quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Tim Maia | Azul Da Cor Do Mar

Ah, vida...

A vida está cheia de interferências indébitas, de acasos estúpidos, de personagens errados que travam conosco desencontrados diálogos de surdos, a vida está atravancada de pormenores inúteis, a vida parece um romance malfeito!

Mário Quintana, in Caderno H

Estado de árvore

Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.

Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.

Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.

Hoje eu desenho o cheiro das árvores.

Manoel de Barros, in Meu quintal é maior do que o mundo

Quino, sempre genial

Os Nascimentos | 1526 – Toledo

O tigre americano

Pelos arredores do alcazar de Toledo, o domador passeia com o tigre que o rei recebeu do Novo Mundo. O domador, lombardo de largo riso e bigodes de ponta, leva-o pela corda, como um cachorrinho, e o jaguar desliza pelo cascalho com passos de algodão.
Gonzalo Fernández de Oviedo sente o sangue gelar. De longe, grita ao guardião que não se fie, que não dê conversa à fera, que tais animais não são para estar entre gentes.
O domador ri, solta o jaguar e acaricia seu lombo. Oviedo chega a escutar o profundo rosnar. Bem sabe ele que esse grunhido significa reza ao demônio e ameaça. Um dia não distante, este confiado domador cairá na emboscada. Estenderá a mão para acariciar o tigre e de um golpe veloz será engolido. Acreditará este infeliz que Deus deu ao jaguar garras e dentes para que um domador lhe sirva a comida em horas fixas? Nunca nenhum de sua linhagem comeu chamado à mesa por um sino, nem teve outra regra além da de devorar. Oviedo olha o lombardo sorridente e vê um montinho de carne picada entre quatro círios.
Cortai-lhe as unhas! – aconselha, afastando-se. – Tirai-lhe as unhas pela raiz, e todos os dentes!

Eduardo Galeano, in Os Nascimentos

Do Amor e Outros Demônios | Capítulo Um


Um cachorro cinzento com uma estrela na testa irrompeu pelos becos do mercado no primeiro domingo de dezembro, revirou mesas de frituras, derrubou barraquinhas de índios e toldos de loterias, e de passagem mordeu quatro pessoas que se atravessaram no seu caminho. Três eram escravos negros. A outra foi Sierva Maria de Todos los Ángeles, filha única do marquês de Casalduero, que fora com uma empregada mulata comprar uma fieira de guizos para a festa de seus doze anos.
Tinham recebido ordem de não passar do Portal dos Mercadores, mas a criada se aventurou até a ponte levadiça do arrabalde de Getsemaní, atraída pela bulha do porto negreiro, onde leiloavam um carregamento de escravos da Guie. O barco da Companhia Gaditana de Negros era esperado com alarme havia uma semana, por ter ocorrido a bordo uma mortandade inexplicável. Procurando escondê-la, lançaram ao mar os cadáveres sem lastro. A maré montante os fez flutuar, e eles amanheceram na praia desfigurados pelo inchaço e com uma estranha coloração roxo-avermelhada. Fizeram ancorar o navio fora da baía, temendo que se tratasse do surto de alguma peste africana, até que comprovaram ter havido um envenenamento com frios estragados.
À hora em que o cachorro passou pelo mercado já tinham arrematado a carga sobrevivente, desvalorizada pelo seu péssimo estado de saúde, e tratavam de compensar a perda com uma única abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha o nariz afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro.
Era assunto de todo dia os cães sem dono morderem alguém quando andavam perseguindo gatos ou brigando com os urubus por alguma carniça de rua, e mais ainda nos tempos de abundâncias e multidões em que a Frota de Galeões passava para a feira de Portobelo. Quatro ou cinco mordidos num mesmo dia não tiravam o sono de ninguém, menos ainda com uma ferida como a de Sierva María, que mal se notava no tornozelo esquerdo. Por isso, a criada não se alarmou. Ela mesma fez na menina um curativo com limão e enxofre, lavou a mancha de sangue na saia, e ninguém continuou pensando em outra coisa a não ser na festança dos seus doze anos.
Bernarda Cabrera, mãe da menina e esposa sem títulos do marquês de Casalduero, tomara naquela madrugada um purgante dramático: sete grãos de antimônio num copo de açúcar rosado. Tinha sido mestiça bravia da chamada aristocracia de balcão; sedutora, rapace, farrista, e com uma avidez de ventre ventre de saciar um quartel.
Entretanto, em poucos anos se apagou do mundo devido ao abuso do mel fermentado e das barras de cacau. Obscureceram-se os seus olhos ciganos, acabou-se-lhe a viveza, obrava sangue e lançava bile, e seu antigo corpo de sereia ficou inchado e acobreado como o de um morto de três dias, e soltava umas ventosidades explosivas e pestilentas que assustavam os mastins. Pouco saía da alcova, e nessas ocasiões andava pelada, ou com uma bata de sarja sem nada por baixo, o que a fazia parecer mais nua do que sem nada em cima.
Tinha tido sete descargas de ventre quando voltou a criada que acompanhara Sierva María. Sem lhe dizer nada da mordida do cachorro, comentou o escândalo causado no porto pelo negócio da escrava.
Se é tão bonita como dizem, pode ser abissínia — disse Bernarda.
Mas mesmo que fosse a rainha de Sabá, não achava possível que a comprassem por seu peso em ouro. — Talvez quisessem dizer em pesos ouro.
Não — explicaram. — Tanto ouro quanto a negra pesa.
Uma escrava de sete palmos não pesa menos de cento e vinte libras — disse Bernarda. — E não há mulher nem negra nem branca que valha cento e vinte libras de ouro, a não ser que cague diamantes.
Ninguém tinha sido mais esperto que ela no comércio de escravos, e sabia que se o governador comprara a abissínia não devia ser para coisa tão sublime como servir em sua cozinha. Nisso pensava quando ouviu o som das primeiras charamelas e as bombas de festa, e a seguir o assanhamento da cachorrada presa. Saiu até o pomar de laranjeiras para ver o que se passava.
Dom Ygnacio de Alfaro y Duefias, segundo marquês de Casalduero e senhor do Darién, de dentro de sua rede da sesta, pendurada entre duas laranjeiras, também escutara a música. Era um homem fúnebre, mal-humorado, e de uma palidez de lírio por causa da sangria que os morcegos lhe faziam durante o sono. Para andar em casa usava uma chilaba de beduíno e um gorro de Toledo que aumentava o seu ar de desamparo.
Ao ver a mulher como Deus a pôs no mundo, antecipou a pergunta: — Que músicas são essas? — Não sei — disse ela. — A quantas andamos? O marquês não sabia. Devia mesmo estar muito inquieto para fazer a pergunta à esposa, e ela muito aliviada de sua bile para lhe responder sem um sarcasmo. Sentou na rede, intrigado, quando se repetiram as bombas.
Santo Deus — exclamou. — A quantas andamos! Vizinho à casa ficava o manicômio de mulheres da Divina Pastora.
Alvoroçadas, pela música e pelo foguetório, as reclusas tinham assomado ao terraço que dava para o pomar das laranjeiras, e festejavam cada explosão com ovações. O marquês perguntou-lhes aos gritos onde havia festa, e elas o informaram. Era 7 de dezembro, dia de Santo Ambrósio, bispo, e a música e a pólvora troavam no pátio dos escravos em honra de Sierva María. O marquês deu uma palmada na testa.
Claro — disse. — Quantos anos faz?
Doze — disse Bernarda.
Só doze? — disse ele, tornando a se deitar na rede. — Que vida mais lenta!
A casa tinha sido o orgulho da cidade até o começo do século.
Agora estava arruinada e lôbrega, parecendo em estado de mudança, com grandes espaços vazios e muitas coisas fora de lugar. Nos salões ainda restavam os pisos de mármores axadrezados e alguns lampiões de lágrimas com teias de aranha penduradas. Os aposentos que se mantinham vivos eram frescos em qualquer tempo, graças à espessura das paredes de alvenaria e aos muitos anos de fechados, e mais ainda graças aos ventos de dezembro que se infiltravam assobiando pelas frestas. Tudo estava saturado pela umidade opressiva do abandono e pela escuridão. A única coisa que sobrava das veleidades senhoriais do primeiro marquês eram os cinco mastins de presa que vigiavam as noites.
O barulhento pátio dos escravos, onde se festejavam os aniversários de Sierva María, tinha sido outra cidade dentro da cidade no tempo do primeiro marquês. Assim continuou com o herdeiro enquanto persistiu o comércio escuso de escravos e farinha que Bernarda dirigia com a mão esquerda, do trapiche de Mahates. Agora todo esplendor era coisa do passado. Bernarda estava aniquilada pelo vício insaciável, e o pátio reduzido a dois barracões de madeira com tetos de folhas de palmeira, onde acabaram de se consumir os últimos restos de grandeza.
Dominga de Adviento, uma negra de lei que governou a casa com pulso de ferro até a véspera de sua morte, fazia a ligação entre aqueles dois mundos. Alta e ossuda, de uma inteligência quase clarividente, ela é que criara Sierva María. Tornara-se católica sem renunciar a sua fé ioruba, e praticava as duas ao mesmo tempo, sem ordem nem acordo. Sua alma estava em santa paz, dizia, porque o que lhe faltava numa ia buscar na outra. Era também o único ser humano com autoridade para servir de mediadora entre o marquês e sua esposa, e ambos gostavam dela. Só ela separava a vassouradas os escravos surpreendidos em sem-vergonhices de sodomia ou fornicando com mulheres trocadas nos quartos vazios. Mas desde que morreu, eles escapavam das barracas fugindo aos calores do meio-dia, e viviam estirados pelo chão em qualquer lugar, ou raspando panelas para comer restos de arroz jogando macuco e tarabilla na fresca dos corredores. Naquele mundo opressivo em que ninguém era livre, Sierva María o era: só ela e só ali. Por isso era ali que se celebrava a festa, em sua verdadeira casa e com sua verdadeira família.
Não se podia imaginar bailarico mais taciturno no meio de tanta música, com os escravos próprios e os de outras casas de gente distinta que traziam o que podiam. A menina se mostrava tal como era.
Dançava com mais graça e donaire que os africanos de nação, cantava com vozes diferentes da sua nas diversas línguas da África, ou com vozes de pássaros e animais, que desconcertavam os próprios negros. Por ordem de Dominga de Adviento, as escravas mais jovens pintavam-lhe a cara com fuligem, penduravam colares de candomblé por cima do escapulário do batismo e ajeitavam-lhe o cabelo, jamais cortado, que atrapalharia o caminhar não fossem as tranças de muitas voltas que lhe faziam todo dia.
Ela começava a florescer numa encruzilhada de forças contrárias.
Tinha muito pouco da mãe. Do pai tinha o corpo esquálido, a timidez irremissível, a pele lívida, os olhos de um azul merencório, e o cobre puro da cabeleira radiosa. Seu modo de ser era tão misterioso que parecia uma criatura invisível. Assustada com tão estranha condição, a mãe lhe pendurava uma campainha no pulso para não perder o seu rumo na penumbra da casa.
Dois dias depois da festa, e quase por distração, a criada contou a Bernarda que um cachorro tinha mordido Sierva María. Bernarda pensou naquilo quando, antes de se deitar, tomava o seu sexto banho quente com sabonetes olorosos, mas antes de voltar ao quarto já esquecera. A lembrança só lhe voltou na noite seguinte, porque os cães latiram até o amanhecer, e ela temeu que estivessem raivosos. Então, segurando um candil, foi até as tendas do pátio e encontrou Sierva María adormecida na rede de palma real índia que herdara de Dominga de Adviento. Como a criada não lhe havia contado onde era a mordida, levantou a camisola e a examinou palmo a palmo, acompanhando com a luz a trança que tinha enroscada no corpo como uma cauda de leão. Afinal encontrou a dentada: um rasgão no tornozelo esquerdo, já com uma crosta de sangue seco, e umas escoriações quase invisíveis no calcanhar.
Não eram poucos nem banais os casos de raiva na história da cidade.
O mais rumoroso foi o de um pelotiqueiro que andava pelas ruas com um mico amestrado cujas, maneiras pouco se distinguiam das humanas. O animal contraiu raiva durante o sítio naval dos ingleses, mordeu o dono na cara e fugiu para os montes próximos. O infeliz saltimbanco foi morto a pauladas, em meio a umas alucinações pavorosas que as mães continuavam contando muitos anos depois em coplas; populares para assustar as crianças. Daí a umas duas semanas desceu dos morros em pleno dia um bando de macacos endemoninhados. Fizeram estragos em chiqueiros e galinheiros e irromperam na catedral guinchando e afogando-se em espumaradas de sangue, enquanto se celebrava um te-deum pela derrota da esquadra inglesa. Contudo, os dramas mais terríveis não passavam à história, pois ocorriam entre a população negra, onde os mordidos sumiam para ser tratados com mágicas africanas nas paliçadas de quilombolas.
Apesar de tantos escarmentos, nem brancos nem negros nem índios pensavam na raiva, ou em qualquer outra doença de incubação lenta, enquanto não se revelavam os primeiros sintomas irreparáveis.
Bernarda Cabrera procedeu, com o mesmo critério. Achava que as fabulações dos escravos iam mais rápido e mais longe que as dos cristãos, e que até uma simples mordida de cachorro podia causar dano à honra da família. Tão segura estava de suas razões que nem sequer mencionou o assunto ao marido, nem tornou a recordá-lo no domingo seguinte, quando a empregada foi sozinha ao mercado e viu o cadáver de um cachorro pendente de uma amendoeira para que se soubesse que tinha morrido de raiva. Bastou-lhe um para reconhecer a estrela na testa e o pelame cinzento do cão que mordera Sierva María.
Entretanto, Bernarda não se preocupou quando soube. Não havia por quê: a ferida estava seca e não ficara nem vestígio das escoriações.
Dezembro começou mal. Logo, porém, recobrou suas tardes de ametista e suas noites de ventos loucos. O Natal foi mais alegre que nos outros anos, em razão das boas notícias da Espanha. Mas a cidade não era a de antes. O mercado principal de escravos se trasladara para Havana, e os mineradores e donos de engenho dos reinos de Terra Firme preferiam comprar sua mão-de-obra de contrabando e a menor preço nas Antilhas inglesas. De modo que havia duas cidades: uma alegre e multitudinária durante os seis meses em que os galeões permaneciam no porto, e outra sonolenta no resto do ano, à espera de que voltassem.
Nada mais se tornou a saber dos mordidos até o princípio de janeiro, quando uma índia andeja por nome Sagunta bateu à porta do marquês na hora sagrada da sesta. Era muito velha e andava descalça sob o sol, apoiando-se num cajado e embrulhada dos pés à cabeça num lençol branco. Tinha a má fama de ser remendadora de cabaços e aborteira, mas compensava-a com a virtude de conhecer segredos dos índios para fazer sarar os desenganados.
O marquês a recebeu com má vontade, de pé no vestíbulo, e demorou a entender o que ela queria, pois era mulher de muita circunspecção e circunlóquios arrevesados. Tantas voltas deu para chegar ao assunto que o marquês perdeu a paciência.
Seja o que for, diga-me sem mais latins disse.
Estamos ameaçados por uma peste de mal de raiva — disse Sagunta — e eu sou a única que tenho as receitas de Santo Huberto, patrono dos caçadores e curador dos danados.
Não vejo razão para nenhuma peste — disse o marquês. — Não há anúncios de cometas nem de eclipses, que eu saiba, nem temos culpas tão grandes a ponto de Deus se ocupar de nós.
Sagunta informou-lhe que em março ia haver um eclipse total do sol e deu notícias completas dos mordidos no primeiro domingo de dezembro.
Dois haviam desaparecido, certamente sequestrados pelos parentes para tratá-los com feitiços, e outro morrera de raiva na terceira semana.
Havia um quarto que não foi mordido, mas apenas salpicado pela baba do mesmo cachorro, e estava agonizando no hospital do Amor de Deus. O aguazil-mor tinha mandado envenenar uma centena de cães sem dono no que restava do mês. Em mais uma semana não ficaria nem um só vivo na rua.
Seja o que for, não percebo o que tenho eu a ver com isso — disse o marquês. — E ainda menos em hora tão imprópria.
Sua filha foi a primeira pessoa mordida disse Sagunta.
O marquês falou com grande convicção: — Se assim fosse, eu seria o primeiro a saber.
Acreditava que a menina se sentia bem, e parecia-lhe impossível que uma coisa tão grave tivesse acontecido sem seu conhecimento. Assim, deu a entrevista por encerrada e foi terminar a sesta.
Não obstante, naquela tarde procurou Sierva María nos pátios de serviço. Ela estava ajudando a esfolar coelhos, o rosto pintado de preto, descalça e com o turbante vermelho das escravas. Perguntou-lhe se era verdade que tinha sido mordida por um cachorro, e ela, sem a menor dúvida, respondeu que não. Mas Bernarda o confirmou nessa noite. O marquês, confuso, indagou: — E por que Sierva nega? — Porque não há jeito dela dizer uma verdade nem por descuido.
Então precisamos agir, porque o cachorro estava atacado de raiva — disse o marquês.
Ao contrário — disse Bernarda —, o cachorro é que morreu por tê-la mordido. Isso foi em dezembro, e a descarada está como uma flor.
Ambos continuaram atentos aos rumores crescentes sobre a gravidade da peste, e embora a contragosto tiveram que conversar outra vez sobre assuntos que lhes eram comuns, como no tempo em que se odiavam menos.
Para ele era claro. Sempre acreditou que amava a filha, mas o medo do mal de raiva o obrigava a confessar que se enganava a si mesmo por uma questão de simples comodismo. Já Bernarda nem sequer se interrogou, porque tinha plena consciência de que não a amava nem era amada por ela, e ambas as coisas lhe pareciam justas. Muito do ódio que sentiam pela menina se devia ao que havia nela de um e de outro. Bernarda, porém, estava disposta a representar a farsa das lágrimas e guardar um luto de mãe sofredora para preservar sua honra, desde que a causa da morte da menina fosse digna.
Seja lá o que for — frisou —, mas doença de cachorro, não.
Naquele instante, como por obra de uma revelação celestial, o marquês compreendeu qual era o sentido de sua vida.
A menina não vai morrer — disse, resoluto. — Mas se tem de morrer, há de ser do que Deus dispuser.
Na terça-feira, foi ao hospital do Amor de Deus, no morro de São Lázaro, para ver o raivoso de que Sagunta dera notícia. Não teve consciência de que sua carruagem de crepes funéreos ia ser vista como mais um anúncio das desgraças que vinham incubando, pois desde muitos anos só saia de casa nas grandes ocasiões, e desde outros tantos não havia ocasiões maiores que as infaustas.
[…]

Gabriel Garcia Márquez, in Do Amor e Outros Demônios

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Gal Costa | O Que É Que Há

O Azarão | 10


Durante a semana, tenho que confessar, Rube e eu tramamos umas coisinhas. De novo. Não dá para evitar.
Não ia ter roubo.
Um soco. Fora.
Então, que diabo tinha pra nós dois fazermos? Decidi que ia ser jogo de bola no quintal, ou futebol, ou como você quiser chamar.
Para começo de conversa, tínhamos que jogar.
Jogamos.
Sério.
Talvez eu tenha perguntado a Rube se ele queria jogar, porque ainda estava infeliz com todo o fiasco da placa de trânsito. Foi bem desmoralizante conseguir e depois encontrar um meio de fracassar novamente. Magoou mais do que Rube podia dizer. Ele só ficava sentado lá, todas as tardes, coçando o queixo áspero com uma mão melancólica e sinistra. O cabelo estava como sempre, cobrindo as orelhas e batendo nas costas.
Vamos lá. — Tentei iniciar uma conversa com ele.
Não.
Era sempre assim. Eu, o irmão mais novo, sempre quisera que Rube fizesse coisas, podia ser uma partida de Banco Imobiliário ou uma bola no quintal. Rube, o irmão mais velho, bem, era quem decidia. Se ele não quisesse fazer uma coisa, nós não fazíamos. Talvez por isso sempre quis tanto sair para roubar com ele, só porque ele queria mesmo que eu fosse. Desistíramos de fazer coisas com o Steve uns anos atrás.
Vamos lá. — Continuei tentando. — Já enchi a bola, e os gols estão prontos. Vamos dar uma olhada. Estão riscados lá na cerca, dos dois lados.
Do mesmo tamanho? — Dois metros de largura, um e meio de altura.
Bom, bom.
Olhou para mim e, pela primeira vez em muitos dias, deu um sorrisinho.
Vamos? — perguntei mais uma vez, com muito mais ansiedade.
Está bem.
Saímos, então, e foi incrível.
Absolutamente incrível.
Rube caiu no concreto e se levantou. Duas vezes. Me xingou até dizer chega quando fiz gol, e a coisa estava ficando séria. Um chute errado foi na direção da cerca, prendemos a respiração, e em seguida, soltamos o ar quando a bola bateu na beirada e voltou. Até sorrimos um pro outro.
Foi incrível, sobretudo porque Rube andava todo triste com uma forma própria de crise de identidade ao mesmo tempo que eu estava na típica agonia por causa de toda a história com Rebecca Conlon. Isso era muito melhor. Sim. Era, porque, de repente, voltamos a fazer o que fazíamos melhor, nos jogar e jogar um ao outro no quintal, ficar sujos, ter certeza de xingar e agir feito idiotas e, se possível, ofender os vizinhos. Era muito melhor assim. Era uma bela volta aos velhos tempos.
A bola bateu na cerca e fez o cachorro do vizinho latir e os papagaios na gaiola ficarem loucos. Tomei um bico na canela. Rube caiu de novo no concreto, arranhando um pouco a pele da mão ao se apoiar na queda. Durante todo esse tempo, o cachorro do vizinho latiu, e os papagaios estavam num tipo de frenesi. Eram os velhos tempos, sim, e, como sempre, Rube ganhou: 7 a 6. Eu não ligava, porque nós dois acabamos rindo e não levamos as coisas tão a sério.
O que nos aguardava na escada dos fundos, porém, foi algo muito diferente.
Era Sarah, sozinha.
O primeiro a vê-la foi Rube. Me tocou de leve no braço e apontou para ela com a cabeça.
Olhei.
Falei bem baixinho: — Ai, não.
Então, Sarah olhou para a frente, porque deve ter me ouvido, e, para ser sincero, a aparência dela era péssima. Estava sentada lá, toda encolhida, com os joelhos quase encostando nos ombros e os braços cruzados como se quisesse manter todo o ar dentro dela. As lágrimas desciam pelo rosto.
Estranho.
Foi exatamente assim que aconteceu quando fomos até a nossa irmã e ficamos um de cada lado dela, fitando-a e sentindo as coisas, sem saber o que fazer.
Então, sentei perto dela, mas não tinha ideia do que dizer.
No fim, foi Sarah quem quebrou o silêncio. O cachorro do vizinho tinha se acalmado, e a vizinhança parecia atordoada com o que estava acontecendo no nosso quintal.
Era como se pudesse perceber. Podia perceber algum tipo de tragédia e desamparo em jogo aqui, e, para ser sincero, isso me surpreendeu. Estava tão acostumado com as coisas só acontecendo, esquecendo e ignorando todo sentimento.
Ela falou: — Ele arrumou outra pessoa.
O Bruce? — perguntei, e Rube olhou para mim com uma expressão incrédula no rosto.
Não — rosnou. — O rei da Suécia, porra. Quem você acha que foi? — Tá bem, tá certo! Então, Sarah se inclinou e falou: — Acho melhor vocês me deixarem sozinha por algum tempo.
Está bem.
Quando me levantei e saí com Rube, a cidade à nossa volta parecia de novo mais fria que nunca, e percebi que, mesmo que ela realmente tivesse notado que algo estava acontecendo, sem dúvida, não se importava. Seguia em frente mais uma vez. Eu podia sentir. Quase podia ouvi-la rir e saborear. De perto. Observando. Zombando. E estava fria, tão fria, ao observar minha irmã sangrar nos fundos da nossa casa.
No lado de dentro, Rube estava aborrecido.
Falou: — Está vendo agora? Isso estraga as coisas.
Acontece. — Quando disse isso, vi o vulto do Steve na varanda da frente. Distante de nós.
Tá, mas por que hoje? — Por que não? Do sofá, olhei para uma foto antiga de Steve, Sarah, Rube e eu bem pequenos, de pé, formando uma escadinha para algum fotógrafo. Steve sorria. Sarah sorria. Todos nós sorríamos. Era estranho ver isso porque ela estava lá todo dia e só agora é que eu realmente a notava. O sorriso do Steve. Ele se importava com a gente. O sorriso da Sarah. Era bonito Rube e eu parecíamos limpos. Nós quatro éramos pequenos, destemidos, e nossos sorrisos eram tão poderosos que isso me fazia sorrir mesmo estando no sofá, naquele momento ruim.
Aonde isso foi parar? Perguntei para mim mesmo. Eu nem conseguia me lembrar da foto sendo tirada. Era mesmo real? Nesse momento, Sarah estava na escada dos fundos, chorando, e Rube e eu afundávamos no sofá, incapazes de ajudá-la. Steve não parecia se importar com nenhum de nós.
Aonde isso foi parar? Pensei de novo. De que forma aquela imagem pôde se transformar nisso? Será que os anos nos venceram? Será que nos enfraqueceram? Como foi que passaram feito grandes nuvens brancas, desintegrando com tanta lentidão que não podíamos nos dar conta delas? De um jeito ou de outro, tudo estava muito ruim e ia piorar.
Piorou à noite, quando Sarah saiu e não voltou durante muitas horas.
Ela saiu, dizendo as palavras: "Vou dar uma volta", e muito tempo passou enquanto estava fora. O restante de nós fingia indiferença, no começo, mas, às onze, estávamos todos preocupados. Até o Steve parecia um pouco preocupado.
Vamos — falou papai para nós. — Vamos sair para procurar.
Ninguém questionou.
Rube e eu saímos na van com meu pai, e mamãe e Steve ficaram em casa, caso Sarah aparecesse durante a nossa ausência. Procuramos nos bares e nas casas dos amigos dela. E até na casa do Bruce. Ela não estava em lugar algum.
A meia-noite, quando voltamos para casa, ela ainda não voltara, e tudo o que podíamos fazer era esperar.
Cada um fez isso de um modo diferente.
Minha mãe ficou sentada, em silêncio, sem olhar para ninguém.
Papai não parava de fazer café e tomava tudo, como se não houvesse amanhã.
Steve botou e tirou do tornozelo a bolsa de água quente, e mantinha-o elevado, determinado.
Rube murmurou alguma coisa muito baixo, umas quinhentas vezes: — Eu vou matar aquele filho da mãe. Eu vou matar aquele filho da mãe. Vou pegar o Bruce Patterson. Vou matar o... Eu vou. Eu vou...
Quanto a mim, cerrei um pouco os dentes e me inclinei para a frente, apoiando o queixo na mesa. Só Rube foi para a cama. O restante de nós ficou.
Nenhum sinal? — perguntou mamãe ao acordar a uma da manhã.
Não. — Meu pai balançou a cabeça, e, pouco depois, todos dormíamos sob o globo de luz branca e incômoda da cozinha.
Mais tarde, um sonho estava se aproximando.
Cam? — Cam? Me sacudiram para eu acordar. Dei um pulo.
Sarah? Não. Sou eu. Era o Rube.
Ai, seu idiota! — É. — Ele sorriu. — Ela ainda não chegou? — Não. A não ser que tenha passado por nós direto e ido para a cama.
Não. Ela não está lá.
Foi aí que percebemos outra coisa: agora Steve também se fora.
Procurei no porão.
Nada. — Olhei para Rube. Então, nós dois fomos até a varanda e, depois, até a rua. Onde diabos Steve se metera? — Espera. — Rube deu uma volta, olhando a rua. — Lá está ele.
Vimos nosso irmão sentado, apoiado num poste. Corremos até ele. Paramos. Rube perguntou: — O que foi que aconteceu? Steve olhou para nós, e nunca o vi com tanto medo assim, ou tão ferrado. Parecia tão desengonçado, e ainda assim parecia um homem; ele sempre parecia um homem. Sempre...
mas nunca assim. Não um cara vulnerável.
As muletas eram dois braços mortos, jogadas ali, de madeira, perto dele.
Lentamente, delicado, nosso irmão falou: — Eu acho. — E parou. Recomeçou. — Eu só queria encontrá-la.
Não dissemos nada, mas acredito que, quando ajudamos Steve a se levantar e voltar para casa, ele deve ter visto como era a vida do Rube, da Sarah, e a minha.
Tinha visto como era cair e não saber se ia voltar a se levantar, e isso o assustou. Assustou porque nós realmente levantamos. Nós sempre levantamos. Nós sempre.
Nós o levamos para casa.
Nós...
Dali, todos esperamos na cozinha novamente, mas só Rube e eu estávamos acordados. Em determinado momento, ele cochichou alguma coisa para mim. A mesma coisa de antes.
Continuou: — Ei, Cam. Vamos pegar o tal Patterson. — Parecia tão seguro. — Vamos pegar ele.
Eu estava cansado demais para dizer algo além de "Vamos".
Pouco depois, Rube adormeceu, como mamãe, papai e Steve. Não levou muito tempo para meus próprios olhos ficarem pesados, e eu também dormi.
Todos nós, dormindo na cozinha.
Sonhei.
Está vindo.
Não é um sonho ruim.
Quando voltei a acordar, tinha mais uma pessoa agora, dormindo como o restante de nós, à mesa da cozinha.

Estou parado em um gol vazio. O estádio está lotado. Talvez umas 120 mil pessoas me olhem fixamente. Elas entoam.
Homem-lobo! Homem-lobo! Olho ao redor do estádio, para todas as pessoas me incentivando, e eu as amo, embora sejam completamente estranhas para mim. Acho que são da América do Sul. Brasileiras ou coisa assim. Argentinas, talvez.
Não vou decepcionar vocês — murmuro para elas, sabendo que não podiam me ouvir, mesmo se eu gritasse.
A minha frente, tem uma fila de pessoas, todas com as cores do adversário.
São as pessoas da minha história: Papai, Rube, mamãe, Steve, Sarah, Bruce, a nova namorada sem rosto do Bruce, Greg, a auxiliar de dentista, o dentista, Dennison — o diretor —, a assistente social, os colegas de Rube e Rebecca Conlon.
Estou usando todas as coisas que um goleiro precisa usar: chuteira, meião levantado, uma camisa de malha verde com padrões de diamante na frente e luvas. É noite, e o ar noturno se parte em mil pedaços por causa dos refletores imensos em posição vertical, Jeito torres de vigia sobre todos nós.
Estou pronto.
Bato palmas e me agacho, pronto para mergulhar em qualquer direção e pegar a bola. O gol atrás de mim parece ter quilômetros de largura e de profundidade. A rede é uma jaula frouxa, balançando e murmurando na brisa.
Papai dá um passo à frente, ajeita a bola, grita que isso é um tipo de disputa de pênaltis de final de Copa, e que tudo depende de mim. Recua, para e corre, chutando a bola à minha direita. Mergulho, mas a bola está fora do alcance. Ele olha para mim depois que a bola estufa o canto da rede, e sorri, como se dissesse — Desculpe, garoto. Tive que fazer isso.
Mamãe dá um passo à frente. Depois, Rube. Os dois marcam, Rube dá um sorriso cruel. E diz — Você não tem jeito, Querido.
A multidão, todo esse tempo, está sempre fazendo um zumbido, como se fosse estática no meu ouvido. Quando não agarro e o adversário faz gol, eles berram e, então, suspiram, pois estão torcendo por mim. Querem que eu defenda um, pois sabem que estou lutando. Veem meus pequenos braços e a vontade em meus lábios, e não podem ouvir, mas sentem as palmas quando me preparo para cada cobrança. Ainda entoam.
Meu nome.
Meu nome.
Mesmo assim, por mais que tente, não consigo agarrar nem um chute.
Mesmo a Sarah, infeliz, passa por mim. Antes de chutar, diz — Não tente me ajudar. É inútil. Tudo está fora do seu controle.
Steve chuta, e Bruce. Os colegas de Rube. Todo mundo.
Então, Rebecca Conlon dá um passo à frente.
Caminha em direção a mim.
Devagar.
Sorrindo.
Ela diz Se você agarrar, amarei você.
Faço que sim com a cabeça, solene, pronto.
Ela recua, se aproxima, chuta a bola.
Está muito alta, e eu a perco no meio das luzes. Encontro-a e mergulho, no alto e à direita, e, de algum modo, a bola bate no meu pulso e acerta com força meu rosto.
Caio com ela.
Ela quica, quando bato no chão, e rola, devagarinho, sobre a linha e para o fundo da rede.
Ah, eu mergulho, mas não adianta. Falho, e rapidamente estou só, não no estádio, mas no quintal ensolarado, sentado contra a cerca e com o nariz sangrando.

Markus Zusak, in O Azarão

Partindo de Paumanok | 11

Como fiz no Alabama meu passeio matinal,
Vi onde a fêmea do tordo sentou-se em seu ninho
Nas sarças chocando sua ninhada.

Também vi o macho,
Me detive para ouvi-lo bem de perto
Inflando sua garganta e cantando alegremente.

E durante esta pausa me ocorreu que a razão real de seu cantar não estava só lá,
Não por sua consorte nem só ele, nem tudo retornado pelos ecos,
Mas sutil, clandestino, longe além,
Um encargo transmitido e oculto presente para os que estão nascendo.

Walt Whitman, in Folhas de Relva

Le Moulin de la Galette, de Van Gogh

Le Moulin de la Galette (série de 1886), de Vincent van Gogh

Risco

 “Então eu daria uma resposta satisfatória: ‘Você está incorreto se pensa que um homem minimamente bom deve calcular o risco de vida ou morte em vez de se preocupar unicamente se está sendo justo ou injusto e se faz o ofício de um homem bom ou de um mau’.”

Marco Aurélio, in Meditações 

Capítulo 112 – A Opinião

Mas estava escrito que esse dia devia ser o dos lances dúbios. Poucas horas depois, encontrava-me eu com o Lobo Neves, na rua do Ouvidor; e falamos da presidência e da política. Ele aproveitou o primeiro conhecido que nos passou à ilharga, e deixou-me, depois de muitos cumprimentos. Lembra-me que estava retraído, mas de um retraimento que forcejava por dissimular. Pareceu-me então (e peço perdão à crítica, se este meu juízo for temerário!) pareceu-me que ele tinha medo – não medo de mim, nem de si, nem do código, nem da consciência; tinha medo da opinião. Supus que esse tribunal anônimo e invisível, em que cada membro acusa e julga, era o limite posto à vontade do Lobo Neves. Talvez que ele já não amasse a mulher; e, assim, pode ser que o coração fosse estranho à indulgência dos seus últimos atos. Cuido (e de novo insto pela boa vontade da crítica!) cuido que ele estaria pronto a separar-se da mulher, como o leitor se terá separado de muitas relações pessoais; mas a opinião, essa opinião que lhe arrastaria a vida por todas as ruas, que abriria minucioso inquérito acerca do caso, que coligiria uma a uma todas as circunstâncias, antecedências, induções, provas, que as relataria na palestra das chácaras desocupadas, essa terrível opinião, tão curiosa das alcovas, obstou à dispersão da família. Ao mesmo tempo tornou impossível o desforço que seria a divulgação. Ele não podia mostrar-se ressentido comigo, sem igualmente buscar a separação conjugal; e teve então de simular a mesma ignorância de outrora, e, por dedução, iguais sentimentos.
Que lhe custasse creio; naqueles dias, principalmente, vi-o de modo que devia custar-lhe muito. Mas o tempo (e é outro ponto em que eu espero a indulgência dos homens pensadores!), o tempo caleja a sensibilidade, e oblitera a memória das coisas; era de supor que os anos lhe despontassem os espinhos, que a distância dos fatos apagasse os respectivos contornos, que uma sombra de dúvida retrospectiva cobrisse a nudez da realidade; enfim, que a opinião se ocupasse um pouco com outras aventuras. O filho, crescendo, buscaria satisfazer as ambições do pai; seria o herdeiro de todos os seus afetos.
Isso, e a atividade externa, e o prestígio público, e a velhice depois, a doença, o declínio, a morte, um responso, uma notícia biográfica, e estava fechado o livro da vida, sem nenhuma página de sangue.

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

A história da canção "Seis Cordas" | Luiz Fidelis

Viver sem medo

Os homens começaram a construir casas para se protegerem dos perigos. Havia os perigos do tempo, chuvas, frio, sol, vento. Havia os perigos dos bichos e dos perigos dos homens. As casas começaram a ser construídas para que, dentro delas, as pessoas não tivessem medo. Primeiro, as cercas, paliçadas, muros. Depois, as paredes fortes. E as portas e janelas que se abriam durante o dia e se fechavam durante a noite. Logo os homens perceberam que sua segurança em casas isoladas era muito precária. Começaram a construir cidades. As cidades medievais eram verdadeiras fortalezas, cercadas por muralhas. Nelas só se podia entrar passando por uma gigantesca porta guardada por soldados. As casas pequenas onde moravam as famílias passaram, assim, a ser protegidas pelas casas grandes, a cidade. Com isso as pessoas podiam andar tranquilas pelas ruas: as feras e os criminosos ficavam do lado de fora. Perigoso, mesmo, era viajar. Nas viagens não havia o que protegesse os viajantes. E podiam também dormir tranquilas, sabendo que havia muros e guardas que as protegiam.
Isso era possível porque as cidades eram pequenas. Quando cresceram e ficaram grandes demais, ficou impossível protegê-las com muros. As cidades se abriram então a todos. Coisa sem dúvida democrática. Mas o resultado foi que ficou impossível controlar a entrada e a saída de pessoas. Tanto os amigos quanto os malfeitores passaram a entrar e sair livremente. As pequenas casas ficaram, então, sem a proteção das muralhas e dos portões. A segurança passou a depender da polícia que, nessa nova situação, tinha por dever exercer as funções anteriormente exercidas pelas muralhas e portões: impedir a ação da violência criminosa.
Durante muito tempo isso funcionou bem. Não funciona mais. A casa grande está cheia de medo. A casa pequena está cheia de medo. As pessoas passaram a fugir dos espaços da cidade. Antigamente as famílias saíam às noites para simplesmente passear pelas ruas, praças e jardins. Era gostoso e tranquilo. Hoje ninguém pensa mais nisso. É mais seguro ficar em casa. A cidade se esvaziou. Ficou deserta. Lugar de perigo. É mais seguro ir passear no shopping. Com isso as cidades se degradam.
Um amigo meu me contou, horrorizado, o que lhe aconteceu em Recife. Ele queria atravessar uma ponte, mas a pessoa que o acompanhava o advertiu: “Não atravesse aquela ponte. Ela está cheia de crianças.” Até as crianças passaram a dar medo. As crianças de hoje não são como as de antigamente: elas se tornaram aprendizes do crime.
Os ricos tentaram reproduzir o modelo medieval das cidades fortificadas. Fecharam-se em condomínios guardados e edifícios de segurança máxima. Inutilmente. Não há muro, porta ou guarda que seja capaz de deter os criminosos. Hoje o crime é um dos negócios mais rendosos: fora das redes do fisco, fora da rede das punições. A impunidade do crime se tornou num incentivo ao crime. Por que trabalhar num emprego de oito horas que paga dois salários mínimos se resultado muito mais rendoso pode ser obtido numa ação de poucos minutos? O lucro vale o risco.
Eu amo a cidade, minha casa grande. É detestável ter medo de sair à noite, a pé, e ter de ficar em casa. Tenho saudade dos tempos em que as pessoas punham cadeiras na calçada para conversar. Tenho saudade dos tempos em que os namorados podiam namorar nos jardins. Jovem, eu caminhava do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, até a estação ferroviária da Paulista, às cinco da manhã. Eu era a única pessoa na rua. O único ruído que se ouvia era o ruído dos meus passos e o apito dos guardas noturnos. Eu não tinha medo. Caminhava cantando: “A noite termina, o dia já vem, a estrela da alva não deve tardar...”
No momento os bandidos estão levando a melhor sobre a polícia. E o fato é que o povo nem liga muito, porque não confia também na polícia. Todo mundo sabe dos acordos entre polícia e bandidos. O povo está abandonado à sua própria sorte. Não há para quem reclamar. De que adianta fazer a queixa se se sabe que ela é inútil? Se nem os assassinos são presos, que dizer dos ladrões de cartões de crédito, bolsas e toca-fitas? A querida “vozinha”, tia Alice, que hoje está completando noventa anos, teve seu cartão de banco roubado na agência da Caixão Econômica e só deu por isso quando descobriu que as economias que fizera durante toda a sua vida não mais se encontravam em sua conta.
Não quero um prefeito que prometa segurança. Essa promessa não pode ser cumprida. Mas quero um prefeito que prometa lutar por ela. A primeira condição para a renovação de Campinas é que ela se torne um espaço onde se possa caminhar sem medo.

Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

O aluno

São meus todos os versos já cantados;
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também, os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode,
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

José Paulo Paes, in De ontem para hoje

Níquel Náusea

 

Mas já que se há de escrever

Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem as palavras nas entrelinhas.

Clarice Lispector, in Crônicas para jovens: de escrita e vida

A Contadora de Filmes



[3]

Éramos cinco filhos na família. Quatro homens e eu. Nós cinco formávamos uma escadinha perfeita, em tamanho e idade. Eu era a menor. Vocês imaginam o que significa crescer numa casa só de irmãos homens? Nunca brinquei de boneca. Em compensação, era campeã em bolinhas de gude e no jogo de palitinhos. E na hora de matar lagartixas nas minas de cal ninguém ganhava de mim. Era eu botar o olho e paf, lagartixa morta.
Andava de pé no chão todo santo dia, fumava escondida, usava um boné de aba virada e tinha até aprendido a mijar de pé.
A gente mija de pé, a gente urina de cócoras.
E eu mijava em qualquer lugar do deserto de salitre, igual aos meus irmãos. Até nas competições de quem mijava mais longe às vezes eu ganhava. E contra o vento.
Quando fiz sete anos entrei na escola. Além do sacrifício de ter que usar saia, me custou um bocado acostumar a urinar como as senhoritas.
Custou mais do que aprender a ler.

[4]

Quando papai teve a ideia do concurso, eu tinha dez anos e estava no terceiro ano do primário. Sua ideia consistiu em mandar a gente, um por um, para o cinema, e depois nos fazer contar o filme. Quem contasse melhor iria toda vez que passasse um dos bons. Ou um mexicano. O mexicano podia ser bom ou ruim, para meu pai isso não importava. Desde, é claro, que houvesse dinheiro para a entrada.
Os outros iam ter de se conformar em ouvir, depois, o filme ser contado em casa. Nós todos gostamos da ideia; todos nós nos sentíamos capazes de ganhar. Não era em vão que, como todas as outras crianças do povoado, cada vez que íamos ao cinema saíamos imitando os mocinhos do filme em suas melhores cenas.
Meus irmãos sabiam imitar perfeitamente o caminhar cambaio e o olhar oblíquo de John Wayne, o gesto de desprezo de Humphrey Bogart e as incríveis caretas de Jerry Lewis.
Eu os matava de rir ao tratar de piscar as pestanas feito Marilyn Monroe, ou de imitar as boquinhas de menina inocente – voluptuosamente inocente – de Brigitte Bardot.

[5]

Alguns se perguntarão por que meu pai não ia, ele mesmo, ao cinema; pelo menos quando passassem um filme mexicano. Meu pai não conseguia andar. Tinha sofrido um acidente de trabalho que o deixou paralítico da cintura para baixo. Não trabalhava mais. Recebia uma pensão de invalidez que era uma miséria, mal dava para comer.
Nem preciso dizer que a gente não tinha nem para uma cadeira de rodas. Para levá-lo da sala para o quarto, ou do quarto para a porta da rua – onde ele gostava de beber sua garrafa de vinho tinto vendo passarem a tarde e seus amigos –, meus irmãos tinham adaptado as rodas de um velho triciclo na poltrona. O triciclo tinha sido o primeiro presente de páscoa do meu irmão mais velho e as rodas não aguentavam muito o peso do meu pai, dobravam, e era preciso ficar consertando tudo o tempo inteiro.
E a minha mãe? Bom, minha mãe, depois do acidente, abandonou meu pai. Abandonou meu pai e nos abandonou, os seus cinco filhos. Assim, num vupt! Por isso lá em casa meu pai tinha nos proibido de falar dela; da “sirigaita”, como a chamava com desdém.
Não me falem dessa sirigaita” – dizia ele, quando algum de nós, sem querer, deixava escapar a palavra mamãe.
Depois, entrava no silêncio e a gente levava horas até conseguir tirá-lo de lá.

Hernán Rivera Letelier, in A Contadora de Filmes

Sim, eu aceito

Nunca fui muito fã de contos de fadas nem de histórias de princesas. Meus desenhos favoritos – tão pouco previsíveis – eram os do Mogli e do Tintim. Aos 15, comecei a implicar com as comédias românticas, dizendo que eram todas histórias impossíveis, que nunca aconteceriam na minha vida. Sempre acreditei no amor, mas não nas histórias de cinema. Filha de virginiana germânica, aprendi a acreditar no pé no chão e no afeto. Mas parece que a vida quis me reservar algo diferente.
São Paulo, junho de 2013: foi quando ele me viu pela primeira vez. Viajou 8.000km para estar naquele casamento, mas eu nem o vi. Seis meses depois, fomos apresentados em Lisboa. Eu disse “Muito prazer” e ele respondeu “Tu não te lembras de mim, mas eu não esqueci de ti”. Frio na barriga. Conversamos a noite toda. Não contava com a ideia de me interessar por um homem separado, pai de uma filha de 3 anos. Os olhos dele brilhavam ao falar da menina e os meus brilhavam ao olhar para os dele. Mas soaram as 12 badaladas e eu tive que ir embora. Nunca gostei da Cinderela.
Segui para Coimbra com um nó na garganta, sabendo que havia deixado pontas soltas naquela história. Quando ele decidiu ir atrás de mim, eu já estava a caminho de Paris. Algumas horas depois, ele bateu na porta do meu quarto de hotel no Boulevard du Montparnasse, como nas melhores histórias de cinema. Nos despedimos com duas garrafas de vinho na cabeça e alguma angústia. Ele voltou para Portugal, eu voltei para o Brasil.
Achei que o romance acabava ali. Já era uma boa história para contar. Mas pouco tempo depois ele apareceu em São Paulo. Tive a esperança de conseguir parar o tempo naqueles dias. Ele embarcou de volta e eu tentei engolir o choro. Não consegui nem parar o tempo, nem engolir o choro. Tempos depois, decidi estudar em Roma. Arranjei uma escala em Lisboa. Desembarquei, abracei-o e disse que não queria me despedir dele. Ele disse que eu não precisaria me despedir e embarcou para Roma comigo. Dias depois, ele teve que ir à França e eu à República Tcheca. Realmente, aquela não era uma história fácil. Depois disso, houve mais do que saudade. Houve medo. Tentamos desistir de tudo, mas logo percebemos que já não havia volta.
Nos encontramos, então, no meio do oceano. Ilha de São Miguel dos Açores, Lagoa das Sete Cidades. A partir dali, eu decidi que não podia mais fugir. Meses depois, desembarquei em Lisboa com duas malas grandes e bastante medo. Começamos a namorar em Milão. Me apaixonei pela filha dele e ela por mim. Tempos depois tive que voltar para o Brasil. A vida e o trabalho não perdoam. Nos despedimos com lágrimas em Madri, sem saber o que esperar. Ele foi me ver em São Paulo de novo. Foi embora e eu fiz as malas outra vez. Decidimos viver juntos. Brigamos na Ilha da Madeira. Resolvemos. Brigamos em Londres. Resolvemos. Percebemos que nem as diferenças nem as distâncias eram mais fortes do que a vontade de estarmos juntos.
Agora, depois de mais de três anos no meio desse furacão geográfico, dei a ele de presente uma máquina de fazer espaguete. Talvez eu não seja muito boa com presentes. Mas ele tirou do bolso uma caixinha preta de veludo. Abriu-a, reluzente, e disse que se percorremos tantas distâncias e se fomos tão pacientes e tão resistentes, tinha certeza de que era a coisa certa a fazer.
Sim, é claro que eu quero, portuga. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nas chegadas e nas partidas, no hemisfério sul e no hemisfério norte. Impossível seria não querer. Impossível seria não me apaixonar por você nem pela nossa história. Que venham muitos anos, muitas malas pesadas e muitos cartões de embarque. Obrigada por nunca termos desistido.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

sábado, 27 de janeiro de 2024

Alcione 50 Anos | Estranha Loucura/ Faz uma Loucura por Mim

Meias verdades

Cada um com
suas meias verdades
não fazem sozinhos
uma inteira.
Onde estão, então,
a mais verdadeira?

A quem busca verdades,
elas não estão em mim
ou em ti,
estão em nós,
estão no diálogo.

Diego Ruas, in A Fome é a Mãe de Todas as Bombas

Como isso termina


O final é sempre uma surpresa. Até eu fiquei surpreso com o final.
Eu estava na cozinha preparando um sanduíche de geleia com pasta de amendoim. Minha mãe estava tirando o pó do alto da moldura das janelas, pó que você nunca vê, a menos que suba numa escada e olhe, que é o que ela estava fazendo. Eu me lembro de estar pensando que vida triste e horrível ela devia ter, para desperdiçar até mesmo um segundo limpando aquelas molduras, quando meu pai entrou. Eram umas quatro horas da tarde, o que era estranho porque eu não me lembrava da última vez que o tinha visto ainda com o sol brilhando, e ao olhar para ele naquela claridade, entendi por quê: ele não parecia bem. Na verdade, ele estava com uma aparência péssima. Ele largou alguma coisa em cima da mesa de jantar e entrou na cozinha, seus sapatos de sola de couro batendo no chão recém-encerado. Minha mãe escutou, e quando ele entrou na cozinha ela desceu da escada e largou o pano que estava usando na bancada, ao lado da cesta de pão, e se virou para olhá-lo com um olhar que eu só pude caracterizar como sendo de desespero. Sabia o que ele estava prestes a contar a ela, a nós. Ela sabia por que ele estava fazendo testes e biópsias, cuja natureza eles acharam melhor esconder de mim até terem certeza, e naquele dia tiveram certeza. Era por isso que ela estava limpando o alto das janelas, porque aquele era o dia em que saberiam e ela não queria pensar naquilo, não queria ficar ali sentada pensando no que poderia saber naquele dia.
E soube.
Está em toda parte — ele disse. Foi assim. Está em toda parte, ele disse, e se virou para sair. Minha mãe foi atrás dele, deixando-me ali imaginando o que, além de Deus, estaria em toda parte, e por que aquilo perturbava tanto meus pais. Mas não tive que imaginar por muito tempo.
Calculei o que era antes que eles me contassem.

Entretanto, ele não morreu. Ainda não. Em vez de morrer, ele se tornou um nadador. Havia anos que tínhamos uma piscina, mas ele nunca ligou para ela. Agora que estava o tempo todo em casa e precisava fazer exercício, agarrou-se à piscina como se tivesse nascido na água, como se fosse seu elemento natural. E ele era lindo de ver. Atravessava a água quase sem deslocá-la. Seu corpo longo e rosado, coberto de cicatrizes, lesões, hematomas e esfoladuras, cintilava no azul da piscina. Seus braços moviam-se diante dele com tanta sinceridade, como se estivesse acariciando a água em vez de usá-la para mover-se lá dentro. Suas pernas faziam movimentos precisos como os de um sapo atrás dele, e sua cabeça mergulhava e varava a superfície como um beijo. Isso levava horas. Submersa por tanto tempo, sua pele ficava encharcada de água, com as dobras inteiramente brancas. Uma vez o vi descascando a pele em tiras, devagar, metodicamente, como se estivesse na muda. O resto do dia ele passava quase todo dormindo. Quando não estava dormindo, eu às vezes o via com um olhar vago, como se estivesse em comunhão com um segredo. Observando-o, via que ele se tornava mais alheio a cada dia, e não só alheio a mim, mas alheio àquele tempo e àquele lugar. O modo como seus olhos afundavam na cabeça, desprovidos de fogo e paixão. O modo como seu corpo encolhia e murchava. O modo como ele parecia estar ouvindo uma voz que só ele podia ouvir.
Eu me consolava um pouco com o fato de que tudo aquilo estava acontecendo para o bem dele, que de alguma forma haveria um final feliz, e que mesmo aquela doença era uma metáfora de outra coisa: significava que ele estava ficando cansado do mundo. Isso tinha se tornado tão óbvio. Não havia mais gigantes, nem olhos que tudo veem, nem garotas do rio cujas vidas você podia salvar e que voltariam depois para salvar a sua. Ele tinha se tornado simplesmente Edward Bloom: Homem. Eu o tinha apanhado num mau momento de sua vida. E isso não era culpa dele. O mundo simplesmente não tinha mais a magia que permitia que ele vivesse nele com grandiosidade.
A doença era seu ingresso para um lugar melhor.
Eu agora sei.

Ainda assim, foi a melhor coisa que poderia ter acontecido para nós, essa viagem final. Bem, talvez não a melhor coisa, mas uma boa coisa, considerando todas as circunstâncias. Eu o via uma vez todas as noites — mais do que o via quando estava bem. Ele era o mesmo homem, até então. Senso de humor, intacto. Não sei por que isso parece importante, mas parece. Suponho que em alguns casos indique certa capacidade de recuperação, uma determinação, uma vontade inabalável.
Um homem estava conversando com um gafanhoto. O homem disse: “Sabe, existe um drinque com o seu nome.” E o gafanhoto disse: “Quer dizer que existe um drinque chamado Howard?”
E esta aqui: Um homem entrou num restaurante e pediu uma xícara de café sem creme. O garçom voltou uns minutos depois e disse, desculpando-se, que eles estavam sem creme. Ele se importaria de tomar o café sem leite?
Mas as piadas nem eram mais engraçadas. Estávamos simplesmente esperando pelo último dia. Estávamos contando piadas velhas, infames, aguardando o fim. Ele foi ficando cada vez mais cansado. Às vezes, no meio de uma piada, esquecia o que estava dizendo ou se enganava no final — dava um excelente remate, mas que pertencia a outra piada.
A própria piscina começou a se deteriorar. Ninguém mais cuidava dela. Estávamos atônitos contemplando o fim de meu pai. Ninguém a limpava nem colocava os produtos químicos que mantinham a água azul, e as algas começaram a crescer nas paredes, deixando a água verde-escura. Mas papai continuou a nadar nela até o fim. Mesmo quando começou a parecer mais um lago do que uma piscina, ele continuou nadando. Um dia, quando fui ver como ele estava, podia jurar que tinha visto um peixe — uma perca — subir à superfície atrás do anzol. Tive certeza de ter visto.
Papai — eu disse. — Você viu isso?
Ele tinha parado no meio de uma braçada e estava boiando.
Você viu aquele peixe, papai?
E então ri, porque olhei para o meu pai, contador de piadas, eterno cômico, e vi que ele parecia engraçado. Foi isso exatamente o que pensei, quando olhei para ele, pensei: Ele parece engraçado. E não deu outra, ele não tinha parado no meio de uma braçada. Ele tinha desmaiado, e seus pulmões estavam cheios d’água. Eu o tirei da piscina e chamei uma ambulância. Apertei seu estômago e a água saiu da sua boca como um esguicho. Esperei que abrisse um olho e desse uma piscadela, começasse a rir, transformasse aquele acontecimento real em algo diferente, em algo realmente espetacular e engraçado, algo para se recordar e rir. Segurei a mão dele e esperei.
Esperei um longo tempo.

Daniel Wallace, in Peixe Grande