domingo, 28 de julho de 2019

Hitchcockianas


Para um hitchcockiano como eu, era um banquete. Pegamos o último dia da mostra Hitchcock e a arte no Centro George Pompidou, também chamado de Mausoléu do Robocop. A exposição incluía desde objetos famosos dos filmes de Alfred Hitchcock — o isqueiro de Pacto sinistro, a tesoura de Disque M para matar, a câmera com lente telescópica que o James Stewart usa em Janela indiscreta etc. — até exemplos da sua própria arte, ou da arte da narrativa cinematográfica, da qual ele foi um dos grandes mestres, passando por pintores e autores (e outros diretores) que o influenciaram e, em alguns casos (como Salvador Dalí em Quando fala o coração), foram seus colaboradores. Havia uma sala só sobre a conhecida mania de Hitchcock de aparecer em seus filmes, com a projeção de uma sequência inteira de tais cenas, desde a primeira, que deve ser sua mais longa participação no cinema: Hitchcock é um gordinho brigando com um garoto que insiste em roubar o seu chapéu. Suas outras aparições foram mais discretas, e algumas exigiram alguma engenhosidade. No filme Um barco e nove destinos, que se passa todo dentro de um bote salva-vidas, por exemplo, o diretor aparece num jornal lido por um dos sobreviventes: ele é o “antes” e o “depois” num anúncio de regime para emagrecer. Certos paralelos sugeridos pela mostra, como o dos filmes de Hitchcock com outras artes — a literatura gótica de Edgar Allan Poe e o romantismo algo lúgubre dos pintores pré-rafaelitas ingleses, por exemplo —, parecem forçados, e há pouco sobre a relação de amor e ódio do diretor com as louras, mas o banquete não decepcionou.
Divagação inescapável. No meio de uma sala da exposição dedicada a outra mania de Hitchcock, a de filmar o desenlace das suas tramas em locais insólitos como a cabeça da Estátua da Liberdade ou as caras dos presidentes americanos esculpidas naquela rocha (em Intriga internacional), pensei em como ele levava a um extremo inglês — isto é, irônico e um pouco condescendente com a ex-colônia — o velho truque americano de usar a paisagem e as coisas do cotidiano como personagens de cinema, até como uma maneira de não ser europeu, de celebrar o comum e o antiartístico, artisticamente. Os personagens de Hitchcock vivem seus momentos decisivos na superfície de sólidos e indiferentes símbolos americanos, um pouco como ele, um intelectual europeu, fazendo a sua grande arte disfarçada de entretenimento popular, na cara dos americanos. As torres simétricas do World Trade Center representavam solidez e indiferença, e as esculturas trágicas das suas carcaças calcinadas também são exemplos de símbolos dramaticamente transformados em arte. Mas Hitchcock concordaria que isto é levar a humanização da paisagem um pouco longe demais.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

Rodrigo Borges - Amanheceu no Rio

O noivo

Ao apagar as luzes, a mãe deixava acesa a do corredor. Deitava-se e não dormia, à espera. O destino da mulher é esperar pelo marido e, depois do marido, pelos filhos. Chegavam um a um, estendiam-se nas camas. O último era Osvaldo, o mais parecido com o pai, gordo, quase calvo, distraído. Roupa amarrotada de quem dormia vestido, a gravata escorregando do colarinho.
Meu filho — queixava-se Dona Maria. — Quem te vê diz que não tem mãe!
Osvaldo sorria, sem responder. Não tinha dois dentes na frente e sorria com a mão na boca.
Esses dentes, meu filho. Por que não uma gravata nova?
Sempre a mesma gravata de bolinhas.
É preciso falar com o Osvaldo — apelava Dona Maria ao marido.
Já lhe digo duas verdades!
O filho intimidava-o, não era como os outros. Nunca lhe respondera mal; pudera, tão pouco se falavam. Dias depois:
Rapaz sem ambição. Entenda-se com ele. Podia ser alguém na vida!
Sentava-se à mesa diante do pai. Os outros conversavam; ele comia, de cabeça baixa.
Chegou da rua com a roupa suja e rasgada. Às perguntas aflitas de Dona Maria, não era nada, todos sabiam de sua miopia. A mãe descobriu que atropelado por bicicleta — meu Deus, não tinha osso quebrado? Sorriso de banguela foi a resposta.
Domingo os netos enchiam de gritos a casa de Dona Maria. Calmo, só Osvaldo.
Deixava os sobrinhos instalarem-se no joelho, não os beijava. Teria doença de homem? Se a mãe morresse, que seria dele? Comia o que lhe serviam, alguém soube do seu pedaço predileto de galinha? Sua vida um segredo para a família.
O velho o seguiu ao botequim. O tempo que lá esteve, observando o filho, este não o olhou e, na opinião do pai, nem o viu. O garçom trazia a garrafa, enchia o cálice de Osvaldo, sem qualquer palavra entre os dois. Mão no bolso, espiando o cálice, certa mancha na parede, simplesmente a parede. Não deu pela presença do outro. Sempre só, na mesa do fundo, nem parecia triste.
Dona Maria esperava ouvir o filho mexer no trinco. Único ruído na casa, além do ronco do marido, era dos passarinhos a beliscar as sementes. Na sua volta, Osvaldo dava-lhes cânhamo e alpiste, mudava a água das tigelinhas.
Quantas noites, tão logo abre a porta, apaga o rapaz a lâmpada do corredor? A mãe a deixava acesa a fim de que encontrasse o quarto. Por que a extinguia, tateando pelo corredor escuro e derrubando os chapéus do cabide? Apagaria a lâmpada para não se ver, quem sabe, no espelho da sala. Mas o filho, na opinião de Dona Maria, sempre foi moço bonito.
Encontrava a porta, atirava-se na cama vestido c calçado, a fumar um cigarro depois de outro. Dormia, esquecido o cigarro na mão... Havia posto fogo ao lençol e ao colchão. Com todos os buracos de brasa no pijama, ó Deus do céu, o seu peito como não estaria? Ocultava no bolso a mão negra chamuscada. A mãe se benzia — não fosse incendiar a casa. Osvaldo fumava sem abrir a janela, dormia entre a fumaça.
De manhã tossia, às vezes cuspia sangue. Levava-lhe Dona Maria o café na cama, que engolia sapecando a língua, para acender com dedo trêmulo o primeiro cigarro.
Pobre do meu filho!
Um sorriso era a resposta. A velha preferia não indagar por quê apagava a luz do corredor.
Agora estava acesa. Osvaldo não havia chegado. A mãe pensava, toda noite, no noivado. Trouxera a moça para Dona Maria conhecer, não sabia que o filho tivesse ao menos namorada. Moça feia, quem sabe pálida, por certo magra. Osvaldo era um romântico, assim a mãe gostou de Glorinha.
Dia seguinte uma carroça entregaria o armário, a mesa, quatro cadeiras. Osvaldo comprava a mobília, a mãe apressou-se em marcar-lhe algumas camisas e costurar seis cuecas novas.
Quatro anos depois, Glorinha e a mãe dela bateram palmas no corredor. A moça era de casa, entrava sem cerimônia. Aquela vez bateu palmas, a mãe Gracinda toda de preto.
Entre, minha filha. Não veio almoçar domingo? Sente-se, por favor, Dona Gracinda.
A outra respondeu que ia bem, obrigada. O assunto que a trazia à casa de Dona Maria era a felicidade de Glorinha.
Que aconteceu, Dona Gracinda? A senhora me deixa aflita!
Segundo a outra, não havia precisão de palavra. Osvaldo não se decidia a marcar a data.
Glorinha não queria morrer solteira. Já tinha perdido os quatro melhores anos de sua vida.
Mamãe! — interrompeu a moça. — Por favor, mãe!
Sempre de chapéu, a dona ergueu dos olhos o véu negro.
Osvaldo não fala comigo, Dona Maria. Já não gosta de mim!
Seu filho, Dona Maria, sabe o que ele é?
Glorinha suplicou à mãe que, pelo amor de Deus, a deixasse explicar. No princípio não estranhou o silêncio de Osvaldo. Ela contou-lhe a vida inteira desde a infância, o que fizera dia por dia. Osvaldo podia ser tímido, ela oferecia licorzinho, que aceitava sem uma palavra. A moça deixava-o por vezes na sala, limpando as unhas com um palito, e ia conversar com a mãe na cozinha. Não discutia com Glorinha, nem parecia notar que estivera fora — capaz de ficar noivando sozinho. Para Dona Gracinda, que lhe trazia o café, perguntava: “Boa noite, como vai a senhora?” Depois acendia o cigarro, tinham de falar uma com a outra.
Minha filha, o que me conta!
Dois primeiros anos, Osvaldo tirava o óculo na sala, mais bonito. Glorinha sabia que gostava dela. Terceiro ano já não tirou...
Mais respeito, Glorinha! — atalhou Dona Gracinda.
Nos olhos vermelhos da moça uma lágrima parada.
Por favor, mãe!
Certo, Osvaldo jamais combinou o dia. — Minha filha, o que me conta! E ele, Glorinha? Que é que ele diz?
Nada, Dona Maria. Nunca falta ao encontro.
Nessa hora Osvaldo saiu do quarto. Almoçava antes que os pais, entrando na repartição ao meio-dia.
Meu filho, vem cá. Uma coisa muito triste.
Sorria, a mão na boca. Sentou-se ao lado de Glorinha. A mãe pôs-se a duvidar das outras. O moço ouviu com espanto a mulher que falava — cada uma falou por sua vez —, ela se perturbava e desviava os olhos.
Meu filho, não quer casar com a Glorinha? — indagou por fim Dona Maria.
Que sim, queria. Era o noivo de Glorinha. Claro, ele queria.
Por que não marca o dia? — interveio Dona Gracinda. — Olhe que são quatro anos!
A mobília da copa já comprei. A senhora não viu a mobília?
Dona Gracinda desceu o véu sobre o rosto severo. Deu o braço à filha. Osvaldo quis falar, o relógio bateu, ele pediu licença. Hora do emprego, almoçar depressa. A moça devolveu a aliança, que trazia fora do dedo Foi falar, rompeu no choro. Dona Gracinda abriu a bolsa da filha, retirou embrulhinho em papel de seda azul, colocou-o na mesa:
Os seus presentes!
Ele as deixou na companhia da mãe, almoçou com o apetite de sempre e, quando voltou à sala, as duas tinham-se ido.
Glorinha podia ser boa moça, pensava a mãe, atenta à chave na porta. Quem sabe não fosse a noiva para Osvaldo. A família não notou diferença na sua conduta. Se chegava cada noite mais tarde... O pai levara a mesma vida.
Na verdade um fato estranho: os passarinhos. Osvaldo apanhara-os com o alçapão havia muitos anos: um pintassilgo, uma coleira, um canário-da-terra; tão velhos, as unhas descreviam uma volta no poleiro. Madrugada enchia de alpiste o cocho, mudava a água da tigelinha. Andando por tão raros caminhos trazia uma folhinha de alface... Eles cantavam, iludidos pela luz.
Trincando as cascas, eram ouvidos por Dona Maria no quarto. Sentou-se na cama, com o sentimento de uma desgraça. Não sabia o que era. De repente lembrou-se: os passarinhos. Nem um som das gaiolas. Mortos, a cabecinha no cocho vazio — ó Deus, como pudera o filho esquecer? Foi quando começou a apagar a luz do corredor.
A mãe escutava o relógio bater duas, três, quatro horas e, por último, os passos de Osvaldo na rua. Os mesmos passos do pai. Abria a porta, apagava a: luz. Tateando no escuro, derrubava um chapéu do cabide. Quem dera a Dona Maria ele dormisse: o estalido de um fósforo, de outro, mais outro... No dedo amarelo a aliança de noivo fiel.
O marido estava em casa, o filho pródigo acabava de se recolher. Dona Maria podia dormir. Ah.. se soubesse... Extinguindo a luz, Osvaldo não entrava só. Ao voltar do último botequim — fazia que de noites? — encontrou-se com Glorinha na porta; vestida de noiva, o véu de renda preta na cabeça.
Entro com você, meu amor.
Antes de ele encontrar a chave, insinuou-se através da porta fechada.
No corredor iluminado, onde a moça? Então apagou a luz: ela surgiu no quarto.
Não me deixe, Glorinha!
Deitava-se vestido e de sapato. Sentada ao pé da cama, Glorinha recordava os fatos banais do dia. O noivo à escuta, cigarro na boca, olho perdido.
Dona Maria não ouve no outro quarto a voz da moça, e dorme, porque às mães não foi dado entender os filhos, apenas amá-los.
Dalton Trevisan, in Novelas nada exemplares

Street Art: Mural Mário Quintana, em Porto Alegre, de Eduarko Kobra


O artista plástico Eduardo Kobra encimando a sua obra.

Titina

1.
caminhávamos na estrada de terra
o dono da casa apoiado
numa bengala de madeira
parou e apontou para o lago
onde uma árvore seca continua seca
desde que compraram a fazenda
lá se vão trinta anos a árvore
seca no meio do lago

2.
aqui dá muita formiga saúva, s. disse
a verdadeira praga do brasil (quem disse?)
a formiga rainha é maior que as outras
e todas dependem dela de suas ordens
quando ela morre todas as outras morrem
por isso a melhor solução pra acabar com a praga
é matar a rainha
ela já nasce rainha?
como as outras são capazes de reconhecê-la?
s. não soube responder ou se distraiu
esmagando um inseto
com a ponta da bengala

3.
quando m. foi cumprimentar
a dona da casa ela falou surpresa
que ele era a cara do harry potter
vou chamar um mágico, ela gritou
e tomou a agenda o telefone
convidou-o para o dia seguinte
ainda que já fosse tarde da noite
todos sentados na sala de jogos às oito
em ponto à espera do mágico que vinha
de petrópolis

4.
era duro ver aqueles truques tão de perto
d. tentava a qualquer custo desmascará-lo
olhava cheia de olhos, deve haver algo
entre as mangas
jura que a bolinha vermelha
estava escondida no bolso do paletó
mas ninguém acreditava, a bola
surgiu do nada mesmo, o truque da carta
aparecer dentro do limão, como pode?
depois voltamos para a sala de jantar
vovó não estava com força
nas pernas, eu e g. a conduzimos
pelo caminho de pedras cada uma
segurava um braço

5.
o nome do cavalo era mistério
não contei nem a g. nem a l. a aranha
pendurada no teto
em um fio invisível a aranha
sobre nossas cabeças
poderia pôr tudo a perder
se bem que eles já eram craques
corriam na trilha de barro e aos poucos
éramos deixados pra trás: eu e mistério
galopávamos a toda para alcançá-los
o sol era forte e me deixou
a marca da camisa.
Alice Sant’Anna

Agora é que são elas - Capítulo 7

1

Ainda tinha meio-dia e mais sessenta minutos pra fazer de conta que vivia um pouco, antes de tudo começar.
O estupor luminoso que, dizem os seres gasosos dos pantanais de Canópus, explode nos epiléticos treze horas antes de um ataque, o abismo lá no fundo, na boca do estômago, 31 graus abaixo de zero.
Até esqueci, na excitação, não sei bem se no aeroporto ou na rodoviária, o incidente besta da noite anterior, quando, ridículo, cheguei a pensar que a festa já tinha começado, quando, bem, todo mundo sabe como é que são essas coisas.
Era natural. Natural que tivesse esquecido tudo, o esboço de festa, minha saída, a tempestade, minha volta, a voz absoluta.
Perfeitamente natural que eu tivesse esquecido Norma. Norma? Alguém se lembra?

2

Conheci uma Norma antigamente, mas não era esta, essa Norma dos meus contos dos bosques de Viena. Chamava-se Norma Propp, filha do meu analista. Como aconteceu, nem perguntar. Foi rápido, muito rápido, rápido como um rosto fica pálido.
Não era grande coisa. Mas nos vimos coisas um no outro, e a besteira estava formada. A gente se foi a primeira vez numa porção de coisas. Sei lá que importância isso tem, mas as pessoas tendem a atribuir virtudes mágicas às primeiras vezes. Seja lá do que for. E assim primeiras vezes fomos, Norma e eu, muitas primeiras vezes.

3

Nunca te ocorreu não merecer tudo aquilo que você tem, ou tudo aquilo que você tem que suportar? Então, não conhece o melhor da vida. Norma Propp não era assim, exatamente. Não que fosse nenhuma maravilha. Ao contrário. Era sólida, algo assim como mulher dos signos de Leão, Touro ou Escorpião, uma coisa sem mistério, escorregadia como os esquemas do pai.
Dele, herdou algumas coisas. A precisão com que atingia teu olho na primeira porrada. O absoluto desprezo pela opinião alheia. A mania de coçar a orelha quando pensava. Da mãe, veio tudo mais. A simplicidade camponesa. A virada imprevisível. A certeza de estar sempre com a razão.
Paulo Leminski, in Agora é que são elas

Acredite na verdade


Como na era da internet todos nós somos editores, cada um de nós arca com uma certa responsabilidade privada pelo senso de verdade do público. Se adotarmos uma postura de seriedade na busca dos fatos, cada um de nós pode fazer uma pequena revolução na forma como a internet funciona. Se procurar por fatos comprovados, você não enviará informações falsas a outras pessoas.”
Timothy Snyder, in Sobre a tirania: vinte lições do século XX para o presente

Segundo o autor, é impossível existir eleições democráticas, julgamentos em tribunais, formulação e cumprimento de leis, quando outras organizações que não seja o Estado tenha o direito de usar de violência(?).
Os grupos armados primeiro corroem a ordem política para depois transformá-la. Por exemplo, a Guarda de Ferro, na Romênia, a Cruz Flechada húngara, e as tropas de choque nazistas. O autor também faz uso de um exemplo, (sem citar o nome de Trump, mesmo ficando implícito), de um candidato americano que impediu a presença de um adversário em um comício seu, expulsando-o, mas com sua guarda pessoal.
Para Snyder, para a violência transformar não somente o clima político mas também o sistema, as emoções dos comícios e a ideologia de exclusão precisam ser incorporadas ao treinamento dos guardas armados.
Esses guardas primeiro desafiam a polícia e as Forças Armadas, depois se infiltram nessas organizações e por fim as transformam.”

Um trato

Quando os seminaristas foram saindo em fila, procurando furtivamente o vulto de Francisca dissimulada atrás de uma coluna de canto, Nando se aproximou.
Sabe que aqui mesmo, não tão longe do mosteiro, ainda existe uma grande indústria de ladrilhos e azulejos? — disse Francisca.
Sei. Ou acho que sabia — disse Nando, que depois se corrigiu, rindo. — Claro! É de seu pai. Mas por quê?
Porque, com o seu auxílio, pretendo descobrir como eram e reconstituir o desenho dos ladrilhos perdidos. Depois encomendam-se os azulejos. Se o mosteiro não pagar o serviço, peço esmola aos turistas para pagar papai.
Nando riu.
Vejo que Teresa fez uma conquista.
Pois é. Sua admiração é contagiosa, padre Nando. Mas, voltando aos azulejos que faltam. De um ainda existe no muro uma ponta. Venha ver. No azulejo anterior, Teresa, sineta na mão direita e uma imagem de São José com o Menino nos braços, parece anunciar o acontecimento da fundação das Descalças. Se não me engano é o que diz o latim da inscrição.
Exatamente isto — disse Nando.
Mas pelo fragmento, o que vem em seguida é mais um close-up do que um azulejo panorâmico. Veja aqui. Fibras. Uma alça de metal...
Deixe ver. Temos a seguir um grupo de Descalças.
Aliás com sandálias — disse Francisca.
Mas usavam sandálias de corda.
Adivinhei! É uma sandália de corda. Alça de couro, as fibras de corda.
Bravos — disse Nando —, é a sandália, sem dúvida. Belo trabalho de detetive.
Mas o close-up me fez pensar num outro azulejo esplêndido. Também nessa técnica. Venha vê-lo. Aqui. Olhe. Teresa está sem dúvida tendo uma visão. Repare que a visão vai chegando, vai se aproximando, arrebatando Teresa. De repente essas mãos, no azulejo inteiro.
E Nando:
Ah, dona Francisca, isto é uma das visões mais lindas de Teresa, narrada na sua vida. “Estando um dia em oração quis o Senhor mostrar-me apenas as mãos com tão grandíssima formosura.” Teresa dizia que não era somente pobre de espírito e sim que era louca de espírito.
Vou querer seu auxílio para traduzir o latim das inscrições que há em alguns azulejos — disse Francisca.
Acabo fazendo um livro inteiro sobre esse painel de Teresa de Jesus.
Só depois de se despedir e se afastar deixou Francisca tombar nos ombros a mantilha preta. O sol caiu em seus cabelos como numa armadilha. Toda clara sem sombra, pensou Nando com um arrepio.
No dia seguinte esperou-a no pátio do mosteiro.
Ah — disse Nando —, esqueci de lhe dizer que nosso amigo Leslie ficou magoado com sua recusa de colaborar com ele, ilustrando o livro que ele está escrevendo.
Era um assunto.
Ele andou falando nisso? — disse Francisca.
E pela reação de Winifred tem falado com grande frequência.
Uma boa pessoa — disse Francisca. — E sente que me deu uma chance que eu devia aceitar. Mas eu tenho meus azulejos de Santa Teresa, meu noivo, meus cadiuéu. Sabe que para me exercitar eu copio os desenhos corporais que encontro em livros? Aliás, estou com uns desenhos aqui há dias para lhe mostrar.
Eram índios e índias ajaezados de traços, vestidos de arabescos. Os lábios grossos das mulheres cadiuéu emoldurados por desenhos abstratos como num tapete. Às vezes os desenhos passando por cima da boca, outras vezes mantendo seu rigoroso caráter de moldura. Lábios grossos, gretados, como de borracha na sua tumescência brotando de um perverso labirinto de riscos, pontos, volutas, acantos e florões. Que coisa seria aquela? Gregos ainda nus teriam rascunhado ornamentos do que seriam capitéis dóricos e iônicos pelos beiços e peitos de gente viva? Se não fossem perturbados em que iriam desembocar afinal aqueles índios orgulhosos e que assim sabiam carregar em cara, seio e ventre, geração após geração, uma língua ornamental tão exata? Esquecidos os lábios túmidos, tida em mente só a transitória tatuagem, o dedo fino e elegante de Francisca não parecia de outro período histórico. Estava certo e justo acompanhando os triângulos, diademas, frisos não mais miméticos na sua orgulhosa função de só adorno. A unha longa e alva passando pela arte que passava pelo corpo nu inclusive de homem com estojo penial ou com absolutamente nada. Mãos franciscais e bugres, alguma coisa ali horrorizava Nando.
Talvez meus croquis sirvam um dia para ilustrar livro seu, isto sim, sobre índios.
Meu?
Sim, das suas missões. Padre Hosana me disse que a sua Prelazia vai acabar nos mapas de turismo do Brasil.
Irritava Nando uma certa desordem que havia no mundo. A voz de Francisca falando em Hosana era como seu dedo passeando pela pele de índios nus. Nando resolveu adotar um tom ligeiro.
Vamos combinar uma coisa. Se eu escrever o livro, as ilustrações são suas.
É um trato — disse Francisca estendendo a mão a Nando.
Nando viu diante dos olhos um livro como o de Von den Steinen, de Lugon, de Aurélio Pôrto. Seu livro, ilustrado por Francisca. Cada página com um fundo de vitral azul-marinho e as letras do texto em ouro. As cores da libré de Francisca. Maiúsculas vermelhas, verdes, roxas, sustentando arabescos efêmeros como os dos cadiuéu. E cada duas páginas de texto comprimindo entre si desenhos de Francisca.
Antonio Callado, in Quarup

sábado, 27 de julho de 2019

Emicida - Chapa (Videoclipe) ft. Batucaderas do Terreiro dos Orgãos

As fontes do mal

Como combater a infelicidade? Combatendo nós mesmos: compreendendo que a fonte do mal encontra-se em nós. Se pudéssemos nos dar conta a cada instante de que tudo é função de uma imagem refletida em nossa consciência, de amplificações subjetivas e da acuidade de nossa sensibilidade, nós alcançaríamos o estado de lucidez em que a realidade retoma suas verdadeiras proporções. Não reivindico aqui a alegria, mas um grau menor de infelicidade.
É um sinal de resistência permanecer firme no desespero, bem como o é de deficiência cair na imbecilidade após uma infelicidade prolongada. Precisa-se, para diminuir a sua intensidade, de uma verdadeira educação e de um grande esforço interior. Apesar disso, todo o esforço está fadado ao fracasso se seu objetivo for atingir a felicidade. O que quer que se faça, somente há de ser feliz aquele que escolher a via da infelicidade. Pode-se passar da alegria à tristeza, mas este é um caminho sem volta. Isto significa dizer que a felicidade pode reservar surpresas muito mais dolorosas do que as que reserva a sua contraparte. Aquela faz com que consideremos perfeito o mundo tal como se apresenta; esta nos faz desejar que ele seja, antes de tudo, diferente do que é. E, ainda que tenhamos consciência de que a infelicidade encontre em nós mesmos a sua origem, nós transformamos fatalmente um defeito subjetivo em deficiência metafísica.
A infelicidade nunca será suficientemente generosa para reconhecer suas próprias trevas e as improváveis luzes do mundo. Tomando nossa miséria subjetiva por um mal objetivo, cremos poder alegar nosso fardo e dispensar-nos das censuras que nos deveríamos fazer. Na realidade, esta objetivação acentua nossa infelicidade, e, apresentando-a como uma fatalidade cósmica, interdita-nos todo o poder de diminuí-la ou de torná-la mais suportável.
A disciplina da infelicidade reduz as inquietudes e as surpresas dolorosas, atenua o suplício e controla o sofrimento. Acontece aí uma dissimulação do drama interior, uma discrição da agonia.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

Adelaide preparou gostoso bolo de mandioca factícia para levar à mãe. Corajoso, Souza recusa-se a acompanhá-la, deixa que vá sozinha, manda lembranças

Num sábado, ela encontrou o bilhete debaixo da porta: “Por que não se mudam?”. No domingo, havia dois. Escritos em folhas amareladas (onde teriam conseguido?): “Fiquem longe. Levem esse furo na mão para outro lugar”. “Vamos chamar os Civiltares se vocês não se forem.” “Desapareçam.”
Adelaide me trouxe os bilhetes na cama. Quinze para as sete, eu não tinha me levantado. Ela estranhou, desde que nos conhecemos nunca fiquei deitado depois dessa hora. As cobertas puxadas sobre minha cabeça. A madrugada foi fria. Senti que ela ficou parada, indecisa. Depois me tocou.
Os vizinhos sabem do teu furo. Não dá mais para disfarçar.
Abaixei as cobertas enquanto Adelaide lia. Qualquer coisa a coloca trêmula. Bastou sair do seu normal. Eu me lembro quando chegavam cartas de cobrança por crediários atrasados. Ela imaginava que ia perder a casa, viriam buscar os móveis. Respeitava os avisos como coisas sagradas.
Besteiras de vizinhos, fica tranquila.
Não fico, não. Faz dois dias que ninguém fala comigo.
O que é normal. Todo mundo evita todo mundo. Nas desgraças, de vez em quando, eles se auxiliam.
Vizinhança é coisa boa, Souza.
Você sempre teve mania de vizinhos. Por todos os lugares onde passamos, a primeira coisa que fazia era bater na porta ao lado. Avisava: “Somos os novos vizinhos, se precisarem de alguma coisa”.
Vivemos sempre bem com eles. Não sei viver sozinha. É tão bom ir a uma casa no meio da tarde, tomar café, fritar bolinhos.
Há quantos anos você não faz isso?
Sabe o que encontrei no corredor?
O despertador.
Como sabe?
Eu é que joguei.
Adelaide sacudiu o relógio, para certificar-se de que funcionava, não tinha quebrado. Pela sua expressão, deu para saber nada. Colocou o despertador sobre o criado-mudo, em cima dos bilhetes. E me olhou, como que dizendo: aí estão, depois conversamos. Conheço este olhar. Tem um depois nele.
A que horas vamos para a casa da mamãe?
Não vou.
Mas hoje é domingo, estão esperando.
Não vou.
E o que eu digo? Ao menos você podia ir, fingir um pouco, para eles não ficarem preocupados.
Vai você.
Mamãe vai ficar triste.
Demorei na cama o tempo suficiente para que ela fizesse o bolo de mandioca para a mãe. Todos os domingos faz um. Mandioca factícia é um pó amarelado que vem em sacos plásticos. O gosto parece o mesmo, mas a memória pode se enganar. Adelaide reclama apenas da consistência. Borracha pura.
Ela veio ao quarto dizer que o café estava pronto. Saiu soluçando. Por um momento tive vontade de correr atrás. Não deixá-la ir sozinha. No entanto não me mexi. O quarto estava agradável, na penumbra. Sair ao sol significava suar. Estar o dia todo fora de casa, ao mormaço, me desanimava.
Quando voltou, à noite, me encontrou observando o furo na mão. O chão estava cheio de pontas de cigarro e restos da comida que eu mesmo esquentei. Ela começou a limpar tudo, em silêncio. Nada me perturba mais do que a acusação não dita, velada. O mal-estar dissimulado na atmosfera.
Adelaide aproveita a noite de domingo para limpezas. É mais fresco. Depois toma banho, vai para a cama. Deixa o serviço grosso para a faxineira. Portas, vidros, azulejos, banheiros. Ela anda pelo quarto e parece ter nojo. Não me olha; estranho que não me olhe; o que pretende?
Passou a enceradeira, lustrou com flanela, deixando o assoalho polido. Faz anos que digo: “Vamos passar verniz sintético, poupa todo esse trabalho”. Mas ela acha que a cera dá um brilho que o sintético não consegue. E o cheiro da cera invade a casa, trazendo as manhãs de sábado.
Manhãs de sábado, minha infância. Água de sabão correndo pelos ladrilhos, assoalhos, cobertores estendidos na janela e nos varais. Colchões ao sol. As vassouras na calçada, a água molhando a pedra quente, o cheiro úmido que subia da rua inteira, alegre, mergulhada no mesmo ritual.
Mulheres penduradas nas janelas a limpar vidros. Espanadores sobre os móveis, escovão indo e vindo nas áreas, varandas, salas de visita. Compridos cabos com pano na ponta, exterminando teias de aranha nos cantos do forro. Lençóis cheirando a sol e cedro e naftalina retirados das gavetas.
Havia apenas uma casa fechada, quieta, impenetrável. Marginalizada. No canto do quarteirão, uma família sabatista. Encravada como espinho debaixo da unha, no meio de tantas casas católicas. Bem cedo, trancavam a casa e partiam, talvez para não testemunhar aquela azáfama sacrílega.
Tão estranhos para nós quanto o seu Moisés, judeu que vendia ovos. Quanta curiosidade. Minha mãe não deixava que conversássemos com eles. Protestantes eram hereges, negaram obedecer ao santo papa. Judeus tinham matado Jesus. Eu imaginava seu Moisés atirando ovos podres contra a cruz.
Os homens da prefeitura, de quinze em quinze dias, passando com suas foices. Arrancando a grama que crescia entre paralelepípedos. Durante o dia se ouvia o barulho ritmado do ferro, enquanto das pedras saltavam faíscas. O cheiro forte da grama dilacerada tomava todo o quarteirão.
Cada dia era próprio, tinha o seu jeito, o clima. Segunda, dia de branco, varais repletos, as mulheres encostadas ao tanque de lavar roupa. Cantavam. No meio da manhã se podiam ouvir todas as melodias, estranha mistura de músicas populares que formava um som único, quase o mesmo.
Na terça, as moças se preparavam para o cinema. Filmes românticos. Às quartas, no fim da tarde, as mulheres subiam em direção à igreja. Quinta, cinema para todo mundo; sexta, o recolhimento. Sábado de manhã era limpeza, à tarde buscavam-se roupas no tintureiro, à noite, cinema e baile.
Agora, não se sabe se é terça ou sábado, a única diferença é o domingo, porque não se trabalha, mas falam em uma lei para extinguir a folga dominical. De que adianta pensar nessas coisas? Pareço um caduco, a sonhar. Pior, a sonhar com a vida fantástica de um planeta perdido.
Velho. Como as coisas mudaram. Como pode ser velho alguém de cinquenta anos? No entanto sou. As pessoas estão morrendo com trinta e cinco, quarenta anos. Na última década, disse a Rádio Geral, a média de vida decresceu para quarenta e três anos. E a ciência que nos prometia oitenta anos?
Boa média”, comentou meu sobrinho. “Tem gente demais. Não pense que o Esquema está interessado em aumentá-la. Ao contrário. Senão o que seria? Onde colocar tanta gente?” E pensar que nos Abertos Oitenta tínhamos chegado à média de setenta e quatro anos. “Somos um país jovem”, orgulhou-se o sobrinho.
Você fumou no quarto.
Um pouco.
Pouco? Olha a cinzaiada, os tocos. O que há com você, Souza? Me diz? Não se sente bem? Vamos ao Posto?
Ir ao Posto, só porque fumei no quarto?
Você nunca fez isso na vida. Sabe que detesto cheiro de cigarros no quarto.
Continuei fumando enquanto ela reclamava. É preciso saber que um dia as coisas mudam. Como Adelaide pode ser tão insensível? O mundo se transforma inteiro lá fora, e ela continua. Bem, eu também continuei, passei anos contemplando sem agir, reagir. Traumatizado pela minha compulsória.
Que fraqueza, reconheço. Mas não sou forte. Sou apenas um homem comum que tenta viver o seu dia a dia, quer ser feliz, realizar alguma coisa na vida.
Mas, de repente, esse realizar não tem sentido. Porque não há para onde ir. Mas não posso me sentar e ficar esperando a morte.
Esperar que me levem a um Patrocínio, asilado. Um lugar onde eu não me comunique com ninguém. Adelaide corre, bate a porta do banheiro, ouço as suas ânsias. Ela vomita. Depois vem, hesita, vai para a sala. Como viver com uma mulher medrosa que fica trançando como barata tonta?
Souza, me decidi.
Levei um susto. Tinha cochilado um pouco. Ela estava diante da cama, a caixa dos primeiros socorros na mão. E me olhava. Finalmente, um olhar novo no rosto de Adelaide. Firme, decidida. Olhar de ódio, determinação. Sentou-se na cama, pegou minha mão. Puxei, ela pegou outra vez, enérgica. Puxa!
Ou coloco um bandeide, uma faixa, ou vou me embora. Já.
Não vai colocar. Deixe o furo em paz!
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

Armandinho, de Alexandre Beck


Por vezes, não raro

Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.
Eucanaã Ferraz

O paradoxo de Pamuk

Durante séculos, diz o ficcionista turco Orhan Pamuk, escritores e leitores tentam, sem sucesso, chegar a um acordo a respeito da natureza da ficção. “Não quero dar a impressão de que tenho alguma esperança em relação a esse acordo”, ele nos adverte. “Ao contrário, a arte do romance tira sua força da ausência de um consenso perfeito entre escritor e leitor sobre o entendimento da ficção.”
O paradoxo que Pamuk nos oferece está em O romancista ingênuo e o sentimental (Companhia das Letras, tradução de Hildegard Feist), transcrição de seis conferências que fez nas Charles Eliot Norton Lectures, um ciclo de palestras na Universidade de Harvard. O título se refere ao clássico ensaio Sobre poesia ingênua e sentimental, do poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805). Livro que, recorda Pamuk, foi decisivo em sua formação intelectual e cujas ideias ele, agora, transporta da poesia para a ficção.
O livro de Orhan Pamuk está repleto de perguntas inconvenientes (sem resposta, perguntas infernais), mas, justamente por isso, estimulantes, que perturbam a mente dos ficcionistas. Quando escrevemos uma ficção, substituímos a realidade verdadeira por outra falsa ou só a ampliamos? A ficção é o desejo de tornar-se outro ou de convencer os outros disso? O que se passa na mente do leitor enquanto lê uma narrativa: ele lê uma ficção ou uma ficção o lê?
Quando lemos um romance, oscilamos”, diz Pamuk. De um lado, “vemos” personagens e paisagens (eles se materializam em nossa mente). De outro, “somos” esses personagens e essas paisagens, na medida em que, para reconstruí-las mentalmente, utilizamos nossa memória, história pessoal, sensibilidade. Em resumo: servimo-nos de tudo o que somos. Enquanto lemos, diz Pamuk, “nossa mente e nossa percepção trabalham diligentemente, com grande rapidez e concentração, realizando numerosas operações simultâneas”. Observada de fora, a leitura se assemelha à quietude e à paz; contudo, em seu interior, a mente do leitor ferve e um vendaval de imagens a sacode.
Chega Orhan Pamuk, assim, à distinção entre o leitor ingênuo e o leitor sentimental proposta por Schiller. Ingênuo seria o leitor, que, enquanto lê, não se preocupa com os aspectos artificiais do que lê. Simplesmente se entrega, acredita com inocência em sua história e nela se dissolve. Já o leitor sentimental tem consciência dos artifícios da ficção, sabe que a literatura é uma máquina de ser e não se deixa iludir com sua aparente inocência. De um lado, a entrega. De outro, a reflexão e a suspeita. Qual o leitor ideal? Mais uma vez, a resposta é impossível. Ou melhor: ideal, sugere Pamuk, é o leitor que oscila entre as duas posições, se entrega à fantasia, mas não abdica de duvidar.
Também os escritores sofrem dessa cisão. De um lado, estão aqueles que acreditam “escrever espontaneamente” – a ficção como um espelho que acolhe o mundo. De outro, os que afirmam “escrever deliberadamente” – a ficção, já agora, como uma máquina de ser. Exemplifica Pamuk: de um lado, Goethe, com sua naturalidade, serenidade, autoconfiança; de outro, Schiller, mais inquieto, mais reflexivo, com a alma atravessada por dúvidas, um homem que escreve apesar das incertezas que o sacodem.
Recorda Pamuk que essa cisão, de certa forma, se reflete na própria história da literatura. Até o Realismo, líamos um romance “para saber o que vai acontecer”. A partir do Modernismo, ao contrário, nós o lemos sem nenhuma esperança de resposta. Por que lemos, então, autores enigmáticos como Kafka, Joyce, Pessoa? Lemos não na esperança do conhecimento; lemos, unicamente, para nos impregnar de suas “atmosferas”, de sua visão retalhada do mundo, dos pequenos terremotos que se escondem entre suas páginas. O leitor moderno lê na esperança de chegar não a uma firme estrada de respostas, mas a um instável “centro” ficcional. Isto é: de chegar ao coração do romance. Recorda Pamuk, aqui, a fórmula simples, mas devastadora, de E.M. Forster: “O teste final de um romance será nosso afeto por ele”.
Críticos, doutores, estudantes, leitores comuns: todos temos os romances que nos devastaram. Que nos levaram, de alguma forma, a pensar: “Este livro foi escrito para mim”. No fim das contas, mesmo abdicando de espelhar a existência, a ficção dela se aproxima de forma radical. Argumenta Pamuk: “Um romance é uma estrutura única que nos permite ter pensamentos contraditórios sem constrangimento e entender diferentes pontos de vista ao mesmo tempo”. A ficção nos permite ser ambíguos, indecisos, paradoxais. É do paradoxo, e não da afirmação, que as afirmações retiram sua potência.
Quando Pamuk publicou, em 2008, O museu da inocência, a história de Kemal, um homem obcecado pela paixão, muitos leitores lhe perguntaram: “Senhor Pamuk, tudo isso aconteceu realmente com o senhor? Senhor Pamuk, o senhor é Kemal?”. Gustave Flaubert pareceu nos dar uma resposta clara a essa dúvida quando disse a célebre frase: “Madame Bovary sou eu”. Pamuk nos faz recordar, porém, do óbvio: Flaubert era um homem, e não uma mulher; ao contrário de Emma, nunca se casou; sua vida foi completamente diferente da vida de sua heroína. O que quis dizer, então, quando fez sua famosa afirmação? Falava não de uma identidade, mas de um estilo. É a “maneira de ser” de um escritor, e não sua biografia, que o carrega para dentro de seus livros. E isso o expõe de modo muito mais escandaloso do que podemos imaginar.
Também o leitor, quando se apaixona por um livro, não compara conteúdos, mas maneiras (estilos) de olhar, de sentir, de perceber. “Entendemos uma cena porque a relacionamos com algo que já vivemos”, Pamuk diz. Não porque tenhamos vivido aquela cena, mas porque ela evoca outra cena guardada em nosso interior. E é dessa conexão – desse atordoamento, como um homem que leva um choque – que a leitura se alimenta. Nas ficções, realidade e fantasia se fundem de uma maneira tão intensa que é impossível separá-las. “A força da ficção está na ausência da solução e de acordo”, Pamuk insiste. Está na incerteza, uma vez que jamais chegaremos ao centro (ao coração) prometido.
José Castello, in Sábados inquietos

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Alívio | Arthur Maia part. Seu Jorge

Topografia

Meu bonde passa por ali. Pela sua esquina, apenas. É uma ruazinha tão discreta que logo faz uma curva e o olhar não pode devassá-la. Não lhe sei o nome, nem nunca andei por ela. Mas faz anos que me vem alimentando de mistério. Se eu fosse lá, encontraria alguns poetas: o Marcelo, o Wamosy, o Juca... todos mortos de há muito, todos no mesmo bar. Ah! ruazinha... ruazinha que leva à Babilônia, eu sei... au porto inventado de Stargiris... a regiões entressonhadas a medo.
Mário Quintana, in Sapato florido

Alancear

Para fazê-los correr com facilidade e agilidade, os eixos das carruagens são lubrificados; e com o mesmo propósito alguns baleeiros fazem uma operação análoga em seus botes: engraxam o casco. Tampouco se deve duvidar de que tal procedimento, uma vez que não causa dano algum, possa trazer alguma vantagem significativa; considerando-se que o óleo e a água são incompatíveis, e que o óleo é escorregadio, e que o objetivo é fazer o bote deslizar com arrojo. Queequeg acreditava firmemente em lubrificar o seu bote, e, certa manhã, não muito tempo depois que o navio alemão Jungfrau tinha desaparecido, esmerou-se mais do que nunca nessa tarefa; agachou-se sob o casco, que estava dependurado de lado, e esfregou a gordura como se com a sua diligência pudesse fazer crescer cabelo na quilha calva da embarcação. Parecia trabalhar em obediência a um pressentimento particular. Que não ficou sem ser justificado pelos fatos.
Quase ao meio-dia avistaram-se baleias; mas, assim que o navio velejou na sua direção, elas se viraram e fugiram precipitadamente; uma fuga desordenada, como os barcos de Cleópatra em Áctio.
Não obstante, os botes prosseguiram, com Stubb à frente dos outros. Com muito esforço, Tashtego conseguiu por fim cravar uma lança; mas a baleia atingida, sem nem mergulhar, continuou sua fuga horizontal, com acrescentada presteza. Tamanha tensão intermitente no arpão cravado, cedo ou tarde, terminaria por extraí-lo. Tornava-se imperativo alancear a baleia fugidia, ou conformar-se em perdê-la. Mas puxar o bote até seu flanco parecia impossível, pois ela nadava depressa e com fúria. O que restava então?
De todos os maravilhosos expedientes e destrezas, prestidigitações e inúmeras outras sutilezas a que o baleeiro veterano amiúde recorre, nada impressiona mais do que a bela manobra com a lança, o chamado alancear. Espada pequena ou espada grande, com todos os seus floreios, não se comparam ao alancear. Faz-se necessário apenas com uma baleia que insiste em fugir; a sua característica grandiosa é a distância estupenda à qual a lança comprida é atirada com precisão, de um bote que balança e sacode, avançando rapidamente. Tomando-se o aço e a madeira em conjunto, a lança mede dez ou doze pés de comprimento; o cabo é mais leve do que o do arpão, e também o seu material é mais leve: pinho. Tem uma pequena corda chamada calabrote, de considerável extensão, com a qual pode ser puxada de volta à mão depois do arremesso.
Mas, antes de prosseguir, é importante dizer aqui que, mesmo que o arpão possa ser lançado do mesmo modo que a lança, isso raras vezes é feito; e, quando feito, o seu êxito é menos frequente, por causa do peso maior e do comprimento menor do arpão em relação à lança, o que, de fato, se constituiu numa desvantagem séria. Portanto, de uma forma geral, deve-se primeiro estar preso à baleia, antes de alancear.
Olhe para Stubb agora: um homem que devido a sua calma e equanimidade deliberada e bem-humorada, nas emergências mais terríveis, tinha as qualificações especiais para sobressair ao alancear. Olhe para ele: está de pé na proa oscilante do bote que corre; envolta numa espuma lanosa, a baleia rebocadora está quarenta pés à frente. Empunhando a lança comprida com leveza, olhando duas ou três vezes para a sua extensão, para ver se está bem reta, assobiando, Stubb pega o rolo do calabrote com uma mão, para garantir que a ponta livre está segura, e deixa o resto solto. Segurando então a lança comprida bem à frente da cintura, ele mira a baleia; quando, apontando para a baleia, ele abaixa com firmeza a extremidade traseira da lança em sua mão, com isso levanta a ponta até que a arma fica bem assentada na palma da mão, quinze pés no ar. Faz lembrar um malabarista equilibrando um cajado no seu queixo. No momento seguinte, com um impulso rápido e indescritível, o aço brilhante, fazendo um arco esplêndido no alto, transpõe a distância espumante, e trepida no ponto vital da baleia. Em lugar de água gasosa, ela jorra sangue vermelho.
Isso lhe arrancou o batoque!”, gritou Stubb. “É o 4 de Julho imortal; todas as fontes têm que jorrar vinho hoje! Quisera que fosse o uísque de Orleans, ou um velho Ohio, ou o indescritível velho Monongahela! Então, Tashtego, meu rapaz, por mim, faria com que levasses uma caneca ao jato e nós beberíamos em volta dele! É, na verdade, meus queridos, faríamos um ponche especial no canal do seu espiráculo ali, e dessa poncheira viva sorveríamos a bebida viva!”
Falando sem parar desse modo alegre, o exímio arremesso é repetido, e a rama volta ao seu dono, como um cachorro preso na coleira. A baleia agonizante começa a se agitar, a linha é afrouxada, e o arremessador, indo para trás, cruza os braços e, em silêncio, assiste à morte do monstro.
Herman Melville, in Moby Dick