quinta-feira, 25 de abril de 2024

Incognito | 1993

Os sonhos de Astiages

Após quarenta anos de reinado, morreu o rei medo Ciaxares, e sucedeu-o no trono seu filho Astiages. Tinha Astiages uma filha chamada Mandane; sonhou que ela vertia tanta urina que esta cobria toda a Ecbátana e toda a Ásia. Tratou de não deixá-la casar-se com nenhum medo, e deu-a em matrimônio ao persa Cambises, homem de boa família, caráter pacífico e condições medianas. Voltou Astiages a sonhar, e viu que do centro do corpo de sua filha saía uma parreira que cobria toda a Ásia com sua sombra. O significado era claro: o filho dela o substituiria. Mandou sua filha retornar, e quando esta deu a luz, entregou a criança ao seu parente Hárpago para que ele o matasse.
Hárpago sentiu medo e piedade, e entregou o menino ao vaqueiro Mitradates, ordenando-lhe que o matasse. Mitradates tinha Perra por esposa e esta acabara de parir um filho morto. O menino que lhe haviam entregado estava luxuosamente vestido; decidiram fazer a troca, pois também sabiam que era filho de Mandane e assim preservavam seu futuro. O menino cresceu e seus companheiros pastores proclamaram-no rei de seus jogos, e o menino rei se revelou inflexível.
Astiages inteirou-se e obrigou a Mitradates confessar sua origem. Soube da desobediência de Hárpago, mas fingiu perdoá-lo e convidou-o a um banquete, e pediu que lhe entregasse o filho para ser companheiro de seu neto. Durante o banquete fez servir a Hárpago, assados, pedaços de seu filho. Quando soube disso, Hárpago dominou-se. Astiages consultou novamente seus adivinhos, e eles responderam: Se vive, há de reinar; porém como já reinou entre os pastores, não há perigo de que alcance uma nova coroa. Satisfeito, Astiages enviou-o suposto filho de Mitradates aos seus verdadeiros pais, que ficaram felizes em vê-lo com vida. O menino cresceu, fez-se rapaz e jovem guerreiro, e, com a ajuda de Hárpago, destronou Astiages, tratando-o com benevolência. Assim fundou Ciro, o antigo pastor, o império persa, e assim o conta Heródoto no quinto dos Nove Livros da História.

Jorge Luis Borges, in Livro de Sonhos

Piratas do Tietê, por Laerte

Exame

Como sabemos se Telauge tinha ou não um caráter superior ao de Sócrates?
Não basta considerar que Sócrates teve uma morte mais ilustre; que disputou mais habilmente com os sofistas; que resistiu mais ao frio durante as noites; que considerou mais nobre recusar quando foi convocado para prender o homem de Salamina; que andava de maneira arrogante pelas ruas — embora isso seja duvidável.
Devemos examinar qual alma Sócrates possuía; se conseguia se satisfazer apenas sendo justo com os homens e piedoso no tocante aos deuses; se não se aborrecia futilmente com a vilania dos demais; se não se tornava escravo da ignorância alheia; se não considerava sua porção universal estranha ou insuportável; se impedia sua inteligência de simpatizar com os sentimentos da miserável carne.

Marco Aurélio, in Meditações

O alistamento

Os passos estão se tornando mais nítidos. Um pouco mais próximos. Agora soam quase perto. Ainda mais. Agora mais perto do que poderiam estar de mim. No entanto continuam a se aproximar. Agora não estão mais perto, estão em mim. Vão me ultrapassar e prosseguir? Seria a minha esperança, a minha salvação. Não sei mais com que sentido percebo distância. É que os passos não estão próximos e pesados, já não estão apenas em mim: eu marcho com eles, eu me engajei.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

Verdades e mentiras do "Tango de Nancy"


Tango de Nancy
(Chico Buarque e Edu Lobo – 1985)

Quem sou eu para falar de amor
Se o amor me consumiu até a espinha
[...]

Quem sou eu para falar de amor
Se de tanto me entregar nunca fui minha
O amor jamais foi meu
O amor me conheceu
Se esfregou na minha vida
E me deixou assim

Homens, eu nem fiz a soma
De quantos rolaram no meu camarim
Bocas chegavam a Roma passando por mim
Ela de braços abertos
Fazendo promessas
Meus deuses, enfim!
Eles gozando depressa
[...]
Eles querendo na hora
Por dentro, por fora
Por cima e por trás
Juro por Deus, de pés juntos
Que nunca mais

Analisaremos aqui o “Tango de Nancy” à luz do contexto dramático-musical para o qual ele foi concebido. Julgamos essa perspectiva interessante não por estarmos à procura de um sentido original da canção, mas porque analisá-la na peça teatral nos proporciona descobrir diferentes efeitos de sentido que não aparecem na canção veiculada em seus meios convencionais de circulação (rádio, internet, MP3, CD etc.). Submeteremos a análise desses efeitos a um foco que será nosso principal recorte metodológico aqui: centraremos o exame na figura do enunciador feminino (quem fala na canção). De antemão, advertimos que esse eu, que em literatura tem sido chamado, a nosso ver inapropriadamente, de eu lírico, não será pensado como um núcleo fechado e concentrado, exibindo, por meio da canção, seu “ponto de vista feminino” ou a voz de alguém representante de uma categoria genérica (mulher) ou profissional (prostituta). Ao contrário, esse eu será pensado como manifestação material de uma dispersão subjetiva complexa. Dispersão que se dá em função mesma dessa materialização (na canção e no texto da peça(1)). Acreditamos que uma análise do “Tango de Nancy” a partir de seu contexto dramático-musical nos possibilita entender alguns aspectos dessa dispersão. O instrumental teórico da Análise do Discurso (Maingueneau(2), Foucault(3), Bakhtin(4), embora não explicitado, foi utilizado na análise que aqui apresentamos.
O “Tango de Nancy” foi composto por Chico Buarque e Edu Lobo para a peça dramático-musical O corsário do rei, de autoria de Augusto Boal(5). A peça foi encenada pela primeira vez em 18 de setembro de 1985, no Teatro João Caetano (Rio de Janeiro), com Marco Nanini, Lucinha Lins, Nelson Xavier, dentre outros, e sob direção do autor. O próprio Edu Lobo foi responsável pela direção musical da peça, que teve a orquestração de Eduardo Souto Neto e a regência de Maurício Maestro. No mesmo ano, a canção é lançada no LP homônimo da peça, de Chico Buarque e Edu Lobo, na voz de Lucinha Lins, ela que interpretou, na montagem de 1985, o papel de Nancy, personagem que canta o tango.
Um ligeiro resumo da peça faz-se necessário aqui. O corsário do rei é uma obra metadiscursiva, isto é, que remete ao seu próprio campo discursivo a cena dramatúrgica. A cenografia principal é a de um bar portuário no Rio de Janeiro do começo do século XIX. O bar, em situação de insolvência financeira, é posto à venda pela proprietária e esta tenta convencer um negociante a comprá-lo. A transação é presenciada por prostitutas e um professor de História que frequentam o estabelecimento e, por vezes, interferem na conversa. De repente, revela-se que a clientela de bêbados está revoltada com a suspensão do crédito da cachaça e ameaça invadir para roubar a bebida. Um grupo de bêbados de fato invade o bar, armados de paus e pedras. A polícia é chamada. Porém o policial que chega alerta, morrendo de medo, sobre a chegada de uma frota de navios com comerciantes estrangeiros. Nesse ínterim, os bêbados desistem do assalto ao bar e decidem unir-se à patroa e ao negociante para reagir contra a invasão. Os “invasores”, porém, estão em missão de paz e propõem uma festa na sua chegada. É a propósito dessa festa que o professor sugere aos presentes naquele momento no bar a encenação de uma peça de teatro sobre outra invasão ocorrida um século antes. Essa cenografia, que a partir de então vai se desenrolar, a que chamamos secundária, na verdade vai ser frequentemente entrecortada pela cenografia principal, de modo que os personagens desta não apenas atuam como personagens daquela, mas também dialogam e tentam interferir nela, mediados pelo professor. É apenas por ela ser derivada da primeira que chamamos secundária, porque, de fato, é ela que prevalece e inclusive dá nome à peça.
Nessa cenografia superposta, os personagens representam, começando pela morte, vários momentos da vida de René Duguay-Trouin, corsário francês que viveu entre os anos l673 e 1736:
No leito de morte (III)
A infância (IV)
Primeiro encontro com o Rei Luís XIV (V)
As primeiras aventuras no mar (VI)
A prisão em Plymouth (Inglaterra) (VII)
A morte de Étienne, seu irmão (VIII)
As guerras no mar (IX)
A conquista do apoio do Rei para a invasão do Brasil (X)
A invasão do Rio de Janeiro (XIII)

Um dado histórico aqui é importante para melhor compreender-se a história encenada: os corsários eram navegadores armados que, entre os séculos XVI e XIX, vendiam seus serviços de pilhagem e combate navais às diversas nações da época. Diferentemente dos piratas, que agiam por conta própria, os corsários portavam uma carta fornecida pelo rei e, por meio desse documento (frequentemente falsificado), eles eram reconhecidos como força militar auxiliar do país. Desse modo, se fossem capturados, exibiam sua carta real e eram considerados prisioneiros de guerra, recebendo tratamento diferenciado e, muitas vezes, escapando da condenação à morte reservada aos piratas. Um desses corsários, René Duguay-Trouin, conseguiu, em 1711, invadir a cidade do Rio de Janeiro, sendo dessa invasão que trata a encenação encaixada na peça O corsário do rei.
Voltando a esta última, à peça principal, é importante notar que Nancy não é diretamente sua personagem, e sim da peça encaixada, que é, a um só tempo, concebida e encenada pelos personagens da peça-mãe. Ela aparece unicamente na cena VII (“A prisão em Plymouth”), considerando a divisão cênica da peça maior, e na quinta cena da representação secundária. Nesta, conta-se que, tendo se tornado corsário muito jovem, Duguay-Trouin é derrotado pelos ingleses logo na primeira batalha naval. Preso, ele é enviado para Plymouth, cidade inglesa onde vive e trabalha Nancy. Aí ela é criada de um hotel utilizado como prisão, para onde eram enviados prisioneiros de guerra antes de serem conduzidos ao tribunal. Sua missão: cuidar dos prisioneiros “fazendo comida, lavando prato, fazendo cama, cuidando ferida...(6)”.
A protagonista da canção da peça, portanto, é inglesa, e não francesa, como poderíamos julgar à primeira vista, levados pelas várias referências feitas ao universo francês pela peça e pelo próprio gênero da canção (marcado em seu título), julgamento reforçado pela relativa reputação da cidade francesa de Nancy e pelo título do famoso longa-metragem “O último tango em Paris”. Assim, o que está em análise neste momento é o “Tango de Nancy” ([‘nænsi] ou, aportuguesadamente, “nénci”) e não o “Tango de Nancy” ([nã’si] ou “nansí”). Eis o primeiro elemento dessa identidade subjetiva que estamos aqui investigando. Elemento a não se desprezar, pois, no decorrer da cena VIII, sua aparição, seguida pela execução do tango e por seu diálogo com o “público” (personagens da cena principal), marca um deslocamento da cenografia da França para a Inglaterra e consequentemente a apresentação de um segundo ponto de vista sobre os acontecimentos relatados. Tendo sido apresentada nas cenas anteriores a guerra da França contra a Inglaterra do ponto de vista dos representantes das classes dominantes francesas (a nobreza, o clero, a burocracia), que, diante da iminência da derrota, decidem “privatizar a guerra”, Nancy apresenta, nessa cena, não o ponto de vista das classes dominantes inglesas, mas o seu ponto de vista enquanto vítima indireta dessa privatização. É uma mudança de cenografia, mas é também uma mudança de foco, que sai do macro para o micropolítico. Com efeito, a primeira fala de Nancy é o tango, que representa ele mesmo mais duas cenas: uma cena definida pelo gênero musical (cena genérica), em que Nancy aparece como cantora de tango, e uma cenografia que pode ser classificada como um “desabafo” de uma mulher que se sente sufocada pelo excesso. A primeira marca uma identidade fugaz (que dura os poucos minutos de execução do tango), mas que, de certa maneira, informa sobre o estado emocional e a condição social de Nancy. Dado que o tango enquanto gênero musical surgiu no final do século XIX e não existia portanto nem no período da cenografia da peça-mãe (início do século XIX) nem muito menos no período da cenografia da peça encaixada (início do século XIII), a escolha de tal gênero musical representa uma licença artística que certamente tem o propósito de captar o etos de gravidade, exasperação e dramaticidade que o tem caracterizado. De fato, a fala da personagem mantém esse etos nos momentos que sucedem a execução do tango, já que ela, dirigindo-se aos expectadores (personagens da cena primária), explica didaticamente, também como um desabafo, o motivo “macropolítico” do seu infortúnio. Por outro lado, também a cena genérica contribui para o clima de excitação masculina (e também feminina) com a presença da mulher e para a sua entrada “em grande estilo” na peça. Enfatizamos a palavra “presença” porque, embora haja personagens mulheres na peça principal, elas são mulheres sem presença, tanto que não têm nome, sendo identificadas no texto dramático por epítetos (“Patroa”, “Tísica”, “Gorda”, “Cabisbaixa”). Assim, um pouco antes da entrada de Nancy cantando o tango, os personagens-espectadores reclamam do personagem-dramaturgo justamente a presença de uma mulher:

BÊBADO VALENTÃO
É muito moralista essa peça, o senhor não acha?

BÊBADO MIÚDO
Tem gosto pra tudo...

TÍSICA
Não tinha mulher nesse barco?

CABISBAIXA
Umas profissionais... Podiam ter serventia…

GORDA
Com tantos homens tanto tempo em tanto mar... tão sozinhos...(7)

A outra cena evocada pelo tango funciona como uma pergunta retórica que sintetiza a história micropolítica de Nancy. Trata-se de uma cenografia que simula uma réplica conversacional (resposta a alguém que supostamente teria solicitado ao enunciador “falar de amor”) e que se constitui estruturalmente de duas cenas encaixadas: uma se põe no presente da enunciação e a outra se põe no pretérito, seja perfeito, seja imperfeito, funcionando como pano de fundo “argumentativo”, isto é, que justifica, explica ou contextualiza a cena do presente.
Assim, a canção se inicia a partir de uma frase no presente (“Quem sou eu para falar de amor”) que é articulada por meio da partícula argumentativa “se” à seguinte, que se situa em tempo anterior à enunciação (“Se o amor me consumiu até a espinha”), produzindo um esquema, recorrente em toda a canção, que poderíamos exprimir como: “como X (presente), se Y (passado)?”. De fato, se observamos as frases seguintes da primeira estrofe, vemos que mais uma vez o esquema prossegue, porém articulado de modo gramaticalmente diferente (articulação gramatical provavelmente exigida pela melodia):

Dos meus beijos que falar
Dos desejos de queimar
E dos beijos que apagaram os desejos que eu tinha

Ou seja, como falar em beijos e desejos (X) no presente, se, no passado, os beijos recebidos apagaram os desejos (Y)?
A segunda estrofe repete o esquema, ficando mais claro o processo simultâneo de metonimização e personificação do conteúdo “amor”, objeto polêmico da enunciação (“falar de amor”), como estratégia para dotar de força dramática o argumento Y. O amor, na verdade síntese das frustradas relações amorosas de Nancy (“O amor jamais foi meu”), é então relatado como tendo tido um poder anímico e destrutivo sobre ela (“me conheceu / Se esfregou na minha vida / E me deixou assim”), relato já iniciado na primeira estrofe (“Se o amor me consumiu até a espinha”).
Podemos dizer que esse esquema reproduz um discurso amoroso que apresenta o amor feminino como uma entidade que integraria sentimento (imaterial) e desejo sexual (material). Essa entidade harmônica, sintética, fonte de poder da mulher sobre o homem, mas que sobre a qual ela não tem absoluto controle, capta na língua uma forte legitimação (pois a palavra “amor” pode designar sexo e sentimento). No entanto, nesse discurso, o amor encontraria na “vida real” sua degradação, a destruição de sua inteireza, no que resultaria na dominação e desgaste da amante pelo aspecto material do amor. Podemos encontrar esse discurso em outras canções de Chico Buarque, como “Viver do amor” e “Ana de Amsterdam”, e, de uma forma ligeiramente diferente, em “Maria Rosa”, de Lupicínio Rodrigues.
A narrativa argumentativa prossegue na terceira estrofe, tomando contornos ainda mais fortes. Intensificadores jogam aí um papel fundamental: “Homens, eu nem fiz a soma...”, “Bocas chegavam a Roma passando por mim”. Essa intensificação culmina com uma “tomada cinematográfica” que se estende quase até o fim da canção. Tratando-se a si mesma como terceira pessoa (“ela”), Nancy exibe subitamente, na entonação nervosa da melodia, a dramática cena-síntese da imolação de sua sexualidade: “Ela de braços abertos / Fazendo promessas / Meus deuses, enfim!”. Em mais essa cenografia encaixada, Nancy se mostra e se vê como personagem que investe na dimensão imaterial do amor. A mulher oferece aos homens, em busca do amor integral (“Na esperança de casar / [...] outro mar”, como diria Ana de Amsterdam, sua colega de infortúnio), seu “alto-corporal” na relação amorosa: os braços, a boca (das promessas), a mente (dos deuses), enfim, o que o discurso amoroso alegoriza como o “coração”. Por sua vez, o outro, o homem (“eles”) é visto e apresentado como aquele que, ao contrário, ignora a sacralização do amor proposta por Nancy e investe exclusivamente no baixo-corporal – o ato carnal puro, imediato e intenso (em oposição ao extenso, que certamente ela preferiria): “gozando depressa”, “querendo na hora / Por dentro, por fora / Por cima e por trás”. Em suma, a tragédia de Nancy foi ter apostado que, oferecendo seu corpo e sua alma a tantos homens, algum realizaria seu sonho do amor integral. Aposta malograda, pois nenhum deles aceitou os dois, preenchendo o espaço amoroso que ela reservara ao “coração” com mais e mais sexo.
No final, na última frase da canção, e também súbita e energicamente, a reação: “Juro por Deus, de pés juntos / Que nunca mais”. Fecha-se a cortina da cenografia criada pela Nancy personagem da canção, fecha-se a cortina da cena genérica criada pela Nancy personagem da peça. Fecha-se o coração de Nancy para tentativas futuras. Nancy nega seu tango. Porque se o gênero tango nos fala geralmente do amor trágico, esse é o último tango de Nancy (“nunca mais”).

Depois de cantar, ela confirma e assume seu etos de mulher de presença. Presente integralmente no amor integral que oferece aos homens; presente na reação e indignação diante desses homens que não o aceitam. E agora ela está presente na peça criada pelo professor-personagem, dialogando com os espectadores-personagens que lhe admiram a presença, eles tão sem presença, tanto os homens quanto as mulheres, referidos por suas qualidades tão pouco dignas (“Bêbado Valentão”, “Bêbado Miúdo”, “Cabisbaixa” etc.).
Como dissemos, a personagem dá continuidade ao etos de “mulher de fibra”, indignada e decidida que seu tango tão bem manifesta. Suas palavras, que se seguem à interpretação da canção na peça, são, como também já dissemos, uma explicação dos motivos de sua angústia. Esses esclarecimentos, lidos à luz da letra da canção, acabam, no entanto, por revelar que Nancy, mais do que fazer comida, lavar prato, fazer cama e cuidar das feridas dos prisioneiros, oferecia-se sexualmente aos mesmos em busca, como vimos, do amor integral. É o seu erro trágico, mas é também sua paixão, pela qual será capaz de trair sua nação. Nesse momento, portanto, Nancy revela-se transgressora da ordem, pois, sendo ex-mulher de um capitão ainda apaixonado e administrador do hotel-cárcere onde trabalha, ela transa com piratas, corsários e marinheiros estrangeiros e, provavelmente, o homem condenado à morte que aceitasse seu amor ganharia em troca a vida e a liberdade. Nancy é, assim, uma mulher que, em nome do seu amor, “trai” sua pátria. Nesse sentido, ela se irmana a outra personagem dramático-musical de Chico Buarque: Bárbara, da peça também histórica Calabar: o elogio da traição, criada em parceria com Ruy Guerra(8).

Na sequência da peça, eis que chega ao hotel-cárcere de Plymouth para ser julgado o jovem Duguay-Trouin. Posto aos cuidados de Nancy, ela é seduzida e renega a jura feita no final do tango. Após cantar o “Chorinho da abordagem”(9) e travar um diálogo carnavalesco, em que as atrocidades (mentirosas) cometidas pelo corsário, descritas com riqueza de detalhes e orgulho, em vez de chocarem Nancy, deixam-na ainda mais fascinada por ele, o casal se entrega a intensas jornadas de amor carnal, exatamente aquilo de que ela se queixava no tango.
No final da cena, Duguay-Trouin trai Nancy. Ele arma um plano de fuga que envolve sua libertação simultânea do cárcere do Capitão e do amor de Nancy:

DUGUAY-TROUIN
É preciso que ela sinta o seu amor traído. Paixão sem recompensa. Vamos fazer assim, Capitão: essa moça pensa que esta noite eu vou fugir com ela. Lá embaixo no porto tem um navio sueco, “Estrela da Noite”. Eu disse que ia comprar esse navio pra ela, mas estou sem dinheiro.(10)

Numa nova cenografia, dessa vez criada pela fala do corsário (o que dá à peça contornos vertiginosos, dado o encaixamento sucessivo e vertical de cenografias), os dois imaginam o momento do encontro entre Duguay-Trouin e Nancy:

DUGUAY-TROUIN
(Os atores trocam o cenário do teatrinho: o porto) Nancy vai entrar por aquela porta, vestida com seu vestido mais rendado, pérolas, brilhantes, anéis e braceletes (entra Nancy como ele diz)... apaixonada…

[...]

CAPITÃO
E eu? O que é que eu faço?

DUGUAY-TROUIN
Espera atrás do muro, porque depois que eu for embora, ela fica sozinha, infeliz, triste e desolada, lágrima nos olhos e aí o senhor sai de trás do muro e ela cairá nos seus braços! Elementar, meu caro Capitão…

CAPITÃO
E você?

DUGUAY-TROUIN
Eu tomo o navio!

CAPITÃO
E vai fugir???!!!

DUGUAY-TROUIN
Pelas barbas do profeta, não! Claro que não. Só o tempo de fazer de conta. Dou uma voltinha no “Estrela da Noite” e vou me depositar na prisão que o senhor indicar...(11)

Essa cenografia imaginada se transforma em cenografia “real”, ou seja, passa para o mesmo plano daquela que a engendrou. O encontro, portanto, se dá “de fato”, tudo acontece como Duguay-Trouin previu, salvo a reação de Nancy, que, mais uma vez, desmente o seu tango com outra canção, “Marinheiros de muitos portos”:(12)

Quem me dera ficar, meu amor, de uma vez
Mas escuta o que dizem as ondas do mar
[...]
Minha vida, querida, não é nenhum mar de rosas
[…]

Quem me dera amarrar meu amor quase um mês
Mas escuta o que dizem as pedras do cais
[...]
Minha vida, querido, não é nenhum mar de rosas
[...]

Essa canção, cantada em dueto por Duguay-Trouin e Nancy, mostra então que o que esta última diz em seu tango, se não era uma mentira, não era toda a verdade. Nancy não está sufocada pelo excesso, como o tango dá a entender. Ao contrário, se identificando às avessas com Duguay-Trouin, marinheiro que diz amar eternamente uma mulher a cada porto, ela ama “todos os marinheiros no mesmo porto”. De amante frustrada por nunca encontrar homem que aceite seu amor integral, que queira trocar a prisão de Plymouth pela prisão de seu amor (ou, mais tragicamente, que preferem a morte), ela se revela o seu contrário: amante do excesso e da variedade, que ama os marinheiros exatamente porque eles não se fixam, e não querem outra coisa senão o seu sexo.
Poder-se-ia objetar: não estará Nancy, como forma de se proteger contra mais uma cruel decepção, fingindo diante de Duguay-Trouin, sendo o conteúdo de sua fala em “Marinheiros de muitos portos”, na verdade, a mentira? Não se trataria de um tipo de resignação amorosa como a que se ouve em “Olha Maria”? (Tom Jobim, Chico Buarque e Vinicius de Moraes):

Vai, alegria
Que a vida, Maria
Não passa de um dia
Não vou te prender

Parece que não, conforme mostra a didascália que segue a canção:

(Duguay-Trouin parte no naviozinho “Estrela da Noite” durante a canção. Nancy finge que chora, depois volta a trabalhar. O Capitão quer beijá-la e leva um tapa na cara).(13)

Bem entendido, tal didascália não é do dramaturgo-personagem, o professor de História, e sim do autor, Augusto Boal. Portanto, da consciência de quem, em princípio, tem a visão do todo da obra escrita (ainda que essa totalidade seja aberta, pois não se pode ter o controle absoluto dos sentidos do que se fala ou escreve). Ela revela que Nancy, mais do que vítima, administra suas relações com os marinheiros de modo a gerar neles um desejo de voltar, muito embora tenha dito “volta não” (dizer “volte”, por contrariar o regime da vida marinheira, poderia gerar o desejo de não mais voltar). Sua fala na canção, por meio de um etos leve, sereno e até bem-humorado, manifesta um discurso amoroso em certa medida oposto ao discurso de seu tango. Segundo tal discurso, o amor, mais do que vivido, deve ser usufruído. Esse usufruto deve ser regulado pelo critério da variedade (um de cada vez), sem que se descarte a possibilidade de uma mesma relação amorosa ser eventualmente usufruída mais de uma vez. O todo desse amor corresponde ao amor físico, usufruído com intensidade, porém com desprendimento e sem sentimentalismo(14).
Os fingimentos dentro e após essa canção, essa surpreendente contradição, transformam o discurso amoroso do “Tango de Nancy” numa farsa? Teria ela enganado os públicos (da peça principal e da peça encaixada), assim como enganou o corsário que pensava estar enganando-a? Sim e não. Do ponto de vista lógico e linear da sucessão das cenografias encaixadas, sim. Ou também se acreditarmos numa unicidade do sujeito e negarmos a possibilidade deste (mesmo fictício) conter em si clivagens, contradições. Mas, se pensarmos que tais discursos estão ancorados em regimes de verdade acerca do amor e que, como dissemos no início, o que se chama “personagem”, “narrador” ou “eu lírico” é antes uma unidade dispersa, isto é, um princípio de agrupamento de uma pluralidade de representações, posições e funções(15), podemos responder que não. As duas Nancys contêm em si cada uma um pouco de verdade e de mentira.
Aliás, a problemática da verdade e da mentira não é senão a questão de fundo da peça de Boal, sintetizada na canção de abertura, da qual destacamos os nove últimos versos:

Na verdade cresce a ira
A mentira é só desdém
A verdade faz a mira
A mentira diz amém
A verdade quando atira
O cartucho vai e vem
A verdade é que no bucho
De toda mentira
Verdade tem

(“Verdadeira embolada ou O incrível duelo da Mentira com a Verdade”).

Notas:
1. À representação da peça, infelizmente, não tivemos acesso.
2. MAINGUENEAU, Dominique. Cenas de enunciação. São Paulo: Parábola, 2008.
3. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2003.
4. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
5. BOAL, Augusto; BUARQUE, Chico; LOBO, Edu. O corsário do rei. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
6. BOAL et al. Op. cit., p. 61.
7. BOAL et al. Op. cit., p. 58.
8. BUARQUE, Chico; GUERRA, Ruy. Calabar: o elogio da traição. 3a ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1975.
9. Canção gravada, no álbum O corsário do rei, por Edu Lobo e Tom Jobim, sob o título “Choro bandido”.
10. BOAL et al. Op. cit., p. 70.
11. BOAL et al. Op. cit., p. 70-71.
12. BOAL et al. Op. cit., p. 59. Canção gravada, no álbum O corsário do rei, por Chico Buarque e Gal Costa, sob o título “A mulher de cada porto”.
13. BOAL et al. Op. cit., p. 72. O grifo é nosso.
14. Dir-se-ia um amor que seguiria a lógica do consumo da “modernidade leve ou líquida”, conforme Z. Bauman (A modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001). No entanto, não é senão a contrapartida feminina do amor de marinheiro cujo estilo de vida, conforme W. Benjamin (“O narrador”. In: Textos escolhidos. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro, 1983), é um dos constituintes, por meio de suas narrativas, do mundo simbólico pré-capitalista. Por outro lado, se pensarmos que se trata de uma leitura desse estilo feita na contemporaneidade, a primeira hipótese não é absurda.
15. FOUCAULT. Op. cit., p. 58.

Nelson Barros da Costa, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Cássia Eller | Partido Alto

A implosão da mentira | 2

Evidente/mente a crer
nos que me mentem
uma flor nasceu em Hiroshima
e em Auschwitz havia um circo
permanente.

Mentem. Mentem caricaturalmente:

mentem como a careca
mente ao pente,
mentem como a dentadura
mente ao dente,
mentem como a carroça
à besta em frente,
mentem como a doença
ao doente,
mentem clara/mente
como o espelho transparente.

Mentem deslavada/mente,
como nenhuma lavadeira mente
ao ver a nódoa sobre o linho. Mentem
com a cara limpa e nas mãos
o sangue quente. Mentem
ardente/mente como um doente
nos seus instantes de febre. Mentem
fabulosa/mente como o caçador que quer passar
gato por lebre. E nessa trilha de mentira
a caça é que caça o caçador
com a armadilha.

E assim cada qual
mente industrial? Mente,
mente partidária? Mente,
mente incivil? Mente,
mente tropical? Mente,
mente incontinente? Mente,
mente hereditária? Mente,
mente, mente, mente.
E de tanto tão brava/mente
constroem um país
de mentira
diária/mente.

Affonso Romano de Sant’Anna, in A implosão da mentira e outros poemas

Considerações Iatrofilosóficas

Realmente, como vocês devem estar cansados de me ver repetir, não se pode querer tudo neste mundo. Há gente, contudo, como eu, que continua neuroticamente tentando. E não consegue, claro. Por exemplo, aqui com o juízo coçando, eu ia falar mal do governo outra vez. Como também já disse, não é que eu goste de falar mal do governo. Pelo contrário, queria falar bem, mas sabem como é, às vezes fica difícil (lá ia eu de novo, mil perdões). Pronto, não vou falar mal do governo. Mas aí outro problema que me aflige se apresentou, como é também freqüente: um dos meus acessozinhos de pernosticismo, no título acima, com o uso de uma palavra que nem mesmo está registrada nos dicionários que consultei, embora sua formação me pareça tão legítima quanto a de “imexível”. Procurei esquivar-me, mas não deu e me redimo parcialmente, explicando que “iatro” é um elemento de composição que vem do grego e quer dizer “médico”. Por exemplo, “iatrogênico”, palavra que existe mesmo, qualifica uma enfermidade ou anomalia provocada pelo tratamento, ou seja, pelo médico. Não sei nem por que ela existe, pois ninguém ignora que médico não comete esse tipo de erro, como, segundo me dizem, costuma ser a posição dos conselhos regionais de medicina diante de denúncias — sempre calúnias geradas por pacientes irresponsáveis e, notadamente, pela imprensa, como todas as desgraças e calamidades.
Preâmbulo concluído, apresso-me a apresentar-lhes meu grande amigo Toinho Sabacu, conceituado cidadão de Itaparica, de quem nunca lhes falei antes devido a injusto esquecimento, pois ele, por suas inúmeras boas qualidades, já de muito merecia ser mais conhecido. E também porque, apesar de sermos amigos, ai de nós, há mais de 60 anos, não prestara suficiente atenção a certas colocações suas (vejam como posso não ser craque, mas dá para manejar o linguajar contemporâneo), que considero educativas, relevantes e de acentuado interesse público. No exemplo que vou narrar-lhes, as utilidades práticas e filosóficas são evidentes e devem interessar bastante aos que se preocupam com a saúde dos brasileiros, na vanguarda dos quais está o governo (pronto, lá vou eu novamente; por favor, ignorem esta última ironia).
Toinho é, que eu saiba, o autor da metáfora da catraca, alusão ao inevitável transcurso de todos nós desta para melhor. Ele sabe que ninguém escapa de passar pela catraca e, da mesma forma que a maioria, deseja adiar esse momento, digamos, desagradável, o máximo possível. É, aliás, da ala radical, não quer nem ouvir falar na catraca. Cuida-se com seriedade, não fuma, só bebe um copinho de cerveja de caju em caju, não come o que faz mal e, enfim, obedece escrupulosamente às recomendações aplicáveis à preservação da boa saúde. E oferece conselhos e exemplos práticos sempre que surge uma ocasião oportuna. Como os que expôs há pouco tempo, em relação a adivinhe o quê. Claro, exame de próstata, ato execrado pelos varões em geral e especialmente os itaparicanos, eis que a machidão altiva por lá impera, em grau ainda maior que entre outras coletividades. Ele me contou por que, apesar de seus princípios, a lembrança da catraca o leva a fazer o exame com resignação e assiduidade, sem receio ou acanhamento.
O médico me disse — disse ele — uma coisa importante. Ele queria fazer o exame, mas mandava minha natureza perguntar se não dava para quebrar o galho sem precisar enfiar o dedo num orifício de grande privacidade, em que eu nunca aprovei enfiar nada, pelo menos no meu. Aí ele me explicou que o exame do PSA era uma indicação importante, mas insuficiente, por isso e por aquilo. E, no que se refere à ultrassonografia, ele me elucidou: “Seu Antônio, vamos comparar a ultrassonografia a uma fotografia. Ela me dá uma visão de sua próstata, do tamanho a outros aspectos, é mais ou menos como uma foto. Mas, se eu puser um grãozinho de areia da praia na sua mão e fizer a foto dela, o senhor não vai enxergar o grãozinho. No entanto, se o senhor passar o dedo na mão, vai sentir alguma coisa, por mais miudinha que seja. É por isso que, apesar de compreender e respeitar a sua posição, enfiar o dedo é indispensável para um exame correto.”
E o que foi que você respondeu?
Ah, então pode até enfiar os cinco, doutor. Eu sou um homem de decisão e não é assim que eu vou dar moleza para a catraca.
Impressionado com a destemida atitude, passo adiante para o distinto leitor que ainda reluta e para as pessoas a ele afeiçoadas. É de fato rematada frescura esse negócio de não permitir o exame da dedada, catraquismo explícito, para não dizer pior. E acrescento um complemento adicional à lição. Outro amigo nosso, viúvo e em seus galantes 66 anos, tem-se recusado a fazer uma operação na próstata, porque traz a possibilidade de torná-lo impotente.
Que é que você está me dizendo? — espantou-se Toinho. — Ele não vai fazer a operação com medo disso? E ainda mais com 66 anos?
Pois é.
Interessante essa, muito interessante. Agora eu lhe pergunto, ele quer morrer com uma ereção, é isso? — Indagou ele, sem propriamente usar a expressão “com uma ereção”, mas outra, essa mesma em que vocês estão pensando. — É, bonita morte. Caixão especial abaulado no meio, algumas pessoas querendo conferir, coisa fina mesmo, uma beleza. E de fato não se pode negar que tem uma vantagem nisso.
Vantagem, que vantagem?
Ele vai poder transar com todas as caveirinhas do cemitério, não deve ser isso que ele está querendo?

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

Bicudinho, de Caco Galhardo

A Contadora de Filmes | [16]

Meu talento, em todo caso, não se sustentava apenas na minha louca imaginação.
Nem na minha boa memória. Nem nos floreios aprendidos com minha mãe e nos roucos narradores das radionovelas (em vez de dizer “Então beijou-a na boca”, eu me esmerava um pouquinho mais: “Então apagou o cigarro, olhou-a nos olhos, rodeou-a com seus braços fornidos e posou seus lábios nos dela”). Nada disso importava tanto como a concentração.
O principal era a concentração.
Eu tinha um poder de concentração à prova de tudo. À prova das pessoas que iam ao cinema para conversar. À prova dos gritos dos menores. À prova dos coques na cabeça que lá de trás os barrabás maiores distribuíam. Mas, acima de tudo, à prova desses meninos licenciosos e um tanto maiores que iam ao cinema não para ver o filme, mas para dar o bote nas meninas.
Para eles, era como um esporte. E se uma de nós não deixava, eles chamavam de “pirralha” e se lançavam em cima de alguma outra. Sentavam-se ao lado de uma que estivesse sozinha e pouco a pouco pegavam em sua mão. Depois, tratavam de abraçá-la. De beijá-la. Alentados pelas meninas mais lançadas, ou pelas mais medrosas, alguns chegavam à ousadia de apertar seus seios. Ou de meter a mão no meio de suas pernas.
(Uma vez um dos barrabás mais grandalhões – diziam que era uma aposta – tirou a calcinha cor de rosa de uma menina, fez com que girasse triunfalmente sobre as cabeças e lançou-a ao ar, e como o filme era chatíssimo, os espectadores, com grande alvoroço, começaram a jogar a calcinha de um para outro).
Eu não deixava.
Mesmo que me dissessem que eu estava bancando a mosca morta. Não me importava nem um pouco. A verdade é que apesar de meus curtos anos eu já havia brincado brincadeiras de papai e mamãe com os amigos dos meus irmãos. Mas no cinema, eu ia para ver o filme.
Não podia, por motivo algum, me desconcentrar.

Hernán Rivera Letelier, in A Contadora de Filmes

O andarilho


Era cerca de meia-noite quando Zaratustra seguiu para o cume da ilha, a fim de chegar à outra costa de manhã cedo: pois lá pretendia tomar um barco. Naquele lugar havia uma boa enseada, onde barcos estrangeiros também gostavam de ancorar; eles levavam os que queriam deixar as ilhas bem-aventuradas e atravessar o mar. Enquanto Zaratustra subia o monte, lembrou-se das muitas caminhadas solitárias que fizera desde menino, e dos numerosos montes, cumes e vertentes que já havia escalado.
Eu sou um andarilho e um escalador de montanhas, disse para seu coração, eu não gosto das planícies e, ao que parece, não posso ficar muito tempo parado.
E, seja lá o que ainda me aconteça, como destino e como vivência, — sempre haverá uma caminhada e uma escalada de montanha: afinal, vivencia-se apenas a si mesmo.
Passou o tempo em que me podiam suceder acasos; e o que poderia ainda me tocar que já não fosse meu?
Ele apenas retorna para casa, regressa para mim — meu próprio Eu, e o que dele há muito tempo se achava no estrangeiro, disperso entre coisas e acasos.
E ainda uma coisa eu sei: agora me acho diante de meu último cume, e daquele que mais longamente me foi poupado. Ah, devo encetar meu caminho mais duro! Ah, comecei minha mais solitária caminhada!
Mas quem é de meu feitio não foge a esta hora: aquela que lhe diz: “Agora segues o teu caminho de grandeza! Cume e abismo — juntaram-se agora num só!
Segues teu caminho de grandeza: tornou-se teu último refúgio o que até então era teu último perigo!
Segues teu caminho de grandeza; essa deve ser agora tua maior coragem: que não haja mais nenhum caminho atrás de ti!
Segues teu caminho de grandeza; aqui ninguém te acompanhará furtivamente! Teus próprios pés apagaram o caminho atrás de ti, e acima dele está escrito: Impossibilidade.
E, se todas as escadas te faltarem doravante, terás de saber como subir sobre tua própria cabeça: de que outra forma poderias desejar subir?
Sobre tua própria cabeça e além do teu próprio coração! O mais suave em ti deve agora se tornar o mais duro.
Quem sempre se poupou muito, termina por adoecer do seu muito poupar-se. Louvado seja o que endurece! Não louvo a terra em que mel e manteiga — fluem!
Olhar para longe de si é necessário, a fim de ver muito: — todo escalador de montanhas necessita essa dureza.
Mas quem, como homem do conhecimento, olha de maneira importuna, como poderia ver, em todas as coisas, mais do que suas razões exteriores?
Mas tu, ó Zaratustra, querias ver a razão e o pano de fundo de todas as coisas: então tens de subir acima de ti mesmo — para o alto, para além, até que tenhas inclusive tuas estrelas abaixo de ti!”
Sim, olhar do alto para mim mesmo e até para minhas estrelas: apenas isso eu chamaria de meu cume, isso me restaria como meu último cume! —

Assim falou Zaratustra para si mesmo ao subir, consolando seu coração com duras máximas: pois ele estava ferido no coração, como jamais estivera antes. E, quando chegou ao alto da montanha, eis que o outro mar se estendia à sua frente, e ele permaneceu longamente parado e em silêncio. Mas a noite estava fria naquelas alturas, e também clara e estrelada.
Reconheço a minha sina, disse afinal, com tristeza. Pois bem! Estou pronto. Começa a minha última solidão.
Ah, esse triste e negro mar abaixo de mim! Ah, esse prenhe desconsolo noturno! Ah, mar e destino! Rumo a vós devo agora descer!
Acho-me diante de minha mais alta montanha e de minha mais longa caminhada: por isso, devo antes descer mais profundamente do que jamais desci:
descer mais profundamente na dor do que jamais desci, até sua mais negra maré! Assim quer meu destino: pois bem, estou pronto!
De onde vêm as mais altas montanhas?, perguntei certa vez. Então aprendi que vêm do mar.
Esse testemunho está inscrito em suas rochas e nas paredes de seus cumes. É a partir do mais profundo que o mais elevado deve chegar à sua altura. —

Assim falou Zaratustra no pico da montanha, onde fazia frio; mas, quando ele chegou à vizinhança do mar e, afinal, encontrava-se sozinho entre os rochedos, havia se cansado no caminho e estava com ainda mais anseio do que antes.
Tudo ainda dorme, falou; também o mar dorme. Ébrio de sono e alheio olha ele para mim.
Mas sua respiração é quente, eu sinto isso. E sinto também que ele sonha. Revolve-se, sonhando, sobre duras almofadas.
Escuta! Escuta! Como ele geme, com más recordações! Ou más expectativas?
Ah, estou triste juntamente contigo, ó monstro escuro, e aborrecido comigo mesmo por tua causa.
Ah, que a minha mão não tenha força bastante! De bom grado, em verdade, eu te redimiria dos maus sonhos! —

Ao falar assim, Zaratustra riu de si mesmo com tristeza e amargura. O quê, Zaratustra!, disse ele, ainda queres cantar consolos para o mar?
Ah, carinhoso tolo Zaratustra, pródigo e beato na confiança! Mas sempre foste assim: sempre te achegaste confiantemente a tudo que é terrível.
Todo monstro quiseste acariciar. Um bafo quente, algum pelo macio na pata —: e logo estavas pronto para amá-lo e atraí-lo.
O amor é o perigo do mais solitário, o amor a tudo, bastando que viva! São de rir, em verdade, minha tolice e minha modéstia no amor! —

Assim falou Zaratustra, e nisso riu novamente: mas então se lembrou dos amigos que abandonara — e, como se os tivesse ofendido com seus pensamentos, irritou-se com seus pensamentos. E logo sucedeu que aquele que chorava riu: — de raiva e anseio Zaratustra chorou amargamente.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

terça-feira, 23 de abril de 2024

Cuca Roseta e Seu Jorge | Até a Fé Se Esqueceu

Poema de desintoxicação

Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.

João Cabral de Melo Neto, in Pedra do Sono

Capítulo 131 – De Uma Calúnia

Como eu acabava de dizer aquilo, pelo processo ventríloco-cerebral, – o que era simples opinião e não remorso,  senti que alguém me punha a mão no ombro. Voltei-me; era um antigo companheiro, oficial de marinha, jovial, um pouco despejado de maneiras. Ele sorriu maliciosamente, e disse-me:
Seu maganão! Recordações do passado, hem?
Viva o passado!
Você naturalmente foi reintegrado no emprego.
Salta, pelintra! disse eu, ameaçando-o com o dedo.
Confesso que este diálogo era uma indiscrição, – principalmente a última réplica. E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam; ou negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo 101 e outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, – falo do homem de uma sociedade culta e elegante – o homem conjuga a sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, – essa meiga fatuidade que é a transpiração luminosa do mérito.
Mas seja ou não verdadeira a minha explicação, basta-me deixar escrito nesta página, para uso dos óculos, que a indiscrição das mulheres é uma burla inventada pelos homens; em amor, pelo menos, elas são um verdadeiro sepulcro. Perdem-se muita vez por desastradas, por inquietas, por não saberem resistir aos gestos, aos olhares; e é por isso que uma grande dama e fino espírito, a rainha de Navarra, empregou algures esta metáfora para dizer que toda a aventura amorosa vinha a descobrir-se por força, mais tarde ou mais cedo: “Não há cachorrinho tão adestrado, que alfim lhe não ouçamos o latir.”

Machado de Assis, in Memórias Póstumas de Brás Cubas

Helga

Intenções

Os que andam com segundas intenções não conseguem enganar ninguém. Está na cara... O perigo mesmo — porque é invisível — está nos que têm terceiras intenções.

Mário Quintana, in Porta giratória

Parte IV | 2.


Na entrada do ranário, um guarda afetado bateu continência ao carro do meu primo, parecia ridículo. O portão elétrico se abriu lentamente e o Passat do meu primo entrou devagar. Yuan Bochecha, outrora adivinho e curandeiro, hoje presidente Yuan da Companhia Geral de Criação de Rãs-Touro, já nos aguardava ao pé de uma escultura pretíssima.
Era a estátua de uma rã-touro.
De longe, parecia um veículo blindado de transporte de pessoal.
No revestimento de mármore do pedestal, lia-se: “Rã-touro (Rana catesbeiana), Amphibia, Anura, Ranidae, Rana: produz coaxos sonoros semelhantes ao mugido de um touro, daí seu nome popular”.
Vamos tirar fotos”, sugeriu Yuan Bochecha, “primeiro as fotos, depois a visita e, por fim, o almoço.”
A visão daquela rã colossal me inspirou um temor reverente. Via-se um dorso negro, a boca verde-musgo, cor de ouro no contorno dos olhos. A pele tinha a textura das algas, com verrugas aqui e ali. Aquele par de olhos salientes, sombrios, parecia me trazer notícias de um passado distante.
Jovem Bi! Traga a câmera!”, gritou meu primo.
Uma moça magra de óculos vermelhos e vestido xadrez colorido veio correndo com uma pesada máquina fotográfica.
Jovem Bi é formada em artes pela Universidade Qidong e nossa diretora administrativa”, meu primo disse, nos apresentando a moça.
Além de bonita, é talentosa”, acrescentou Yuan Bochecha. “Ela entende de tudo: canta, dança, tira fotos, faz esculturas. E ainda sabe beber!”
Estou lisonjeada, presidente Yuan”, disse Jovem Bi, corando.
Este meu velho colega de escola também é uma figura importante. Quando menino, era bom na corrida, todo mundo achava que seria campeão mundial, ninguém imaginava que se tornaria dramaturgo.” Yuan Bochecha me apresentou à moça: “Nome oficial: Wan Perna, apelido de infância: Corre Corre, hoje conhecido como Girino”.
Girino é meu pseudônimo literário”, expliquei.
Esta é a esposa do professor Girino, Leoazinha, ginecologista”, disse meu primo, apontando para minha mulher.
Leoazinha, que segurava o boneco de barro, acenou com a cabeça, meio distraída.
O sr. Yuan e o sr. Jin me falaram muito do senhor”, disse Jovem Bi.
A rã número 1 do mundo!”, disse Bochecha. “Esta escultura é da autoria de Jovem Bi”, contou meu primo.
Soltei uma exclamação um tanto exagerada.
Sua crítica terá grande valor para mim, professor Girino.”
Demos a volta em torno da escultura. Fosse qual fosse a minha posição, sentia que aqueles olhos enormes e sombrios podiam me seguir, que estavam olhando para mim.
Terminada a sessão de fotos, fomos com Bochecha, meu primo e Jovem Bi conhecer os viveiros de reprodução, de girinos, de metamorfose e de rãs jovens, assim como as oficinas de processamento de ração e de beneficiamento de produtos ranícolas, nessa ordem.
Depois daquela visita, sonhei muitas vezes com o viveiro de reprodução. É um tanque de aproximadamente quarenta metros quadrados, com mais ou menos meio metro de água turva. Na superfície, os machos, inflando seus papos brancos, emitem um mugido de boi para atrair as fêmeas, e elas, flutuando com as pernas esticadas, vão se aproximando devagar do parceiro. Cada vez mais pares se formam. A fêmea nada com o macho nas costas; o macho usa as patas anteriores para segurar a fêmea e as posteriores para golpear a barriga dela. Massas de ovos transparentes são excretadas pela abertura genital enquanto o macho despeja na água um sêmen transparente — a rã faz fertilização externa —, foi meu primo, ou Bochecha talvez, que explicou — as fêmeas podem eliminar de oito a dez mil ovos por vez, são muito mais capazes que o ser humano. No tanque, o coaxar soa aqui e acolá, a água aquecida pelo sol de abril exala um odor nauseante. É o espaço do romance, da busca de parceiros, mas também o espaço da procriação, da produção de descendência. “Para que as fêmeas liberem mais ovos, colocamos na ração um aditivo que estimula a ovulação.” Coac, coac, coac — buá, buá, buá…
Com os ouvidos cheios de coaxos e a cabeça cheia de rãs, fomos levados a um restaurante com decoração luxuosa.
Duas garçonetes de uniforme rosa nos serviram chá, trouxeram a comida, encheram as taças.
O banquete hoje é só de rãs”, disse Yuan Bochecha.
Dei uma olhada no menu sobre a mesa, que listava: pernas de rã ao sal e pimenta, pele de rã frita, iscas de rã com pimentão, fatias de rã com broto de bambu, girinos ao vinagrete, sopa de ovos de rã com sagu…
Vão me desculpar, mas não como rãs”, eu disse.
Nem eu”, disse Leoazinha.
Mas por quê?”, estranhou Yuan Bochecha, “é uma delícia, por que não experimentam?”
Fiz um esforço para esquecer os olhos esbugalhados, a pele pegajosa, o cheiro desagradável que se desprende de seu corpo, em vão. Balancei a cabeça, angustiado.
Recentemente cientistas sul-coreanos extraíram da pele da rã-touro um peptídeo valiosíssimo, com propriedades antioxidantes, que elimina os radicais livres no corpo humano e age como retardador natural do envelhecimento. E, claro, ainda tem outras propriedades secretas”, disse meu primo Jin Xiu com ar de mistério. “Sobretudo consegue aumentar substancialmente a probabilidade de nascimentos múltiplos.”
Não querem provar um pouco?”, perguntou Yuan Bochecha. “Precisa ser mais ousado! Já teve coragem de comer escorpião, sanguessuga, minhoca e cobra peçonhenta, vai deixar de comer rã-touro?”
Você se esqueceu? Meu pseudônimo é Girino!”
Pois bem! Então retirem todos os pratos da mesa. Mandem a cozinha preparar outros pratos, não façam nada que tenha a ver com rã!”, ordenou Bochecha às garçonetes.
Trouxeram novos pratos à mesa, serviram mais de três rodadas de bebida.
Como você teve a ideia de criar rãs-touro?”, perguntei a Bochecha.
Para fazer fortuna, você precisa pensar em coisas que os outros não pensam!”, disse Bochecha, orgulhoso, enquanto soltava anéis de fumaça.
Mas que talento o seu, hein? Desde menino sempre foi diferente”, falei com algum sarcasmo, imitando a entonação de um conhecido comediante. “Não vejo problema em criar rã-touro, mas não seria um desperdício abandonar as maravilhosas técnicas de retirar prego de bucho de boi e ler a sorte das pessoas na feira?”
Girino, seu patife, você nunca ouviu falar em não bater na cara dos outros e não revelar defeitos alheios?”, protestou Bochecha.
E também tirava DIU com um gancho de ferro”, lembrou Leoazinha friamente.
Ora, minha irmã, isso jamais deve ser lembrado”, disse Bochecha. “Naquele tempo, em primeiro lugar, eu não sabia de nada, em segundo, tinha coração mole e não resistia à insistência daquela mulherada louca para ter filho homem e, terceiro, era a pobreza que me forçava.”
Agora ainda teria coragem de fazer?”, perguntei.
Fazer o quê?”, questionou ele de olhos arregalados.
Tirar DIU!”
Mas que conversa é essa? Acha que tenho memória tão curta? Depois de anos de trabalho forçado, sou um homem refeito”, disse Bochecha, “agora sou um homem digno e ganho meu dinheiro à luz do dia. Faço tudo e qualquer coisa desde que não viole a lei. Não mexo com coisas ilegais nem com uma arma na cabeça.”
Somos uma empresa bem conceituada no município, cumprimos as leis, pagamos os impostos e trabalhamos para o bem público”, explicou meu primo.
Leoazinha não largou o boneco de barro durante toda a refeição.
Qin He, aquele filho da mãe, é que é um gênio de verdade!”, disse Bochecha. “Nunca fazia nada, mas foi só pôr a mão na massa que logo superou Hao Mão Grande.”
Cada obra do mestre Qin cristaliza seu sentimento”, interveio Jovem Bi, que até então só sorria sem dizer nada.
Para moldar bonecos também precisa de sentimentos?”, perguntou Bochecha.
Claro que sim”, respondeu ela. “Cada obra de sucesso é um bebê do artista.”
Então aquela rã-touro também é seu bebê?” Bochecha apontou para a estátua no pátio.
Jovem Bi ficou corada e parou de falar.
Você gosta tanto de bonecos de barro, prima?”, perguntou meu primo.
Não é do boneco de barro que ela gosta, mas de bebês de verdade”, respondeu Bochecha.
Que tal trabalharmos juntos? Você pode ser nosso sócio também”, meu primo disse, animado.
Quer que a gente crie rã-touro com vocês?”, perguntei. “Tenho calafrios só de olhar para esses bichos.”
Mas, primo, não criamos só rã-touro, também…”
Não assuste seu primo”, interrompeu Bochecha, “vamos beber! Meu irmão, ainda se lembra de como o presidente Mao educou a ‘juventude instruída’? O campo é um mundo vasto no qual poderão desenvolver plenamente suas potencialidades!”

Mo Yan, in As rãs