quarta-feira, 24 de abril de 2024

O andarilho


Era cerca de meia-noite quando Zaratustra seguiu para o cume da ilha, a fim de chegar à outra costa de manhã cedo: pois lá pretendia tomar um barco. Naquele lugar havia uma boa enseada, onde barcos estrangeiros também gostavam de ancorar; eles levavam os que queriam deixar as ilhas bem-aventuradas e atravessar o mar. Enquanto Zaratustra subia o monte, lembrou-se das muitas caminhadas solitárias que fizera desde menino, e dos numerosos montes, cumes e vertentes que já havia escalado.
Eu sou um andarilho e um escalador de montanhas, disse para seu coração, eu não gosto das planícies e, ao que parece, não posso ficar muito tempo parado.
E, seja lá o que ainda me aconteça, como destino e como vivência, — sempre haverá uma caminhada e uma escalada de montanha: afinal, vivencia-se apenas a si mesmo.
Passou o tempo em que me podiam suceder acasos; e o que poderia ainda me tocar que já não fosse meu?
Ele apenas retorna para casa, regressa para mim — meu próprio Eu, e o que dele há muito tempo se achava no estrangeiro, disperso entre coisas e acasos.
E ainda uma coisa eu sei: agora me acho diante de meu último cume, e daquele que mais longamente me foi poupado. Ah, devo encetar meu caminho mais duro! Ah, comecei minha mais solitária caminhada!
Mas quem é de meu feitio não foge a esta hora: aquela que lhe diz: “Agora segues o teu caminho de grandeza! Cume e abismo — juntaram-se agora num só!
Segues teu caminho de grandeza: tornou-se teu último refúgio o que até então era teu último perigo!
Segues teu caminho de grandeza; essa deve ser agora tua maior coragem: que não haja mais nenhum caminho atrás de ti!
Segues teu caminho de grandeza; aqui ninguém te acompanhará furtivamente! Teus próprios pés apagaram o caminho atrás de ti, e acima dele está escrito: Impossibilidade.
E, se todas as escadas te faltarem doravante, terás de saber como subir sobre tua própria cabeça: de que outra forma poderias desejar subir?
Sobre tua própria cabeça e além do teu próprio coração! O mais suave em ti deve agora se tornar o mais duro.
Quem sempre se poupou muito, termina por adoecer do seu muito poupar-se. Louvado seja o que endurece! Não louvo a terra em que mel e manteiga — fluem!
Olhar para longe de si é necessário, a fim de ver muito: — todo escalador de montanhas necessita essa dureza.
Mas quem, como homem do conhecimento, olha de maneira importuna, como poderia ver, em todas as coisas, mais do que suas razões exteriores?
Mas tu, ó Zaratustra, querias ver a razão e o pano de fundo de todas as coisas: então tens de subir acima de ti mesmo — para o alto, para além, até que tenhas inclusive tuas estrelas abaixo de ti!”
Sim, olhar do alto para mim mesmo e até para minhas estrelas: apenas isso eu chamaria de meu cume, isso me restaria como meu último cume! —

Assim falou Zaratustra para si mesmo ao subir, consolando seu coração com duras máximas: pois ele estava ferido no coração, como jamais estivera antes. E, quando chegou ao alto da montanha, eis que o outro mar se estendia à sua frente, e ele permaneceu longamente parado e em silêncio. Mas a noite estava fria naquelas alturas, e também clara e estrelada.
Reconheço a minha sina, disse afinal, com tristeza. Pois bem! Estou pronto. Começa a minha última solidão.
Ah, esse triste e negro mar abaixo de mim! Ah, esse prenhe desconsolo noturno! Ah, mar e destino! Rumo a vós devo agora descer!
Acho-me diante de minha mais alta montanha e de minha mais longa caminhada: por isso, devo antes descer mais profundamente do que jamais desci:
descer mais profundamente na dor do que jamais desci, até sua mais negra maré! Assim quer meu destino: pois bem, estou pronto!
De onde vêm as mais altas montanhas?, perguntei certa vez. Então aprendi que vêm do mar.
Esse testemunho está inscrito em suas rochas e nas paredes de seus cumes. É a partir do mais profundo que o mais elevado deve chegar à sua altura. —

Assim falou Zaratustra no pico da montanha, onde fazia frio; mas, quando ele chegou à vizinhança do mar e, afinal, encontrava-se sozinho entre os rochedos, havia se cansado no caminho e estava com ainda mais anseio do que antes.
Tudo ainda dorme, falou; também o mar dorme. Ébrio de sono e alheio olha ele para mim.
Mas sua respiração é quente, eu sinto isso. E sinto também que ele sonha. Revolve-se, sonhando, sobre duras almofadas.
Escuta! Escuta! Como ele geme, com más recordações! Ou más expectativas?
Ah, estou triste juntamente contigo, ó monstro escuro, e aborrecido comigo mesmo por tua causa.
Ah, que a minha mão não tenha força bastante! De bom grado, em verdade, eu te redimiria dos maus sonhos! —

Ao falar assim, Zaratustra riu de si mesmo com tristeza e amargura. O quê, Zaratustra!, disse ele, ainda queres cantar consolos para o mar?
Ah, carinhoso tolo Zaratustra, pródigo e beato na confiança! Mas sempre foste assim: sempre te achegaste confiantemente a tudo que é terrível.
Todo monstro quiseste acariciar. Um bafo quente, algum pelo macio na pata —: e logo estavas pronto para amá-lo e atraí-lo.
O amor é o perigo do mais solitário, o amor a tudo, bastando que viva! São de rir, em verdade, minha tolice e minha modéstia no amor! —

Assim falou Zaratustra, e nisso riu novamente: mas então se lembrou dos amigos que abandonara — e, como se os tivesse ofendido com seus pensamentos, irritou-se com seus pensamentos. E logo sucedeu que aquele que chorava riu: — de raiva e anseio Zaratustra chorou amargamente.

Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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