distância de sua casa até a casa de Bibiana para relatar o que havia lhe chegado. A filha, que estava corrigindo os cadernos, continuou de cabeça baixa, mas depois retirou os óculos e pediu à mãe que sentasse. “A senhora está nervosa? Descanse um pouco, minha mãe”, serviu uma xícara de café e levou para a sala. “Ele tinha muitos inimigos, minha mãe”, disse retornando aos cadernos e baixando a cabeça novamente, “mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer”.
A mãe bebeu um gole do café, “tinha tanto lugar para acontecer, porque logo nesta fazenda, se ele tinha outras fazendas e vivia aqui e acolá?”. “Essas coisas não escolhem lugar, não, minha mãe, acontecem onde têm que acontecer.” Bibiana parecia falar no tom de voz conformado de uma viúva que ainda não havia completado seu primeiro ano de luto. “É bom que ela sinta na pele o que eu ainda sinto”, disse, sem olhar para a mãe.
O que é isso, Bibiana? Foi essa a educação que eu e seu pai lhe demos? Não se deseja mal a ninguém, por pior que possa lhe parecer.”
Deveriam ter queimado a casa com a mulher e as crianças dentro. Assim não haveria herdeiros para tentar retirar a gente daqui...”
Salu levantou de súbito e derrubou a cadeira na agitação. Bibiana ergueu a cabeça para olhar a mãe. Ainda teve tempo para dizer que poderia deixar a cadeira no chão, que ela mesma colocaria no lugar. A mãe, velha, que tanta dificuldade passou durante a vida, se sentiu indignada com a violência do desejo de sua filha. Desferiu um tapa no seu rosto. Aquela era a segunda vez que batia numa de suas filhas. Recordou da primeira vez, da surra em Belonísia por causa do beijo que Bibiana disse ter visto. Agora ela levava a mão à face que ardia do golpe. Seus olhos de imediato se encheram de lágrimas.
Não pensei nunca precisar fazer isso em você depois de velha, Bibiana, depois de você ter me dado netos. Mas não criei filhos para andarem pela terra fazendo o mal a ninguém. Não se deseja a morte de ninguém. Já não basta o que se abateu sobre esta casa? Você quer mais castigo sobre a gente?” Salu se dirigiu para a porta, enxugando com as costas das mãos as lágrimas que acabavam de deixar seus olhos. “Estou cansada, Bibiana. Essa não foi a vida que desejei, e temo pelos meus netos. Que mundo vamos deixar para eles?”, perguntou, enquanto ultrapassava o batente da porta.
Bibiana ficou de pé, mas não levantou a cadeira caída. Quando a mãe estava suficientemente longe, desabou num choro que só havia se permitido na noite em que o filho disse que cuidaria dela. Suas mãos doíam, feridas, e as deixou se agitarem no ar como se aquele movimento pudesse aliviar seu padecimento. Nem a notícia de que o homem que acreditava ser o mentor do crime contra Severo estava morto a deixou aliviada. A ausência que sentia parecia se dilatar à medida que o tempo passava. Continuava a abrir uma cova profunda em sua dor. A certeza mais difícil de constatar era que nada, nem mesmo a posse da terra, o traria de volta.
Belonísia, que havia saído antes de o sol nascer, retornou ao meio-dia. Trazia aipim, batata-doce e uma abóbora grande. Colocou tudo em cima da mesa da cozinha. Domingas, o marido e Zezé estavam na sala, sentados ao lado da mãe. Quando ouviu Salu dizer o que tinha ocorrido com Salomão, ficou parada por um tempo, mostrando-se surpresa com a notícia. Levantou o queixo para o irmão, interrogou com os movimentos dos lábios e das mãos, queria saber cada detalhe. Salomão havia aparecido quase degolado, caído numa vereda no meio da mata, mas não muito distante da margem do rio Santo Antônio. O cavalo que montava foi visto perto da casa de vidro, pastando as plantas que cresciam na beira dos marimbus. Disseram que, quando a mulher saiu e encontrou o cavalo perto de casa, achou estranho. Tião e Isidoro, que haviam saído para pescar, encontraram o corpo nesse lugar, na vereda, ao lado de uma cova grande. O grande mistério, sobre o qual discutiam no momento em que adentrou a casa: a cova. Uns disseram que surgiu do dia para a noite. Outros disseram que ela foi crescendo com o passar do tempo. Mas que não parecia feita por mãos de homem. Como se a terra estivesse cedendo, formando um poço largo e profundo.
Belonísia sentiu falta de Bibiana entre os irmãos e quis saber se ela já sabia. Sim, responderam. Salu estava amargurada pela reação de Bibiana, mas não quis contar a reação que ela teve. Sentia-se envergonhada pelo ódio da filha. Belonísia imaginou como deveria ter sido dolorido para a irmã ter que escutar tudo aquilo, enquanto procurava respostas para a morte do marido. Por isso, decidiu não procurá-la naquele instante.
Quando se afastou para desarrumar a sacola que havia deixado na cozinha, caiu dura e desacordada, como um pássaro abatido em pleno voo. No meio do alvoroço que se formou com o mal-estar súbito, o cunhado e o irmão a carregaram para o quarto de Salu. A mãe começou a rezar enquanto retirava o lenço que recobria o cabelo de Belonísia. Domingas descalçou a bota, e desabotoou a calça e a camisa de manga comprida sujas de terra. Ao despertar, ela não se lembrava de nada. Não se lembrava da morte de Salomão, nem como havia chegado ao quarto da mãe. Não recordava a exaustão do trabalho. Era como se este dia tivesse sumido de seu calendário. Agitou-se querendo levantar da cama. Salu pediu que continuasse deitada, precisava descansar. “Deve ter sido o calor”, disse a mãe, entregando-lhe um copo de água, “Se alimentou antes de sair, Belô?”, insistiu sem obter resposta, tentando descobrir a origem do mal-estar da filha. Belonísia parecia distante e cansada. Bebeu a metade do copo e tornou a deitar com os olhos fixos na palha do teto. Depois caiu num sono profundo e acordou apenas no dia seguinte.
No mesmo dia, vieram duas viaturas da polícia com investigadores. A fazenda ficou sitiada de homens armados colhendo depoimentos de todos os que haviam encontrado Salomão: dos que residiam pela estrada, embora ele tivesse sido encontrado numa área desabitada, de mata fechada. As chuvas dos últimos meses haviam sido regulares, o que contribuiu para que as folhas crescessem e sombreassem os caminhos. Lugares antes cercados de árvores secas e com boa visibilidade se tornaram mata fechada, onde os poucos habituados poderiam se perder com facilidade. As perguntas não cessavam. Queriam saber sobre possíveis ameaças que a vítima ou terceiros tivessem comentado com os subordinados, sobre desafetos entre os trabalhadores e Salomão, sobre movimentos suspeitos, carros, motocicletas, desconhecidos que tivessem passado pelas últimas semanas pela fazenda, que tivessem estudado seus hábitos. Suspeitos que sabiam qual a melhor hora para executar o crime. Os moradores de Água Negra começaram a se sentir desconfortáveis. Duvidavam que dentre eles alguém pudesse ter cometido aquela barbárie.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Pétalas | Alceu Valença

Isso foi engraçado!

Certa vez assisti a uma palestra de um filósofo que estava perplexo diante dos aspectos não verbais da comunicação humana. Ele preferia a palavra escrita e falada, mas obviamente não conseguia contornar todas as caras e todos os gestos que fazemos. Por que precisamos de todos esses acompanhamentos, ele se perguntava, e, especialmente, por que são tão exagerados? Quando rimos de uma piada, por exemplo, perdemos o controle parcial sobre nosso corpo e produzimos uma enorme quantidade de hahahas que podem ser ouvidos longe. Por que não podemos dizer simplesmente “Isso foi engraçado” e ficar por aí?
Imaginei a cena de um humorista num pequeno teatro contando a melhor piada de todos os tempos e as pessoas, em vez de caindo das poltronas às gargalhadas, todas quietas murmurando “Isso foi engraçado”. É óbvio que o humorista, sabendo que o nobre senso de humor da humanidade está irrevogavelmente casado com algo muito mais animalesco, se sentiria profundamente ofendido. O riso mostra como o corpo ocupa um lugar central em nossa existência, inclusive na vida mental. O riso une corpo e mente, fundindo-os num todo. Podemos sentir isso como perda de controle, porque gostamos que a mente esteja no comando. Como disse o crítico teatral John Lahr: “Observar o riso provocado tomar conta de uma plateia é presenciar um grande e violento mistério. Rostos em convulsão, lágrimas que correm, corpos que colapsam, não em agonia, mas em êxtase”.
Quando rimos, enlouquecemos. Ficamos moles, nos apoiamos um nos outros, ficamos vermelhos e nossos olhos se enchem de lágrimas, a ponto de dissolver a linha divisória com o choro. Fazemos literalmente xixi nas calças! Depois de uma noite de risos, ficamos totalmente exaustos. Isto se deve, em parte, ao fato de que o riso intenso é marcado por mais expirações (que produzem som) do que por inalações (que absorvem oxigênio), então acabamos ofegando por falta de ar. O riso é uma das grandes alegrias de se ser humano, com benefícios bem conhecidos para a saúde, como redução do estresse, estimulação do coração e dos pulmões e liberação de endorfinas. Não obstante, devemos torcer para que os extraterrestres nunca cheguem a observar um grupo de seres humanos rindo descontrolados, porque eles provavelmente abandonariam a ideia de ter encontrado vida inteligente.
O humor nem sempre é o gatilho para o riso. Quando os psicólogos tomam notas discretas sobre o comportamento humano em shoppings e nas calçadas de nosso habitat natural, eles descobrem que a maioria dos risos ocorre depois de declarações mundanas que são tudo menos divertidas. Tente você mesmo. Observe quando as pessoas riem em bate-papos espontâneos, e verá que muitas vezes não é por nada — nenhuma piada, nenhum trocadilho, nenhuma observação bizarra. É apenas um riso inserido no fluxo da conversa, geralmente ecoado pelo interlocutor. O humor não é fundamental para o riso: as relações sociais, sim. Nossas demonstrações tremendamente ruidosas que mais parecem latidos anunciam bem-estar e gosto compartilhados. O riso de um grupo de pessoas transmite solidariedade e intimidade, não muito diferente do uivo de uma matilha de lobos.
O volume alto da risada de nossa espécie sempre me surpreende: os símios riem com muito mais suavidade, e os macacos mal podem ser ouvidos. Meu palpite é que o volume é inversamente proporcional ao risco de predação. Se o riso dos filhotes de outros primatas fosse tão ensurdecedor quanto o riso de nossos filhos no pátio das escolas, os predadores não teriam dificuldade em localizá-los e atacar no momento certo. O ser humano pode se dar ao luxo de ser barulhento, embora obviamente também dê muitas risadinhas reprimidas e risinhos entredentes.
Em sua festa de oitenta anos, Jan fez uma demonstração esplêndida da sequência da risada humana: ele soltou uma série de gargalhadas, depois inspirou profunda, prolongadamente, para aumentar o efeito. A sala explodiu em gargalhadas, não só porque essa sequência é uma assinatura de nossa espécie, mas também porque é incrivelmente contagiante. Nos experimentos, os seres humanos imitam automaticamente rostos risonhos exibidos na tela do computador, e o propósito de se acrescentar risadas gravadas às séries cômicas da televisão é produzir o contágio. Análises detalhadas de vídeos acerca do comportamento de grandes primatas encontram mimetismo semelhante. Quando um orangotango jovem se aproxima de outro com cara de riso, o outro adota de imediato a mesma expressão, e é por isso que normalmente ambos os parceiros de brincadeiras riem, e não apenas um deles. Até as aves exibem esse comportamento contagiante. Os papagaios da Nova Zelândia, conhecidos como keas, tornam-se instantaneamente brincalhões quando ouvem as vocalizações melodiosas que acompanham as brincadeiras de sua espécie emitidas por alguém oculto. Os cantos, que se assemelham um pouco ao riso, afetam seu estado de ânimo. Os keas imediatamente convidam outras aves para brincar, pegam brinquedos para manipular ou fazem acrobacias aéreas. Nada é tão contagiante quanto a jocosidade e o riso.
A repetitividade do riso dos primatas deriva da respiração ritmada. Nos símios, o riso começa com uma respiração ofegante audível, que fica cada vez mais vocal quanto mais intenso se torna o encontro. Por si só, separada da brincadeira, a respiração ofegante expressa alívio, alegria e um desejo de contato, como quando uma fêmea de chimpanzé caminha até a sua melhor amiga e emite arquejos audíveis antes de beijá-la. Do mesmo modo, Mama ofegava rapidamente para mim antes de agarrar meu braço, depois balbuciava e estalava os lábios quando me catava. Quando se trabalha com símios, aprende-se a ser cuidadoso e observar os seus sinais. Todos esses sons suaves indicavam boas intenções, tanto que, sem eles, eu talvez relutasse em deixar Mama pegar meu braço.
Nadia Ladygina-Kohts, a cientista russa que há um século comparou o desenvolvimento emocional do jovem chimpanzé Joni com o de seu próprio filho pequeno, deu exemplos de momentos alegres que provocaram o arquejo. Um dia, Joni viu Nadia sair de casa e começou a choramingar, mas assim que ela mudou de ideia e ficou ele correu até ela com arquejos rápidos. Quando Joni esperava uma bronca séria por algum malfeito mas foi tratado cordialmente, ele ofegou em agradecimento. Essa respiração ofegante, que comunica alegria e sentimentos positivos, tornou-se a base do riso, que comunica a mesma coisa, só que muito mais alto.
A brincadeira dos animais pode ser bruta, pois eles lutam, mordiscam, pulam uns sobre os outros e arrastam uns aos outros. Sem um sinal inequívoco para esclarecer suas intenções, o comportamento de brincar pode se confundir com uma briga. Sinais de brincadeira dizem aos outros que eles não têm com o que se preocupar, que nada daquilo é sério. Por exemplo, os cães podem “fazer reverência” (agachar-se nos membros dianteiros e manter o traseiro no alto) para ajudar a separar brincadeira de conflito. Mas, assim que um cão se comporta mal e acidentalmente morde o outro, a brincadeira cessa de repente. Uma nova reverência será exigida como “pedido de desculpas”, a fim de que a vítima ignore a ofensa e retome o jogo.
O riso serve ao mesmo propósito: contextualiza o comportamento do outro. Uma chimpanzé empurra a outra com firmeza para o chão e põe os dentes no pescoço dela, deixando-a sem escapatória, mas, como ambas emitem um fluxo constante de risos roucos, elas ficam totalmente relaxadas. Sabem que aquilo é só diversão. Uma vez que os sinais de brincadeira ajudam a interpretar o comportamento do outro, eles são conhecidos como metacomunicação: comunicam algo sobre a comunicação. Da mesma forma, se me aproximo de um colega e dou um tapa no ombro dele com uma risada, ele perceberá o gesto de forma bem diferente do que faria se eu desse o tapa sem um som ou sem qualquer expressão no meu rosto. Meu riso transmite um metassinal a respeito da mão que o atingiu. Rir reformula o que dizemos ou fazemos, e tira o peso de comentários potencialmente ofensivos, e é por isso que o usamos o tempo todo, mesmo quando nada particularmente divertido está acontecendo.
O riso emite sinais não somente para os companheiros de brincadeira, mas também para o mundo exterior. Quando os outros veem ou ouvem o riso, sabem que está tudo bem. Os chimpanzés são espertos o suficiente para utilizar as risadas dessa maneira. Certa vez analisamos centenas de jogos de luta entre jovens chimpanzés para ver em quais momentos eles riam. Estávamos particularmente interessados em jovens com grande diferença de idade, já que os jogos deles costumavam ser brutos demais para os mais novos. Assim que isso acontecia, a mãe do mais novo entrava em cena, às vezes batendo na cabeça do companheiro de brincadeira. A culpa era sempre do mais velho! Descobrimos que, quando os jovens brincam com bebês, eles riem muito mais quando a mãe do bebê os observa do que quando estão sozinhos. Sob os olhos de uma mãe protetora, o riso projeta um clima alegre, como se dissesse: “Veja como estamos nos divertindo!”.
Se um grupo de pessoas ri e você não faz parte dele, você se sentirá excluído. O riso muitas vezes enfatiza o grupo de pertencimento à custa dos outros grupos. É uma forma tão poderosa de deboche e provocação que alguns propuseram que a hostilidade está em sua raiz. Essas teorias falam em “humor excludente” dirigido a pessoas de fora do grupo ou de raça diferente, e retratam o riso como um ato maligno. O filósofo inglês quinhentista Thomas Hobbes, por exemplo, considerava o riso uma expressão de superioridade, como se todo o propósito do homem ao brincar fosse zombar dos outros. Que vida miserável esse homem deve ter tido!
O riso é muito mais típico das relações afetuosas entre amigos, namorados, cônjuges, pais e filhos etc. Onde estariam os casamentos sem a cola essencial do humor? Eu sou de uma família grande e lembro com carinho das risadas em torno da mesa de jantar, e elas podiam ficar tão fortes que eu me sentia como se estivesse morrendo. Eu tinha de sair da sala para recuperar o fôlego e a compostura. O primeiro riso em nossas vidas ocorre sempre no período da criação, como acontece nos outros primatas. A mãe gorila faz cócegas na barriga de seu bebê com o dedo médio já alguns dias após o nascimento, produzindo a primeira risada. Em nossa própria espécie, mães e bebês têm muitas interações, nas quais prestam atenção a cada mudança na expressão e na voz um do outro, com muitos sorrisos e risos. Esse é o contexto original, totalmente desprovido de malícia.
A estimulação física continua fazendo parte disso, e deve ter uma longa história evolutiva, porque as cócegas também estão ligadas a sons semelhantes a risadas entre os ratos. O falecido neurocientista estoniano-americano Jaak Panksepp fez mais do que qualquer outra pessoa para tornar as emoções animais um tema aceitável de discussão. Panksepp foi inicialmente ridicularizado pela ideia de ratos risonhos. Esses roedores continuam desprezados e subestimados, mas eu, que já os tive como animais de estimação, não tenho dúvidas de que são animais complexos que estabelecem laços e brincam. Panksepp notou que os ratos gostam que dedos humanos lhes façam cócegas, tanto que voltam para pedir mais. Quando retiramos a mão e a levamos a outro lugar, eles a seguem, buscando estímulo enquanto emitem rajadas de pios de 50 kHz que estão acima do alcance da audição humana.
Um apreciador de ratos anônimo tentou isso em casa:

Decidi fazer uma pequena experiência com Pinky, o jovem rato de estimação do meu filho. Dentro de uma semana, Pinky ficou completamente condicionado a brincar comigo e, de vez em quando, até emite um guincho agudo que posso ouvir. Assim que entro no quarto, ele começa a roer as barras de sua gaiola e pula como um canguru até eu fazer cócegas nele. Ele ataca minha mão, mordisca, lambe, rola de costas para expor a barriga a fim de que eu faça cócegas (é o seu lugar preferido), e dá chutes de coelho quando luto com ele.

Panksepp concluiu que, para os ratos, receber cócegas é uma experiência gratificante (daí eles buscarem a mão) que requer o estado de ânimo certo. Se os animais estiverem ansiosos ou assustados, por cheiro de gato ou luzes brilhantes, por exemplo, nem cócegas fartas provocarão riso. O entusiasmo deles depende também de experiência e familiaridade anteriores, porque os ratos se aproximam com mais avidez de uma mão que lhes fez cócegas, enquanto emitem um pio agudo, do que de uma mão que só os acariciou. Os ratos fazem pequenos movimentos divertidos, conhecidos como “pulinhos de alegria”, que são típicos de todos os mamíferos que brincam, como cabras, cães, gatos, cavalos, primatas e assim por diante. As vacas brincalhonas de Darwin logo vêm à mente. Embora os animais possuam todos os tipos de sinais de jogo, a única constante é um salto aleatório abrupto. Eles dançam em sua direção com as costas arqueadas (gatos) ou giram em torno de seu eixo e pulam no sofá proibido (cachorros) para mostrar como estão prontos para uma perseguição. O pulinho de alegria é tão reconhecível que é facilmente entendido entre as espécies. Em cativeiro, um filhote de rinoceronte pode brincar com um cachorro, ou um cão com uma lontra, ou um potro com uma cabra, e na selva observaram-se chimpanzés jovens lutando com babuínos, e corvos e lobos se provocando. O jogo tem sua própria linguagem universal.
Podemos usar o riso para desarmar uma situação constrangedora ou tensa. Isso é menos comum em outras espécies, mas não está excluído. Entre os chimpanzés, vi machos esfriarem um conflito em potencial. Três machos adultos, com todos os pelos eriçados, haviam acabado de realizar impressionantes exibições de ataque. É uma situação muito tensa, potencialmente perigosa, na qual os rivais testam os nervos um do outro. Eles balançam de galho em galho, desalojam pedras pesadas, arremessam coisas e batem em superfícies ressonantes. Mas, quando esses três machos se afastaram da cena, de repente um deles literalmente puxou a perna de outro. Este macho resistiu e tentou libertar o pé, sem parar de rir. Então o terceiro entrou na jogada, e em pouco tempo três grandes machos galopavam, batiam nas laterais do corpo um no outro e soltavam gargalhadas roucas, enquanto os pelos voltavam ao lugar. A tensão fora quebrada.
Aristóteles achava que o riso era o que diferenciava os seres humanos dos animais, e muitos psicólogos ainda duvidam que algum animal ria de alegria ou porque alguma coisa é engraçada. Sabe-se muito bem, no entanto, que os símios adoram comédias pastelão, provavelmente por causa de todos os contratempos físicos. Quando uma pessoa de quem gostam caminha na direção deles e escorrega ou cai, sua primeira reação é de tensão preocupada, mas se a pessoa fica bem eles riem com aparente alívio, como fazemos em circunstâncias semelhantes. Já descrevi o riso de Mama quando descobriu que havia sido enganada por um ser humano com máscara de pantera. Reações similares podem ser vistas em bonobos. Há muito tempo, o recinto dos bonobos no Zoológico de San Diego tinha um fosso profundo e seco para separá-los do público. No lado dos bonobos, uma corrente de plástico pendia no fosso para que os macacos descessem e voltassem sempre que quisessem. Mas, quando o macho alfa Vernon descia, o adolescente macho Kalind às vezes puxava rapidamente a corrente para cima. Vernon ficava preso, enquanto Kalind olhava para ele com uma grande cara de riso e batia na lateral do fosso. Ele estava zombando do chefe. A única outra bonobo adulta presente normalmente corria para a cena a fim de resgatar o companheiro largando a corrente de volta, e ficava de guarda até que ele saísse.
Outra risada divertida foi filmada por pesquisadores de campo japoneses na África Ocidental. Um chimpanzé selvagem de nove anos de idade estava esmagando coquinhos com pedras, usando uma técnica comum de martelo e bigorna. Um por um, ele punha os coquinhos na superfície plana de uma pedra grande, enquanto segurava uma pedra pequena na outra mão, depois batia com ela até que os coquinhos quebrassem. Na floresta não é fácil encontrar a combinação certa de pedras para essa tarefa. A mãe do macho olhou para suas ferramentas perfeitas antes de se aproximar e começar a catá-lo. Isso costuma ser um convite para retribuir a catação, então, quando ela terminou, ficou ali esperando que ele girasse e a catasse. Ao fazer isso, ele deixou de cuidar de suas pedras, e em poucos segundos a mãe se apossou delas. Parecia intencional, como se a aproximação e o breve catar tivessem sido uma forma de distraí-lo. No exato momento em que ela pegou as ferramentas dele, foi possível ouvi-la e vê-la rir suavemente consigo mesma, feliz porque a pequena maquinação funcionara.
Essa é uma evidência anedótica, claro, mas esses incidentes sugerem que o riso dos símios pode ser mais do que apenas um sinal de brincadeira. Às vezes, parece se aproximar do significado mais amplo de regozijo, vínculo e ruptura de tensão que conhecemos de nossa própria espécie.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca