segunda-feira, 30 de abril de 2018

Minha Música...

César Franck (1822-1890)

Dizem que a razão por que se embalam as criancinhas em ritmo binário é porque, durante nove meses, ouvimos a pulsação binária do coração da mãe. O ritmo binário do coração da mãe se inscreve no corpo da criancinha como uma memória tranquilizadora. Se isso é verdade, tem de ser verdade também que a música ouvida em tempos anteriores à memória consciente, no sono fetal, torna-se parte da nossa carne.
Comecei a ouvir música antes de nascer. Minha mãe era pianista e tocava. A música clássica é parte da minha carne.
Não é meu costume ouvir música enquanto escrevo. Fico possuído pela música, numa espécie de êxtase, e isso faz parar meus pensamentos. Contrariando o meu hábito coloquei no micro um CD de uma peça que nunca ouvira, sonata para violino e piano de César Franck. Minutos depois, eu estava chorando. Aí interrompi o choro e fiz um exercício filosófico. Perguntei-me: “Por que é que você está chorando?”. A resposta veio fácil: “É por causa da beleza...”. Continuei: “Mas o que é a experiência da beleza?”. Sem uma resposta pronta, veio-me algo que aprendi com Platão. Platão, quando não conseguia dar respostas racionais, inventava mitos. Ele contou que, antes de nascer, a alma contempla todas as coisas belas do universo. Essa experiência foi tão forte que todas as infinitas formas de beleza do universo ficam eternamente gravadas na alma. Ao nascer, nos esquecemos delas. Mas não as perdemos. A beleza fica em nós, adormecida como um feto. Todos estamos grávidos de beleza, beleza que quer nascer para o mundo qual uma criança. Quando a beleza nasce, reencontramo-nos com nós mesmos e experimentamos a alegria.
Agora vem a minha contribuição. Continuo o mito. Há seres privilegiados — eles bem que poderiam ser chamados de anjos —, aos quais é dado acesso a esse mundo espiritual de beleza. Eles veem e ouvem aquilo que nós nem vemos nem ouvimos. E transformam então o que viram e ouviram em objetos belos que o corpo pode ver e ouvir. É assim que nasce a arte. Ao ouvir uma música que me comove por sua beleza, eu me reencontro com a mesma beleza que estava adormecida dentro de mim.
Quando te vi amei-te já muito antes. Tornei a encontrar-te quando te achei.” Essa é a mais bela declaração de amor que conheço, escrita pelo anjo Fernando Pessoa. Tu já estavas dentro de mim antes que te encontrasse. O nosso encontro não foi encontro; foi reencontro... Isso que o poeta diz para um homem ou uma mulher pode ser dito também para uma música: “Quando te ouvi, ouvi-te já muito antes. Tornei a ouvir-te quando te ouvi...”.
O que me comoveu, então, não foi a música de César Franck. Foi a sonata que estava adormecida dentro de mim e que a sonata de César Franck fez acordar. Ao me comover com a beleza da música, eu me reencontro com a minha própria beleza. Por isso a música me traz felicidade…
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

Do elogio

Podes conhecer o espírito de qualquer pessoa, se observares como ela se comporta ao elogiar e receber elogios.”
Sêneca, in Cartas a Lucílio

A natureza exuberante do Cerrado e da Amazônia na Arte Naturista do cuiabano Miguel Penha









Mais obras do artista, acesse aqui.

Prólogo de Zaratustra - 2

Zaratustra desceu sozinho pela montanha, sem deparar com ninguém. Chegando aos bosques, porém, viu subitamente um homem velho, que havia deixado sua cabana sagrada para colher raízes na floresta. E assim falou o velho a Zaratustra:
Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado.
Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não temes o castigo para o incendiário?
Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino?
Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um despertado é Zaratustra: que queres agora entre os que dormem?
Vivias na solidão como num mar, e o mar te carregava. Ai de ti, queres então subir à terra? Ai de ti, queres novamente arrastar tu mesmo o teu corpo?”
Respondeu Zaratustra: “Eu amo os homens”.
Por que”, disse o santo, “fui para o ermo e a floresta? Não seria por amar demais os homens?
Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me mataria.”
Respondeu Zaratustra: “Que fiz eu, falando de amor? Trago aos homens uma dádiva”.
Não lhes dês nada”, disse o santo. “Tira-lhes algo, isto sim, e carrega-o juntamente com eles — será o melhor para eles: se for bom para ti!
E, querendo lhes dar, não dês mais que uma esmola, deixando ainda que a mendiguem!”
Não”, respondeu Zaratustra, “não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso.”
O santo riu de Zaratustra, e falou assim: “Então cuida para que recebam teus tesouros! Eles desconfiam dos eremitas e não acreditam que viemos para presentear.
Para eles, nossos passos ecoam solitários demais pelas ruas. E, quando, deitados à noite em suas camas, ouvem um homem a caminhar bem antes de nascer o sol, perguntam a si mesmos: aonde vai esse ladrão?
Não vás para junto dos homens, fica na floresta! Seria até melhor que fosses para junto dos animais! Por que não queres ser, como eu — um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros?”
E o que faz o santo na floresta?”, perguntou Zaratustra.
Respondeu o santo: “Eu faço canções e as canto, e, quando faço canções, rio, choro e sussurro: assim louvo a Deus.
Cantando, chorando, rindo e sussurrando eu louvo ao deus que é meu Deus. Mas o que trazes de presente?”
Ao ouvir essas palavras, Zaratustra saudou o santo e falou: “Que poderia eu vos dar? Deixai-me partir, para que nada vos tire!” — E assim se despediram um do outro, o idoso e o homem, rindo como riem dois meninos.
Mas, quando Zaratustra se achou só, assim falou para seu coração: “Como será possível? Este velho santo, na sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!”.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

É um alho!

Qualquer dicionário dirá o Allium sativum, Linneu, como sinônimo de homem esperto, arguto, atilado. Essas liliáceas foram trazidas de Portugal no século XVI, indispensáveis na alimentação lusitana desde tempo imemorial. Em Portugal o alho é remédio, condimento excepcional, amuleto, tônico, tendo um sem-número de predicados mágicos e nutritivos para o povo. Os demônios, fantasmas e bruxas não podem agir onde sentir-se o cheiro de alho e sobre pessoa que o tiver ingerido. A literatura oral portuguesa registra numerosas menções e a antiguidade clássica do alho em Roma afere-se nas citações de Plauto, Virgílio, Horácio.
Curiosamente a força mágica do alho veio para o Brasil com a mesma potência irresistível. Todos os seres fabulosos temem e evitam o alho. O Saci-Pererê, a Caipora, o Curupira, os Botos conquistadores, a falsa Mãe-d’Água na sua encarnação de sereia-cantora, loura e de olhos azuis, fogem do alho como o diabo da cruz. É uma defesa contra os feitiços malfazejos. Cabeça de alho no bolso afasta qualquer força malévola de feitiço contrário.
Todos esses atributos vieram de Portugal, porque o alho não existia no Brasil antes que os portugueses instalassem o domínio colonizador. E manteve no Brasil os mesmos poderes que possui em Portugal.
Não sei como mestre João Ribeiro (Frases feitas, I, 82) escreveu: “Alho é o sujeito que parece gente e não é, mete-se a sabido e sai tolo”.
Pessoa alguma em Portugal e Brasil dirá que alguém é um alho, sendo tolo. Alho é o esperto, vivo, ágil, inventivo, sabendo desembaraçar-se das dificuldades.
O conjunto de alhos, porção deles, diz-se alhada, valendo problema, confusão, complicações. “Não me meto em alhadas!”. Era, no século XVI, uma sopa de alhos, espessa, saborosa, nutritiva. “Meu pecado me meteu nesta alhada”, diz Jorge Ferreira de Vasconcelos na Eufrasina (IV, 4).
O segredo dessas forças mágicas está no cheiro forte, penetrante e persistente do alho. Horácio escreveu contra ele um épodo, Allium detestatur, e consta do Mil e uma noites o episódio em que o seu odor perturbou uma noite de núpcias. Raquel Mussolini, viúva do “Duce”, narra que o Príncipe Aimone de Savoia, indo visitá-la a bordo do iate em Brione, apresentou desculpas por ter comido alhos, sensíveis no hálito. O olor é que constitui uma infração social. Deve haver razões de milênios para os demônios, os elegantes do convívio aristocrático, não suportarem o aroma do alho. Mas seu consumo, em todas as classes portuguesas, denuncia-se pelo versinho quinhentista de Sá de Miranda: 
 
E podem cheirar a alho
Ricos homens e infanções.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

domingo, 29 de abril de 2018

Maria Bethânia e Lenine - Nem o sol, nem a lua, nem eu

Parábola

A imagem daqueles salgueiros n’água é mais nítida e pura que os próprios salgueiros. E tem também uma tristeza toda sua, uma tristeza que não está nos primitivos salgueiros.
Mário Quintana, in Sapato florido

Capítulo 19 - A Bordo

Éramos onze passageiros, um homem doido, acompanhado pela mulher, dois rapazes que iam a passeio, quatro comerciantes e dois criados. Meu pai recomendou-me a todos, começando pelo capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar de si, porque, além do mais, levava a mulher tísica em último grau.
Não sei se o capitão suspeitou alguma coisa do meu fúnebre projeto, ou se meu pai opôs de sobreaviso; sei que não me tirava os olhos de cima; chamava-me para toda a parte. Quando não podia estar comigo, levava-me para a mulher. A mulher ia quase sempre numa camilha rasa, a tossir muito, e a afiançar que me havia de mostrar os arredores de Lisboa. Não estava magra, estava transparente; era impossível que não morresse de uma hora para outra. O capitão fingia não crer na morte próxima, talvez por enganar-se a si mesmo. Eu não sabia nem pensava nada. Que me importava a mim o destino de uma mulher tísica, no meio do oceano? O mundo para mim era Marcela.
Uma noite, logo no fim de uma semana, achei ensejo propício para morrer. Subi cauteloso, mas encontrei o capitão, que junto à amurada, tinha os olhos fitos no horizonte.
- Algum temporal? disse eu.
- Não, respondeu ele estremecendo; não; admiro o esplendor da noite. Veja; está celestial!
O estilo desmentia da pessoa, assaz rude e aparentemente alheia a locuções rebuscadas. Fitei-o; ele pareceu saborear o meu espanto. No fim de alguns segundos, pegou-me na mão e apontou para a lua, perguntando-me por que não fazia uma ode à noite; respondi-lhe que não era poeta. O capitão rosnou alguma coisa, deu dois passos, meteu a mão no bolso, sacou um pedaço de papel, muito amarrotado; depois à luz de uma lanterna, leu uma ode horaciana sobre a liberdade da vida marítima. Eram versos dele.
- Que tal?
Não me lembra o que lhe disse; lembra-me que ele me apertou a mão com muita força e muitos agradecimentos; logo depois recitou-me dois sonetos; ia recitar-me outro, quando o vieram chamar da parte da mulher. - Lá vou, disse ele; e recitou-me o terceiro soneto, com pausa, com amor.
Fiquei só; mas a musa do capitão varrera-me do espírito os pensamentos maus; preferi dormir, que é modo interino de morrer. No dia seguinte, acordamos debaixo de um temporal, que meteu medo a toda a gente, menos ao doido; esse entrou a dar pulos, a dizer que a filha o mandava buscar, numa berlinda; a morte de uma filha fora a causa da loucura. Não, nunca me há de esquecer a figura hedionda do pobre homem, no meio do tumulto das gentes e dos uivos do furacão, a cantarolar e a bailar, com os olhos a saltarem-lhe da cara, pálido, a coma hirsuta e descomposta. As vezes parava, erguia ao ar as mãos ossudas, fazia uma cruzes com os dedos, depois um xadrez, depois umas argolas, e ria muito, desesperadamente.
A mulher não podia já cuidar dele; entregue ao terror da morte, rezava por si mesma a todos os santos do céu. Enfim, a tempestade amainou. Confesso que foi uma diversão excelente à tempestade do meu coração. Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá-la quando ela veio ter comigo.
Amainou o temporal, o capitão veio perguntar-me se tivera medo, se estivera em risco, se não achara sublime o espetáculo; tudo isso com um interesse de amigo. Naturalmente a conversa versou sobre a vida do mar; o capitão perguntou-me se não gostava de idílios piscatórios; eu respondi-lhe ingenuamente que não sabia o que era.
- Vai ver, respondeu ele.
E recitou-me um poemazinho, depois outro, - uma égloga, - e enfim cinco sonetos, com os quais rematou nesse dia a confidência literária. No dia seguinte, antes de me recitar nada, explicou-me o capitão que só por motivos graves abraçara a profissão marítima, porque a avó queria que ele fosse padre, e com efeito possuía algumas letras latinas; não chegou a ser padre, mas não deixou de ser poeta, que era a sua vocação natural; e em prova de que tal era a sua vocação, recitou-me logo, de corpo presente, uma centena de versos.
Notei um fenômeno: os ademanes que ele usava eram tais, que uma vez me fizeram rir; mas o capitão, quando recitava, de tal sorte olhava para dentro de si mesmo, que não viu nem ouviu nada.
Os dias passavam, e as águas, e os versos, e com eles ia também passando a vida da mulher. Estava por pouco. Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao fim da semana.
- Já! exclamei.
- Passou muito mal a noite.
Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda, mas falando ainda de descansar em Lisboa alguns dias, antes de ir comigo a Coimbra, porque era seu propósito levar-me à Universidade. Deixei-a consternado; fui achar o marido a olhar para as vagas, que vinham morrer no costado do navio, e tratei de o consolar; ele agradeceu-me, relatou-me a história dos seus amores, elogiou a fidelidade e a dedicação da mulher, relembrou os versos que lhe fez, e recitou-mos. Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da morte; eu fugi ao espetáculo, tinha-lhe repugnância. Meia hora depois encontrei o capitão, sentado num molho de cabos, com a cabeça nas mãos; disse-lhe alguma coisa de conforto.
- Morreu como uma santa, respondeu ele; e, para que estas palavras não pudessem ser levadas à conta de fraqueza, ergueu-se logo, sacudiu a cabeça, e fitou o horizonte, com um gesto longo e profundo. - Vamos, continuou, entreguemo-la à cova que nunca mais se abre.
Efetivamente, poucas horas depois, era o cadáver lançado ao mar, com as cerimônias do costume. A tristeza murchara todos os rostos; o do viúvo trazia a expressão de um cabeço rijamente lascado pelo raio. Grande silêncio. A vaga abriu o ventre, acolheu o despojo, fechou-se, - uma leve ruga, - e a galera foi andando. Eu deixei-me estar alguns minutos, à popa, com os olhos naquele ponto incerto do mar em que ficava um de nós... Fui dali ter com o capitão, para distraí-lo.
- Obrigado, disse-me ele compreendendo a intenção; creia que nunca me esquecerei dos seus bons serviços. Deus é que lhos há de pagar. Pobre Leocádia! tu te lembrarás de nós no céu.
Enxugou com a manga uma lágrima importuna; eu busquei um derivativo na poesia, que era a paixão dele. Falei-lhe dos versos, que me lera, e ofereci-me para imprimi-los. Os olhos do capitão animaram-se um pouco. - Talvez aceite, disse ele; mas não sei... são bem frouxos versos. Jurei-lhe que não; pedi que os reunisse e me desse antes do desembarque.
- Pobre Leocádia! murmurou ele sem responder ao pedido. Um cadáver... o mar... o céu... o navio...
No dia seguinte veio ler-me um epicédio composto de fresco, em que estavam memoradas as circunstâncias da morte e da sepultura da mulher; leu-mo com a voz comovida deveras, e a mão trêmula; no fim perguntou-me se os versos eram dignos do tesouro que perdera.
- São, disse eu.
- Não haverá estro, ponderou ele, no fim de um instante, mas ninguém me negará sentimento, se não é que o próprio sentimento prejudicou a perfeição...
- Não me parece; acho os versos perfeitos.
- Sim, eu creio que... Versos de marujo.
- De marujo poeta.
Ele levantou os ombros, olhou para o papel, e tornou a recitar a composição, mas já então sem tremuras, acentuando as intenções literárias, dando relevo às imagens e melodia aos versos. No fim, confessou-me que era a sua obra mais acabada; eu disse-lhe que sim; ele apertou-me muito a mão e predisse-me um grande futuro.
Machado de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas

Calvin


O amor perdoa tudo

Fotos de amor são ridículas, mas ainda mais ridículo é nunca tirar fotos de amor. Não há como esnobar certas aparições, manter pose de intelectual e prometer que dessa máquina não beberei.
Existem fotografias obrigatórias na nossa existência, fiascos essenciais que continuaremos reproduzindo até o Juízo Final. Representam estreias, nascimento, inaugurações, onde é impossível rejeitar o clique. Guarde a reclamação e a timidez no estojo, ficará condicionado a tolerar o xis, olhar o passarinho, arrumar um lugar na barreira e aceitar as ordens de incentivo do fotógrafo.
São imagens que partilham o mistério da música brega: ninguém conhece, todos sabem a letra.
Referem-se às cenas fundamentais do ciclo da vida, espécie de cartões-postais familiares. Sem eles, a sensação é de que não nascemos, de que não tivemos família, de que não pertencemos à normalidade fotogênica do mundo.
É o mesmo que visitar o Egito e não posar na frente das pirâmides, visitar Paris e não ostentar a Torre Eiffel ao fundo do plano, passar pela China e desdenhar as curvas da Muralha.
De que flagrantes estou falando?
Daqueles de que não podemos fugir, senão demonstraremos indiferença, frieza, falta de emoção.
Daqueles de que debochamos ao encontrar na gaveta dos outros e que ocupam a maior parte de nossos porta-retratos.
Um deles é a troca de cálices no casamento. Quando o noivo e a noiva embaralham os braços. Apesar do desconforto tentacular, o casal tem que sorrir. Qual o menos pior: este brinde de espumante ou o corte a dois do bolo do casamento? Trata-se de uma disputadíssima concorrência para abrir o álbum.
Lembro também do clássico beijo do pai na barriga da gestante. A grávida sempre está nua, o que é involuntariamente engraçado. O homem surge agachado com roupa social diante de sua companheira pelada. Se não fosse a criança por vir, estaria na parede de uma borracharia.
Não dá para esquecer a grande angular do baile de debutantes: as adolescentes como time de futebol, posicionadas em diferentes degraus. E a nossa foto tomando o primeiro banho, usada pela mãe para nos envergonhar na adolescência. E sem os dentes da frente, e lambuzado de chocolate e sendo lambido pelo cachorro.
Fotos ridículas e inesquecíveis, adequadas para chantagem e suborno, mas que se tornam — por vias tortas — recompensas do amor.
São justamente as fotos que vamos procurar para sentir saudade. E, ao lado dos filhos, rir e chorar ao mesmo tempo.
Fabrício Carpinejar, in Ai meu Deus, ai meu Jesus

sábado, 28 de abril de 2018

Acerca da opinião pública

Ser independente da opinião pública é a primeira condição formal para realizar qualquer coisa grandiosa ou racional, tanto na vida como na ciência. Com o tempo, este feito será seguramente reconhecido pela opinião pública, que na altura conveniente o transformará em mais um dos seus preconceitos.”
Hegel, in Filosofia do Direito

Uma mulher limpa


porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

uma mulher muito feia
era extremamente limpa
e tinha uma irmã menos feia
que era mais ou menos limpa

e ainda uma prima
incrivelmente bonita
que mantinha tão somente
as partes essenciais limpas
que eram o cabelo e o sexo

mantinha o cabelo e o sexo
extremamente limpos
com um xampu feito no texas
por mexicanos aburridos

mas a heroína deste poema
era uma mulher muito feia
extremamente limpa
que levou por muitos anos
uma vida sem eventos

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram
e fundaram o grupo de estudos
celso pedro luft.
Angélica Freitas

Do engano

Nenhuma coisa desengana a quem quer enganar-se.”
Padre Antônio Vieira

Carrero de óculos


Poucos meses antes de sua morte, fiz uma última visita a Hilda Hilst, reclusa em sua Casa do Sol. Foi uma mulher linda, o tempo a devastou. A gordura mórbida balançava sob a bata imensa. O semblante, encrespado pela decepção, tremia. Apoiava-se em uma bengala tosca, amaldiçoava seus amados cachorros e trazia os cabelos em tempestade.
Na mesa da cozinha, encarando-me, Hilda desabafou: “Tornei-me uma bruxa”. Falava da cisão cruel, grande fosso, que separa a existência das palavras. Resumiu assim: “Enquanto minha literatura vai para um lado, meu corpo inteiro se move para o outro”.
A frase assustadora de Hilda me volta enquanto leio A minha alma é irmã de Deus (Record), romance de Raimundo Carrero, livro com que ele encerra seu “Quarteto áspero”. Na protagonista, Camila, encontro a mesma desordem que atordoou Hilda em seus últimos dias.
Nos dias ásperos de hoje, muitos se apegam ao enigma da alma. Outros creem que o verdadeiro enigma está no corpo. Com as ideias, nos consolamos; o corpo despreza as abstrações. Lembro aqui de uma frase que, perplexa, minha velha mãe pronunciou, outro dia, diante do espelho: “Estou muito diferente de mim”.
Não é só um efeito da velhice. Em seu romance, Carrero trabalha com uma ideia estupenda de Samuel Beckett, que localiza melhor essa devastação. “O que chamam de amor é o exílio”, diz Beckett. O corpo não acompanha o sopro do humano – esteja ele nos sentimentos, nas paixões ou nas palavras. Lembro outra vez de Hilda, que, sem pudor, me disse: “Meu corpo anda cansado de mim”.
O deslocamento entre a matéria e o espírito (seja ele o que for) se expressa, com força, em um personagem secundário de Carrero: o camelô Alvarenga. Obeso e com cara de anão, ele não tira um velho gorro de Papai Noel, “embora deteste ser chamado de Papai Noel”. Um perplexo Carrero nos defronta: “Como é que uma pessoa não quer uma coisa e faz? Vá entender, vá”.
O pedido de Alvarenga – “Não me chamem de Papai Noel” – não combina com o gorro vermelho que leva na cabeça. Alvarenga quer o que não quer. Pensa uma coisa, mas o corpo lhe diz outra. Por que palavras (os nomes) e corpos não sincronizam? Porque palavras – e nomes – são o destino. Escreve Carrero a respeito de sua delicada protagonista, Camila: “Só lhe restava cumprir o nome. É assim, sempre: um nome é um destino. E não se discute mais”.
Entre as palavras (a alma) e o corpo, contudo, algo se interpõe: o incêndio do amor. Algo sopra não deles, mas entre eles. Camila é “sequestrada” por Leonardo, o pastor da seita Os Soldados da Pátria por Cristo. O pastor não abandona seu saxofone: acredita mais na música que nas palavras. Como o flautista de Hamelin, dos irmãos Grimm, que arrasta com suas melodias os ratos para afogá-los no rio Weser, também Leonardo usa a música para capturar (para sequestrar) almas.
O amor não é só um exílio, ele é também um sequestro, em que algo nos afasta de nós mesmos. Camila sabe que o corpo é puxado por coisas que não controlamos, e por isso sonha em se tornar santa – isto é, ser apenas alma, e não mais corpo. Sonho falhado, porque a alma também aprisiona.
Muito além da biologia, o que se passa no corpo vem de fora. E nele se fixa, como um selo – o registro de um destino. Certo dia, Camila vê sua sombra refletiva no chão. “É por causa da sombra que eu sou Camila.” Mais que o corpo com vísceras e glândulas, mais que as palavras com seus sentidos e abstrações, há uma sombra que – empurrada para um vão, como a Senhora D., de Hilda Hilst, espremida no vão de uma escada – determina o destino pessoal. Sombra que marca as palavras com seus lapsos e gaguejos; e que fere o corpo com seus tremores, arrepios e paixões. É na sombra que quase tudo está.
Ocorre-me, aqui, outro romance de Carrero, Sombra severa, como instrumento para ler o próprio Carrero. Carrero contra Carrero. Em dado momento, um aflito Judas faz uma reflexão que me ajuda: “As ações não nasciam de sua alma atormentada, mas das emboscadas que o segredo sabe preparar”. A existência não está no corpo, muito menos na alma; está entre eles. Pode manifestar-se em um suspiro, em uma visão súbita, em quase nada.
Nem na alma nem no corpo: entre os dois. Na sombra. Hilda gostava de passar as tardes sob uma imensa figueira. Acreditava que era mágica. À sombra da árvore, ela se interrogava a respeito do existir. Poderia repetir a frase de Camila: “Não desejo saber o que estou fazendo no mundo. Quero saber por que tenho um corpo”. Quer saber mais: o que se faz com ele.
Um dia, o pastor Leonardo desaparece. Leva consigo a alma de Camila. Resta-lhe o corpo que, como um dejeto, ela arrasta pelas ruas. Seu corpo já não lhe pertence. Desiste de pensar nele (o que só a leva ao desamparo). Prefere arrastar-se, como um réptil que serpenteia sem saber que existe.
Não é nem no corpo nem na alma que existimos, mas entre eles. No choque (do atrito) entre os dois. Camila deseja tornar-se santa porque “ter um corpo é tão limitador”. Não percebe que a ideia da alma também a diminui. A adesão ao pastor é, ela também, um rapto. Mas, então, onde está Camila?
Está no lixo, passa a levar uma vida de catadora, entre os ratos – como Hamelin. Só que, ao contrário do flautista dos Grimm, são os ratos que a arrastam. Não com a música, mas com seu silêncio. Silêncio que rói pelas beiradas os limites do mundo. Que transforma a existência em uma espécie de vazamento. Em um choro.
Os personagens de Carrero vivem entre ruínas – e aqui penso em outro romance do escritor, As sombrias ruínas da alma. Sempre a cegueira, sempre a sombra. Como se Carrero, para escrever, precisasse usar óculos escuros que o separassem do mundo (do corpo), mas que também lhe borrassem a visão (a alma). Só nesse vão – agachado sob a escada da existência – se escreve.
Volto a pensar em Hilda. Penso em Carrero. São escritores do deserto – que tateiam, cambaleiam, mas avançam. Não sei se chegaram a se conhecer. Talvez viessem a se odiar. Esse ódio (faísca) seria só um relâmpago. O leve roçar entre corpo e espírito, ali onde a escrita (como um tapete muito antigo) se desenrola.
José Castello, in Sábados inquietos

O argumento da reparação das injustiças

Há também uma outra forma muito curiosa de argumento moral, que é a seguinte: diz-se que a existência de Deus é necessária para que haja justiça no mundo. Na parte do universo que conhecemos há muita injustiça, e com frequência os bons sofrem e os maus prosperam, de modo que é difícil saber qual alternativa é mais irritante; mas, se vamos ter justiça no universo como um todo, é necessário supor que existirá uma vida futura para compensar o equilíbrio aqui na terra. Assim, dizem que é necessário existir um Deus, e que devem existir céu e inferno para que a longo prazo haja justiça. Esse é um argumento muito curioso. Se o assunto for examinado do ponto de vista científico, pode-se dizer: “Afinal de contas, eu só conheço este mundo. Não conheço o restante do universo, mas, até onde for possível argumentar no que diz respeito a probabilidades, seria possível dizer que este mundo provavelmente é uma boa amostra e que, se há injustiça aqui, há chance de que também exista injustiça em qualquer outro lugar”. Suponhamos que uma pessoa recebeu um caixote de laranjas e, ao abri-lo, percebeu que todas as laranjas da parte de cima estão podres; nesse caso, ninguém argumentaria: “As de baixo devem estar boas, para compensar o equilíbrio”. A pessoa diria: “Provavelmente todas estão estragadas”; e é esse, realmente, o argumento que uma pessoa com espírito científico faria em relação ao universo. Ela diria: “Aqui neste mundo encontra-se uma grande quantidade de injustiça e, nessa medida, há razão para supor que a justiça não reina no mundo; portanto, há espaço para o argumento moral contrário à divindade, e não a favor dela”. Claro que eu sei que o tipo de argumento intelectual de que falei não é verdadeiramente aquilo que impulsiona as pessoas. O que realmente as impulsiona a acreditar em Deus não é absolutamente nenhum argumento intelectual. A maior parte delas acredita em Deus porque foi ensinada desde a primeira infância a fazê-lo, e essa é a razão principal.
Ademais, penso que a razão mais forte que vem a seguir é o desejo de segurança, uma espécie de sensação de que existe um irmão mais velho a zelar por nós. Isso desempenha um papel profundo na influência do desejo de crer em Deus.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

Da verdade

Só alcançamos a verdade do nosso pensamento quando incansavelmente nos esforçamos por pensar colocando-nos no lugar de qualquer outro. É preciso conhecer o que é possível ao homem. Se tentamos pensar seriamente aquilo que outrem pensou aumentamos as possibilidades da nossa própria verdade, mesmo que nos recusemos a esse outro pensamento.
Só ousando integrar-nos totalmente nele o podemos conhecer. O mais remoto e estranho, o mais excessivo e excepcional, mesmo o aberrativo, incitam-nos a não passar ao largo da verdade por omissão de algo de original, por cegueira ou por lapso”.
Karl Jaspers, in Iniciação filosófica