sexta-feira, 29 de abril de 2022

Renato Russo | La Solitudine

A escrita

Um trouxe a mirra, o outro o incenso, o terceiro o ouro.
Incenso e mirra evaporaram-se... Mas e o ouro? Os textos nada dizem quanto à aplicação do ouro!

Mário Quintana, in Caderno H

Engrenagem

Minha alma humana é a única forma possível de eu não me chocar desastrosamente com a minha organização física, tão máquina perfeita esta é. Minha alma humana é, aliás, também o único modo como me é dado aceitar sem desatino a alma geral do mundo. A engrenagem não pode nem por um segundo falhar.

Clarice Lispector, in Todas as crônicas

O desenho fluido e original de Matisse

O Ateliê Vermelho (1911) de Henry Matisse 

Caçada noturna

Night has a thousand eyes...

Toda a gente sabe que a plumagem das corujas é macia e mole e por isso o seu voo é silencioso. Inexplicavelmente, as penas reais de Sofia são rijas e o seu voo perfeitamente audível, percebendo-se o rangido, o atrito das asas fortes, denunciando aproximação da caçadora.
Sofia é uma coruja no esplendor da força, quatro anos de experiência de golpes e recursos individuais. Sabe calcular os terrenos onde a caça passará porque sendo de boa raça preadora não come carne morta. Precisa de bicho vivo, palpitante de sangue, estrebuchante sob suas garras que o imobilizam para fácil alvo às bicadas, golpeantes e certeiras.
Sobrevoou o quintal vizinho, reconhecido pelo perfil do moinho de vento quebrado. Depois há o pomar que o esquadrão de Quirá elegeu para o assalto. Voou manso até o último cajueiro e pousou, leve, no galho sombrio. Abriu a frincha das pupilas telescópicas, absorvendo a luz difusa, identificando o local em todas as minudências.
Da terra úmida pelo orvalho evaporado subia o murmúrio confuso de todas as vozes surdas dos animais em batalha pela vida, rastejando, escorregando, pateando no nível do solo. Das árvores derramava-se o rumor vivo de asas, pios, bufidos, estalidos, apelos, réplicas, guinchos de aviso, de informação, pedidos de auxílio e de socorro. Nos ares, as sombras rápidas perpassavam, continuando a mútua perseguição, lutando pela sobrevivência – o amor e o alimento –, vitais ambos.
Os morcegos foram descobertos pelo ruído de guizo ao longe. E também pela virada curva para descer, pertinho dos frutos escuros, e ali ficar, parados, sugando a polpa depois de abrir, com impecável roedura, o sulco reçumador do sumo adocicado.
Somente nos momentos da chegada, quando Quiró fletisse a asa, quase dobrando-a para baixar, é que seria possível um golpe fulminante.
O segundo esquadrão apareceu em seguida e durante um minuto as curvas ganharam maior amplitude. Evitavam possivelmente as urtigas trepadeiras que cobriam alguns arbustos vizinhos ao sapotizal. A urtiga é para as asas membranosas dos morcegos uma bateria de fogo antiaéreo de eficiência mortal.
Quiró roçou o galho onde Sofia o espreitava, imóvel. Rápida, a coruja lançou-se no voo de caça, cortando o círculo descrito pelo morcego. Contava encontrá-lo no ar num esbarro funesto.
Quiró empregou a velha técnica escapatória. Semifechando as asas caiu na vertical, em curva descendente que mais seria espiral. A prontidão da manobra não permitiu a Sofia acompanhá-lo naquela solução imprevista. Estendeu ainda mais as asas, pairando, em escuta, perscrutando o paradeiro de Quiró. O morcego subia em zigue-zagues, curvas fechadas, rumo ao sapotizal próximo. Sofia arremessou-se como uma pedrada, batendo forte as asas três e quatro vezes, paralela a Quiró. Calculando que este passaria justamente na linha inferior à sua trajetória, fechou-as e deixou-se cair, numa vertical atrevida. Quiró, não podendo repetir a descida, mergulhou num parafuso, uma das asas quase cerrada e assim, num voo e queda, furou a sombra dos sapotizeiros onde Sofia não podia fixá-lo nem persegui-lo. Restou à coruja sacudir as asas moles e reganhar o cajueiro, resignada e faminta.
Só então enxergou, arrastando uma sapota marrom, o velho Gô, guabiru de um palmo avantajado, lerdo, cínico, ladrão de todas as coisas comíveis. A luz esmaecida das estrelas projetava na pista de areia a sombra robusta e negra do grande rato feroz, aferrado ao jantar que disputara a Quiró, insaciável e chiante, autoconvencido de ser proprietário do sapotizal. A rixa entre ratos e corujas vem de longe e as duas partes mantêm a animosidade em estado latente e mesmo funcional. La Fontaine contou o caso dos souris e do chat-huant. A luta prossegue com os morcegos porque são chauve-souris e a coruja continua, mesmo em português, um chat-huant. Assim, ratos e gatos, morcegos e corujas representam intrigas implacáveis mesmo quando as asas intervêm para torná-las supremas e cruéis.
Sofia precipitou-se sem perder a majestade da compostura clássica. Desceu quase em cima de Gô que apenas lançou um guincho agudo e breve ao sentir as patas aduncas fincarem-se-lhe no dorso peludo, arrancando-o do solo e erguendo-o, balançado na rapidez do regresso. Tentou voltar o focinho longo e usar os dentes de serra, mordendo as unhas de Sofia. Mas esta bicou-o forte no pescoço e Gô percebeu ter chegado ao fim das aventuras terrenas. Não desanimou porque sabia que a coruja não dilacera a presa no ar e precisa pousar para saciar-se, sabiamente. Gô recorreu ao remédio velho de fazer-se mais pesado e sacudir-se violentamente, agitando as patas e guinchando alto. A sombra do cajueiro avançava e Sofia não bicorou o guabiru como devia, adormecendo-lhe a resistência mas sem matá-lo, porque notou Suinara, a coruja de igreja, rangindo as clavículas em sua direção. O brilho verde dos olhos fosforescentes pregoava sua fome e ânsia da batalha pela posse de Gô. Ia bater-se e depois reapanhar o guabiru ferido que deixaria cair no capinzal. Preferiu descer e o fez logo. Suinara, arrastada pelo ímpeto, passou adiante, com um pio de decepção. Mas descreveu uma curva fechada e voltou procurando Sofia, tentando feri-la no encontro da asa direita. Sofia então largou Gô e reagiu abrindo o bico e soltando o piado rouco, anúncio de ódio total. Acertou Suinara no peito acolchoado e duas penas voaram, além da terceira que ficou na curva do bico de Sofia. Suinara, perdido o botim, desinteressou-se pelo duelo sem prêmio. Largou um bufo estertórico e baixou para caçar a ratazana cobiçada. Sofia chegou primeiro ao chão e andou, com seu passo oscilante e pendular de marinheiro, preferindo os arredores, abrindo os grandes olhos luminosos. Suinara não mais disputou a presa mas partiu perseguindo Quiró retardatário.
Gô desaparecera definitivamente e Sofia retomou o voo para a caçada noturna. Não passou fome porque um Quiró caiu-lhe nas garras e bico antes que atingisse o cajueiro. Pôde então cear, desfazendo o morcego das asas tépidas, arrancando-lhe a carne vermelha do tórax e da barriga, triturando os ossos delicados com vagar e sabor. Apanhou o segundo quase em seguida porque este aventurou-se, tentando encurtar caminho para o sapotizal, a atravessar a copa do cajueiro onde a coruja iniciava a digestão tranquila. Pode juntar à lista um rato-do-campo, um hesperórnis de rabo comprido e fuça curtinha, enfeitada de espalhada bigodeira. Respeitou-lhe a cabeça naturalmente para não prejudicar a identificação ulterior. Do cajueiro acolhedor voou, pesada e serena, para a parede da casa-grande arruinada. Perseguiu inutilmente outro rato-do-campo, que fugiu, dando guinchos como ensinando a pista ao adversário desnorteado.
Mas estas coisas levam tempo para realizar-se. O vento manso da noite esfriara e as estrelas luziam palpitantes, ouvindo os galos que despediam as almas do outro mundo com a clarinada irresistível. Precisou limpar-se devagar no peito e nas ombreiras, passando o cuidadoso bico para expulsar os fragmentos da refeição.
Gô estava justamente dentro duma moita de capim barba-de-bode, junto ao muro da casa-grande. Viu perfeitamente o voo de Sofia e a manobra frustrada para conquistar o rato-do-campo, fujão e feliz. Só o pescoço o incomodaria porque Gô não faz confidência sobre a extensão do seu amor-próprio ferido. Certo é que não mais sangrava o vestígio das garras de Sofia e apenas o pelo mostrava, arrepiado, falho, com sangue seco, a força da coruja e a ventura do guabiru alforriado da morte.
Andou lento-lento, de touça em touça, farejando inquieto, arrastando a cauda com precaução e temor. Veio vindo, teimoso, escondendo-se, demorando-se nas sombras mais espessas, achatando-se quando ouvia o ranger dos remígios das grandes aves de presa; ficando imóvel como se posasse para um friso, esperando, paciente, que o silêncio voltasse; inflexível no rumo embora com duzentas voltas, reviravoltas, rodeios, atalhos, corridinhas nervosas, passos retardados de acompanhar andor, marchas retas, oblíquas, em diagonal ou perpendicular ao eixo da estrada, em labirinto, indo como se deliberasse chegar em primeiro lugar numa disputa olímpica, desinteressado e lerdo mas sem deixar de mover-se no mesmo quadrante sul, com uma obstinação heroica de persistir ao encontro dos possíveis inimigos, incapaz de renunciar o destino da missão misteriosa e terrível que o impelia para os lugares cruéis do seu principiado suplício. Vencedor do medo e a defesa pessoal, Gô andou perto do cajueiro, noite adentro, até encontrar a sapota bem grande e sumarenta que arrastava quando Sofia o atacou. Segurou-a nos dentes e foi embora, feliz.
Licosa é que estava de mau humor por causa do grilo tenor. Aquele canto persistente fornecia à caranguejeira a coordenada geográfica do ortóptero saltador. Lançou as oito pernas peludas e macias guiadas pelos palpos adejantes no rumo do grilo cantador. Era apenas subir para o estrado dos últimos tijolos, quase na telha final. Licosa ascendeu, silenciosa, menos guiada pelo som que tão pouco entende do que pela visão confusa do animal, destacado no topo do castelo tijoleiro. Mas precisou fazer uma volta prudente, evitando Titius que andava caçando também e aceitaria uma batalha rápida entre tenazes e quelíceras inexoráveis, para pôr-se em forma combativa. O pior é que o grilo pressentiu-a e continuou no desafio como se Licosa não existisse. Emitiu algumas notas altas e de efeito e depois dobrou as patas dianteiras, curvando as traseiras no dobro do tamanho e, bruscamente, atirou-se para cima como se o projetasse uma catapulta. Foi cair dez metros adiante, no chão, depois do tanque, de onde repetiu a façanha atlética até a calçada da cozinha abandonada. Aí sacudiu o canto, acordando quem dormia e exasperando Licosa que encontrara apenas o canto limpo onde o grilo estivera. Virou-se, quadrada e mecânica como um carro de guerra, e reiniciou a descida pelo outro lado. Só então deparou com uma barata grossa, abaulada e vagarosa, de asas duras que lhe forneceu a contragosto o primeiro alimento da noite. A filha de Blata sumiu envolvida nas suas patas felpudas e cruéis. Um gafanhoto verde-lodo, fino mas gostoso, serviu-lhe de sobremesa. Ergueu, rápida, as patas dianteiras, agitando as antenas como antecipando o embate. Recuou, dando caminho e pista à Raca que passou, ondulante, sinistra, para cumprir missão que só ela sabia onde se encontrava.
Titius tivera a ventura inesperada de deparar com uma coluna de baratas que sugavam um resto de mamão podre. Segurou duas com as pinças e pode repetir o prato porque as baratas, fujonas do primeiro medo, voltaram, tranquilas, à degustação da fruta tão cara para elas.
O sapo ouro e negro jantara uma colônia de mosquitos que festejavam o descobrimento do tanque, novidade para eles. Não apreciou totalmente o repasto porque deglutiu um besouro escuro e esse ferrou-o na língua grossa, obrigando-o a restituí-lo, úmido e pegajento, à vida terrena. O besouro enxugava-se quando Titius apareceu e incluiu-o no seu cardápio.
O grilo silenciava, roendo madeira velha, molhada de orvalho e oferecendo-se à sobremesa das sementes verdes e talos tenros. Não conseguiu avistar-se com a namorada nem havia tempo útil para procurá-la além do canto de muro. Com dois saltos magistrais voltou para perto de casa mas entreteve-se saboreando uma vergôntea de melão-bravo.
Bidu, o galo vizinho, anunciava a madrugada pela segunda vez. Titius voltou para seu apartamento, encolhendo as patas, dobrando as pinças, tranquilo para o resto das horas lentas.
Cumprindo instruções milenárias, as servas de Ata carregavam as sobras dos banquetes, os talos verdes, os brotos úmidos, seguindo em fila a um de fundo, disciplinadas, mergulhando na bocarra do formigueiro materno, levando os despojos que haviam custado os combates alheios e os riscos dos outros animais. Era como uma porcentagem devida ao trabalho eterno daquelas obreiras inúteis no egoísmo de um esforço votado ao próprio e único benefício. Nem qualquer outro animal aproveitaria o resto que as saúvas transportavam para o seu mundo escuro e sedutor. Durante toda a noite, a tarefa continuou sem pausa como um abastecimento indispensável de navio para viagem sem fim.
Raca só voltou mais tarde, saciada de ratos novos. Acabara com um ninho inteiro, enrodilhado e confuso dentro dum agasalho de jornais rasgados, junto à parede da cozinha. Devia ser ninhada de parentes de Musi, hóspedes confiados nos gabos da tranquilidade do refúgio. Os moradores sabiam da presença de Raca naquele verão e nenhum tentaria dormir ao alcance de sua fome. Inexperiência da mocidade ratoína.
O sapo negro e ouro ficou olhando os pirilampos mas não conseguiu prestar sua homenagem imediata a nenhum deles. Passaram riscando a luz azul e breve sem deter-se. Ainda faiscaram na mangueira escura e depois seguiram, lampejantes, para o rumo longe. Dizem que Tim, o lagarto verde, calango vagabundo ora visitante, detivera um deles para sempre, incorporando-o ao seu todo. Tim estava arranchado no muro, lá em cima, justamente onde os pirilampos demoraram uns instantes antes de voltar à sua base. Mas os pirilampos souberam depois da morte de Tim nas garras de Sofia, numa noite de lua cheia, clareando esconderijos como um farol indiscreto. Nesta mesma noite Licosa perdeu uma pata e Titius bateu-se em duelo. Mas isto é outra história...
Nem todos os insetos e animais vários caçam a noite inteira. Têm sua tabela de persistência e horário profissional de rendimento. Depois de certo período, os lances perdem impetuosidade e os cálculos falham em proporção alarmante. Caem em curva de fadiga. Sofia irá até madrugada alta mas Suinara depois de tentativas perseguirá o gostoso inimigo partindo do seu pouso no alto da torre de igreja ou oco de pau mais próximo das ruas, vendo de longe as luzes porque é uma coruja social e não tanto meditativa como Sofia, saudosa da deusa dos olhos verdes.
Titius e Licosa recolhem-se quando a noite esfria. Os vaga-lumes apagam a iluminação errante nas primeiras horas do escurão.
O pessoal de Ata, Gô, o malandro, Quiró, o sutil, as aranhas andejas que vão procurando caça e não são proprietárias de teias em cantos certos, morando em gretas perto do chão, debaixo da pirâmide ou nas vizinhanças do cavalo do cão, labutam até o primeiro listrão do amanhecer. Brinco, o gato, e Raca, abandonam o terreno bem antes do crepúsculo matutino. A prole e parentesco de Musi perseveram o mais possível.
Uma outra multidão batalha até o sol empurrar as nuvens derradeiras da treva. Parece mas não é o mesmo bando predador. Besouros, centopeias, lacraus, baratas escuras e obstinadas, grilos puladores, os reprovados percevejos – o verde que tem os ombros em ponta de alfinete e o moreno de dorso abaulado – ambos de irradiante emanação repugnante, aranhiços de pernas enormes que correm silenciosos como plumas e enrolam as presas em fios, segurando a vítima com as patas dianteiras e puxando os cordéis imponderáveis e resistentes, com as traseiras; as que vêm vagarosas como horas tristes, fazendo aproximação com o cuidado de quem não pode perder o golpe e se precipitam de salto, imitando na escala liliputiana o tigre-real-de-bengala ou a pantera-negra-de-java; os que lutam lealmente opondo força à força, afrontando os riscos da furiosa defesa; os milenarmente civilizados que injetam inércia no corpo do adversário, levando-o, como quem conduz amigo para festa, ao recanto onde o devorará; as turmas de insetos miúdos que furam os caules tenros dos vegetais e mergulham a tromba sugando a seiva sem precisar respirar ou mudar de iguaria; os que saem das folhas secas, debaixo de pedras chatas da umidade do tanque, escapando à goela de Fu, o sapo negro e ouro como um mandarim, atravessando tempo, guardando a existência, defendendo-a, arrancando-a aos outros da mesma ou de alheia espécie.
Pelas árvores outras ondas viventes estão fervilhando, subindo e descendo pelos galhos, imóveis nas folhas de esmeralda, grudados aos troncos, rodeando os frutos e os brotos, roendo, chupando, triturando, lambendo, furando, bebendo alimento.
Animais maiores sabem destes hábitos e vão procurar os hóspedes mantidos pelas árvores, trepadeiras e arbustos para torná-los em refeições consumidas no sigilo, na cumplicidade da treva, vezes na simultaneidade dos ataques em que o agressor passa a agredido, preando e preado, na mesma fila da vítima que assaltou. Esta cadeia palpita, pulula, escorrega, fugindo, matando, absorvendo, parando para lutar e morrer, num ciclo de perseguição implacável, de ódio espontâneo, de intensidade dramática. Os tipos fortes digerem o quinhão conquistado até que um colega do mesmo porte apareça exigindo participação nos lucros.
No ambiente a que luzes difusas vão dando uma claridade opalescente e translúcida, perpassam os vultos das aves de combate, seguindo como relâmpagos os morcegos ágeis, os besouros gordos e as mariposas lerdas. Sofia voltando para casa jamais deixou de buscar este fim de cardápio que a regala, ortópteros e coleópteros suculentos, de polpa fina de manjar branco saboroso, defendida pela casca estalante e colorida como o chocolate recobre o creme.
No solo o mesmo combate se estende convulso e sem pausa entre espécies misteriosas e adversários clássicos. Num instante fulguram os dois olhos deslumbrantes do velho Niti, o bacurau-mede-léguas, pesquisador paciente das estradas, catando folhas e pedrinhas humildes na adivinhação dos insetos preferidos, adiantando-se a passo no andar de marujo enjoado de encontrar-se em terra firme, batendo a estrada, trilho ou vereda de areia que o mato vai orlando, quilômetros dentro da noite mansa. É preciso muita resignação na espera e muita artimanha na manobra para que Niti complete o seu lote avultado, porção indispensável de comida viva, a comida que vem pulando ao seu encontro.
Desde que a estrada fique visível, Niti sacode as asas largas no voo do regresso. Não pode desmoralizar a tradição noturna de sua família, os cuprimulgídeos do gênero Nyctibius, figurando em lendas e superstições respeitáveis e seculares.
Duas centopeias batem-se por causa de uma barata sem cabeça, permutando tesouradas, coleando os corpos de ouro-cendrado numa agitação convulsiva de patas incontáveis. A barata já morta espera na areia a vencedora que não será uma combatente, mas um lacrau adventício que a apanhou e seguiu sem pretender assistir ao final das justas.
Brilha o papo prateado de uma ave que engoliu um besouro em pleno voo. Quiró repete a façanha fazendo voos de acrobacia, parafusos de espiralado eixo que finda pela morte do perseguido.
Ouve-se o bulício nos frutos que amadurecem. Vão amanhecer com os vestígios de dentadas serrilhadas, arranhões, riscos de unhas, bicos, garras, agulhas, puas, pontadas, rasgões. Apenas a mãe-árvore permite o assédio aos frutos legalmente amadurecidos ou madurez iniciada. Os verdes estão guardados pelos sumos e leites causticantes, insuportáveis e acres. Não existisse esta barreira e a frutificação total seria impossível para o mamoeiro, sapotizeiro e goiabeira, fáceis e substanciais.
Sofia desceu na borda da residência mas voltou-se, sacudindo as asas, olhando o campo de sua batalha. Depois, grave, mergulhou na toca. Niti ganhou altura quase na vertical mas desapareceu na horizontalidade do seu impulso, rumo do lar distante. Os saltos, rumores, estalidos, guinchos, pios, notas de comunicação animal apenas perceptíveis aos próprios companheiros na infrassonoridade das vibrações baixas e teimosas, foram diminuindo, cedendo, acalmando-se, nivelando-se num silêncio que emanava da luz nascente e sensível da manhã longínqua.
Bidu cantou a última vez, amiudando a saudação à alvorada, numa aleluia estridente e jubilosa. Os outros Bidus prolongaram o canto, atirando-o para as vozes afastadas que o sacodem, longe, para os finais do campo e da cidade.
A nódoa luminosa do leste se amplia no círculo que resplandece no céu de porcelana transparente. A primeira chama rósea rasga a monocromia dos tons cinzentos e ganha os matizes lilases, derramados na curva do céu.
As cores acordaram e se fazem sensíveis. Todas as coisas desaparecidas na treva retomaram os lugares habituais. Os fantasmas dimensionais restituíram as proporções verídicas aos valores encantados na noite profunda. A fada Normalidade reequilibrou o verismo da costumeira paisagem.
Brinco passeia no fio do muro verificando se o mundo continua. Ainda não apareceu Vênia com sua tropa concordante. Os xexéus sacodem nos instrumentos metálicos a protofonia animadora. As tapiucabas, vespídeos do cortejo, zumbem recomeçando a vassalagem harmoniosa.
Os primeiros voos agitam as aragens que adormeceram nas samambaias e as folhas oscilam, saudando a luz invasora e contínua que se derrama no tronco do céu do amanhecer.
Quiró agasalhou a turma buliçosa, farta de sapotis e de besouros. Sofia deve ter adormecido. Não se fala do grilo nem dos moradores da pirâmide sossegada. Ondulam os aromas das flores melancólicas daquele jardim deserto. Não se vê Fu, o sapo do tanque, nem Dica, a aranha-d’água. Surgirá esta com o sol na inspeção matinal. Fu apresentar-se-á tarde, com a varação do crepúsculo, refeito e apto para recomeçar.
A chilreada caiu dos galhos baixando como uma vaga melodia de orquestra onde os instrumentos se afinam, mas já possuem o mesmo diapasão. O bem-te-vi gritou que bem vira alguma coisa digna de menção, voando em espiral. Seguiu-o a lavadeira. Os xexéus. Dois canários vararam o quintal como duas setas de ouro.
As aranhas sedentárias verificam a cordoalha das teias. Moscas, besouros verdes, negros, listados de rubro, varejeiras de bronze reluzente, vibram no ar. Retine, longe, ferindo a bigorna, o martelado da araponga. As paquinhas, grilos-toupeiras, abrem com as patinhas incansáveis o breve túnel. Vênia deslizou na parede, visível no lusco-fusco das trepadeiras. Cintilou numa irradiação de joalheria o primeiro beija-flor madrugueiro.
Água cantou, trêmula e fiel, na linha do tanque. Uma folha largou a margem e viaja, rodando, no impulso da corrente suave. Dica passou na lâmina rebrilhante e viva. A sombra da mangueira recortou-se em relevo no chão de areia solta e suja. Um raio de sol transfigurou o canto de muro. Bom dia!…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

Grande-amor-da-vida

Ele conheceu o grande-amor-da-vida quando tinha quinze anos. Aprendeu num filme que o grande-amor-da-vida só existe um. Não saía mais de perto dela. Foram felizes por alguns anos. Acontece que o grande-amor-da-vida dele não era o grande-amor-da-vida dela, e ela nem acreditava nessa história de amor-da-vida nem em filmes de amor. Essas coisas acontecem (não nos filmes). Enquanto namoravam, foi bom. Depois, ela quis terminar e viajar pelo mundo em busca de outros amores-da-vida. Ele passou a vida investigando os outros amores-da-vida dela. Foi uma vida sem muitos amores-da-vida, porque foi vivida para que o grande-amor-da-vida dele não tivesse outros grandes-amores-da-vida. Não deu certo. O grande-amor-da-vida dele teve uma dúzia de amores-da-vida. Aos vinte e sete anos, ele estava deprimido porque o grande-amor-da-vida estava se casando com um dos grandes-amores-da-vida dela. Não deu bola para uma mulher que, se ele tivesse ouvido falar, entenderia se tratar do maior-amor-do-mundo. Aos trinta, conheceu o amor-da-vida-inteira num bar, mas o confundiu com uma mulher-chata-que-fala-demais. Aos trinta e dois, só viu espinhas numa moça que, numa vida alternativa, seria o amor-mais-legal-do-mundo. A primeira pessoa a alertá-lo desse desperdício de amores foi seu melhor-amigo. Deixou de ser o melhor-amigo e passou a ser só um amigo-que-não-quer-me-ver-feliz-com-o-grande-amor-da-vida. Aos trinta e cinco anos já tinha deixado passar vinte e nove sexos-inesquecíveis e oito amizades-profundas. Aos quarenta anos, o grande-amor-da-vida dele (quem diria, ela mesma) resolveu dar uma segunda chance ao passado e reviver aquele que foi, pra ela, só o primeiro-amor-da-vida. Ele precisava tanto ser feliz que não foi. E ela voltou a procurar o grande-amor-da-vida no futuro, não mais no passado. Ele se voltou para o presente e mal deu tempo de viver um ou outro sexo-surpreendente. Pode ser que o grande-amor-da-vida seja um só. Mas os amores-da-vida são muitos, e acontecem o tempo todo — grandes, pequenos, gigantescos.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

Cassiano | Rio Best-Seller

Dois guris – ou A maternidade perdida

O Poeta é aquele ser a quem é dado, mais do que aos outros, o poder de manifestar a vida dos afetos; é como se ele tivesse uma maior possibilidade de contato com o próprio inconsciente (pessoal e filogenético) e a poesia é um espaço em que se permite ao inconsciente aflorar. Diz Baudelaire que o Poeta dispõe do privilégio de ser ao mesmo tempo ele próprio e o Outro. E eu especificaria: ou Outra. Não por acaso, em seu famoso estudo sobre a Feminilidade, Freud acaba seu ensaio dizendo: “e agora, quem quiser saber mais sobre a mulher, que consulte os poetas”. É assim que nas canções de Chico Buarque emerge a fala da mulher, de uma perspectiva, por vezes, espantosamente feminina. Penso, por exemplo, numa canção como “Pedaço de mim”, em que surge com grande intensidade o sentimento feminino de perda, de privação, de falta. Trata-se de uma canção que flagra um momento de despedida de um casal, atualizando em nós o estado de incompletude e carência, e a consequente sensação de mutilação que as separações mobilizam:

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Evidentemente, há aqui uma convergência de elementos: de uma perspectiva psicanalítica, o complexo de castração: a percepção feminina de que lhe falta um pedaço, como queria Freud; da perspectiva do mito, há uma dupla referência. De um lado, alusão ao Andrógino do Banquete de Platão: o ser composto, dividido por Zeus em duas metades, que hão de procurar-se o resto da vida, inapelavelmente... De outro lado, ainda no nível mítico, mas de outra vertente cultural, há uma alusão à narrativa da Criação do homem, tal como ela aparece no Gênesis, no primeiro livro da Bíblia: a criação de Eva, por Javé, a partir de uma costela de Adão.
É essa percepção de radical incompletude que experimentamos, a dor da mutilação nas separações amorosas, a percepção da falha, da falta, da carência – é a isso tudo que respondem essas duas narrativas míticas, de culturas diferentes, grega e judaica, à raiz da civilização ocidental. E é essa percepção que o poeta verbaliza, é essa dor que ele nomeia. A unidade (precária, fugaz, ilusória) que se consegue no encontro amoroso, quando rompida, leva à sensação de uma mutilação. O Andrógino era, efetivamente, o ser total, completo, pleno; dividido, restam pedaços incompletos, faltantes. Com efeito, quando essa unidade se rompe, sobram metades desraigadas, procurando sua outra “cara-metade”; há quase que uma perda do próprio eu, no momento da separação. Vivemos na nostalgia de uma unidade perdida.
Mas, continuando a leitura da mesma canção, vejamos a seguinte estrofe:

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Assim, embora no contexto da canção “Pedaço de mim”, que tematiza uma separação de amantes, se patenteie um relacionamento erótico, homem-mulher, a saudade que aqui é flagrada remete a uma outra situação, primordial, em que está em pauta o relacionamento mãe-filho: “[...] a saudade é o revés de um parto”, “A saudade é arrumar o quarto / Do filho que já morreu”.
Pois bem, é exatamente disso que trata “Angélica”, composta por Chico Buarque com Miltinho, em 1977 – uma canção de extrema pungência, em que a protagonista é uma mulher que vive o amor materno na ordem do trágico.1 Vamos a ela:

Quem é essa mulher
Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho
Que mora na escuridão do mar

[...]
Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento
Que fez o meu filho suspirar


[...]

Sim, quem é essa mulher? A resposta a essa pergunta, tão reiterada no corpo da canção, encontra-se fora dela, no contexto social, na história do Brasil dos anos de chumbo, época da ditadura militar. Essa mulher é a mãe que “Só queria lembrar o tormento / Que fez o (s)eu filho suspirar”; “Só queria agasalhar (s)eu anjo / E deixar seu corpo descansar”; “Queria cantar por (s)eu menino / Que ele já não pode mais cantar”. Desgraçadamente, não há metáforas aqui: as coisas devem ser tomadas na sua literalidade. Essa mãe é Zuleika Angel Jones, a Zuzu Angel, que lutou desesperadamente – até morrer, ela também, num acidente de carro esquisito e nunca explicado – para deslindar o caso do desaparecimento e morte de seu filho Stuart Edgard Angel Jones, estudante de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, militante político, e que em 1971 foi preso, torturado e desapareceu. Angélica: um papel-limite do feminino. Paradigma da função da mulher, de denunciadora da injustiça e da repressão máxima ao instinto de vida, que é a tortura e o assassinato.
Quais suas ações, que a canção registra? “Embalar”, “agasalhar”, “deixar descansar” – verbos que indiciam os gestos da maternidade, de proteção, cuidado e preservação do que é frágil: seu filho, seu anjo, seu menino. A esses verbos acrescentam-se “lembrar” e “cantar por” – marcadamente femininos, desta feita num outro nível, articulando memória e profetismo. Pois cabe à mulher, a serviço da vida, de um lado, ativar o que não pode ser esquecido, resgatar continuamente a memória; de outro lado, denunciar a situação de opressão. Trata-se de profetismo no sentido etimológico (do grego profemi: femi, “falar”; pro, “em lugar de”, “diante de”). O profeta é aquele que fala em lugar de quem não pode falar, do fraco e indefeso; e que fala diante do poderoso, apontando-lhe os crimes. É essa a tradição do profetismo bíblico: basicamente, denúncia de uma situação de injustiça.
Todos sabemos, com Adorno, que “o conteúdo de um poema não é apenas a expressão de emoções e experiências individuais”. Pois bem, mesmo correndo o risco de infringir o “estatuto lírico” dessa composição, ocupando-me tanto com o seu referente da vida real (e parecendo reduzir o poema a um documento do seu tempo), vou me demorar um pouco, inicialmente, nessa personagem real, histórica, nessa figura extraordinária de Zuzu Angel Jones.
Chico Buarque compôs “Angélica” após o acidente que vitimou Zuzu Angel, em 1976, na sequência das reiteradas denúncias que ela fizera da morte e desaparecimento do filho, militante do “Movimento Revolucionário 8 de outubro” – MR-8. Ela estava consciente do risco que corria: advertia conhecidos e amigos de que, se algo lhe acontecesse – por exemplo, se aparecesse morta por acidente – isso teria sido obra dos assassinos de seu filho – que, preso por agentes do CISA (Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica), no Rio de Janeiro, morreu sob bárbaras torturas (o “tormento” aludido na canção de Chico Buarque), e seu corpo nunca foi encontrado – supostamente, foi atirado em alto-mar (“mora na escuridão do mar”, diz a canção).
Há que se meditar sobre o percurso dessa mulher, estilista, figurinista, cuja atividade profissional era a moda, campo aberto à fantasia, à beleza, sensualidade e imaginação humanas: uma necessidade cultural. De uma atividade arquetipicamente feminina, de lidar com tecidos, com tecelagens, com costuras, ela se lança numa cruzada de denúncia e de enfrentamento do poder militar que lhe custará a vida. Passa da “ordem da festa” para a “ordem do trágico”: e ela, que nas suas confecções utilizava motivos de anjos (evocados no seu sobrenome), numa fase posterior passará a figurar soldados, cruzes, tanques blindados, pássaros engaiolados. Zuzu Angel passa a utilizar a moda e as suas confecções como forma de protesto, efetivando o que chamava de “primeira coleção de moda política da história”. Torna-se um símbolo de resistência à ditadura brasileira – uma espécie de antepassada das “Mães da Plaza de Mayo” (mães e avós dos presos políticos da ditadura argentina, que se reuniam em protesto silencioso pelos desaparecidos). Angélica/Zuzu Angel: uma daquelas mulheres que, fiel à sua condição visceral, se dedica a denunciar as forças da morte. Mais próxima das “fontes da vida” porque, com a gestação, é no nível do corpo que a maternidade primeiro se manifesta, cabe à mulher defender a vida, e vida por ela própria gerada. Mas, para além dos determinismos biológicos e quase instintuais, evidencia-se em “Angélica” a dimensão política do gesto feminino. E é por isso que Zuzu Angel também encontrará a morte: terá também a sua voz emudecida pela repressão.
Com a canção de Chico Buarque, Zuzu Angel torna-se Angélica: passou do individual para o social, passou de pessoa a personagem; de testemunha de seu tempo para obra de arte. Continuemos o pensamento de Adorno, acima citado: num poema, não é a emoção individual nem a experiência individual que valem, pois “estas não chegam a ser nunca artísticas, a menos que consigam uma participação no geral por meio, precisamente, da especificação que é o seu estético tomar forma”.4 Aqui se apresenta uma bela oportunidade para se tratar daquilo que Hegel chama de passagem do particular para o geral, que a poesia propicia. Não é a incontornável dor dessa mãe que é uma pessoa em carne e osso, chorando um filho que é também uma pessoa real, histórica, que faz de “Angélica” uma obra de arte, de alto nível poético. Nem o testemunho histórico nem a mensagem política. A “mensagem” teve de vir como poesia, no código da arte, como canção popular, com eficácia formal, para nos atingir e perdurar, repito, pela forma. Por sua eficácia estética, acedeu a um “universal”, em que qualquer um pode se reconhecer nessa situação de perda e se sentir interpelado. Passagem do particular ao universal: não estamos nos domínios da informação, ou da mera comunicação, mas no da arte.
Nessa passagem que é a da parte para o todo, viabiliza-se que cada um de nós tenha a possibilidade de nesse todo se reencontrar: não é mais a experiência do indivíduo que na poesia é focada, mas a do ser humano; supera-se o circunstancial atingindo o universal. Adorno: “Só entende o que diz o poema aquele que percebe na solidão do mesmo a voz da humanidade”.
Angélica” é uma canção que testemunha eficientemente a ideia da importância da forma na produção poética, e de em que medida o conteúdo atua por causa da forma. Antonio Candido, num belíssimo ensaio, “O direito à literatura”, ao tratar do poder de organização da palavra poética, que se faz por meio da forma, diz que “A mensagem é inseparável do código, mas o código é a condição que assegura o seu efeito”.6 E na sua admirável clareza, ele exemplifica com uns versos da lira de Gonzaga, e mostra que é no enquadramento de um estilo literário, usando rigorosamente versos de tantas sílabas, explorando a sonoridade, o poder sugestivo da rima, a cadência do ritmo etc. etc., combinando palavras de tal e tal jeito, que o poeta “transforma o informal ou o inexpresso em estrutura organizada, que se põe acima do tempo e serve para cada um representar mentalmente as situações [...] deste tipo”.
Assim, também, na esteira de Antonio Candido, poderíamos dizer, voltando a Chico Buarque, que esse efeito é conseguido pelo compositor usando os recursos do ritmo, e da melodia e sua plangência, explorando o efeito encantatório da palavra e o poder sugestivo da rima (que enlaça termos cujos significados também devem estar em acordo, também deverão “rimar”, como menino/destino/divino; morte/sorte; luar/matar etc.); com a sonoridade que nos atinge sensorialmente; com as figuras de linguagem aí agenciadas que impressionam a percepção; com a força das imagens e seu apelo sensível; e também com o recurso ao patrimônio de memória histórica de que participamos, e assim por diante. Tudo isso como que (nas palavras de Antonio Candido, de novo) “permite que os sentimentos passem do estado de mera emoção para o de forma construída, que assegura a generalidade e a permanência”. E também assegura a comunicabilidade, poderia ser acrescentado. Permanência ao longo do tempo, na memória dos ouvintes (e leitores); os versos da canção se instalam quase que à revelia na nossa memória e sensibilidade. “A forma permitiu que o conteúdo ganhasse mais significado, e ambos, juntos, aumentam a nossa capacidade de ver e de sentir”. E que, além do mais, vai se abeberar em águas profundas do mito. Reitero: a passagem do particular para o geral é aqui exemplar. O caso individual de uma mãe que perde um filho torturado pela ditadura militar é algo de patético, mas particular, que, assim contado, não consegue uma “eficácia estética” que eleve, nos termos do mestre Antonio Candido, “a experiência amorfa ao nível da expressão organizada”. A canção de Chico transcende o caso individual e, pela força da palavra poética, atinge o universal. Mas nesse universal cada um poderá ver, embutida, a questão, que é a questão de cada ser humano; seres sujeitos ao desgarramento, a perdas, passíveis de sermos afetivamente despedaçados.
Retomando: Angélica, como já disse, é a mulher que não se limitou a chorar a perda; ela lutou desesperadamente, agiu. Não apenas expressou o lamento, mas, como eu já disse, “cantou por” quem não podia mais cantar. E por isso morre. Mas depois que ela se cala, e também sua voz é brutalmente emudecida, quando também ela “já não pode mais cantar”, seu canto é continuado pelo canto do poeta. A poesia eterniza seu protesto. E é a arte que exerce o papel não apenas de resgate da memória, mas de resgate do sentimento – um ingrediente em geral tão recalcado na história.10
E assim caímos de volta no universo poético das letras da canção de Chico, que tão sensivelmente capta o feminino e o exprime.
No mesmo recorte de “Angélica”, dentro do que convencionei chamar “a ordem do trágico”, está “O meu guri”, composta por Chico em 1981, essa patética canção narrativa que tem como eu lírico a mãe de um marginal, favelada do morro, que desconhece a condição e a real natureza do “batente” de seu filho – aliás, que na sua ingenuidade tudo ignora, inclusive, e sobretudo, a morte do seu menino como menor infrator, que vira notícia de jornal:

Chega estampado, manchete, retrato
Com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
Fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí
Olha aí, é o meu guri

O impacto da tragicidade do fim da última estrofe é preparado pelo andamento narrativo da canção, que, com simplicidade e delicadeza, mostra a interação mãe-filho e as condições de privação em que esse menino foi criado:

Já foi nascendo com cara de fome
E eu não tinha nem nome pra lhe dar
Como fui levando, não sei lhe explicar
Fui assim levando ele a me levar

Implacavelmente, Chico Buarque desvenda o desamparo feminino e a procura de proteção que, paradoxalmente, por vezes, a maternidade mascara:

Eu consolo ele, ele me consola
Boto ele no colo pra ele me ninar

E mostra igualmente, com insistência, o engano materno relativamente às provas inegáveis da atividade do filho trombadinha:

Chega suado e veloz do batente
E traz sempre um presente pra me encabular
Tanta corrente de ouro, seu moço
Que haja pescoço pra enfiar
Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro
Chave, caderneta, terço e patuá
Um lenço e uma penca de documentos
Pra finalmente eu me identificar, olha aí
[...]
Rezo até ele chegar cá no alto
Essa onda de assaltos tá um horror

Essa mesma dolorosa ingenuidade (tecida de ignorância, de negação da realidade, penúria intelectual e cega cumplicidade materna) atingiu seu ponto extremo, como vimos, com a equivocada interpretação da foto no jornal do menino morto, “com venda nos olhos, legenda e as iniciais”. A ironia da situação, trágica, repontará, aliás, como um leitmotiv ao longo de toda a composição. “Ele disse que chegava lá”; e sobretudo o refrão, em que o orgulho materno mascara a trágica realidade : “Olha aí, é o meu Guri”.
A mãe retratada em “Angélica” e a favelada do morro: o confronto dessas duas mulheres que perderam seus filhos recorta um quadro doloroso que coloca em questão a maternidade ferida. Duas mães, dois filhos mortos, o “anjo” e o marginal – ambos assassinados: um, pelas forças mortíferas da repressão política; outro, eliminado pela força policialesca, num quadro de marginalidade e opressão socioeconômica. Uma tem consciência, sabe que perdeu o filho e, a partir dessa consciência, pode estruturar o seu luto e emprestar um sentido para a sua vida: cantar por seu menino, que ele não pode mais cantar. E a outra, analfabeta, nem pode ler a legenda das fotos do jornal e decodifica invertido os signos da morte:

O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar

O que torna quase que mais dolorosa a situação da mãe do guri marginal é que a alienação atinge fundo, a desumanização vai longe: ela perde, mas não sabe que perdeu. Ou melhor, ainda não sabe: enquanto em “Angélica” a dor é flagrada no seu movimento, em “O meu guri” é mostrada em véspera, no estágio absolutamente anterior ao seu deflagrar. A ironia: o mais cruel dos tropos. “O meu guri” devassa o momento – álgido – antes da dor, e enfoca a questão da impossibilidade de consciência e a ignorância, fruto da alienação. Zuzu Angel transforma a saudade em ação, metamorfoseia o luto em luta. A mãe favelada ainda não sabe – o que a torna mais patética. Mas, em ambos os casos, a saudade se configurará como “o revés de um parto”; em ambos os casos, flagra-se uma mutilação: a morte violenta de um ser de quem as duas mulheres diriam que é um “pedaço de mim”.

Adélia Bezerra de Meneses, in Chico Buarque: o poeta das mulheres, dos desvalidos e dos perseguidos

Iguais à véspera

 “Você sabe tão bem quanto eu, que uma das principais causas do tédio é a estreiteza do nosso destino. Todas as manhãs, despertamos iguais ao que éramos na véspera. Ser eternamente o mesmo é insuportável para os espíritos refinados pela reflexão. Sair do próprio eu é um dos sonhos mais inteligentes que um homem pode ter.”

Julien Green

O Adorável Desastre, por Fabiano Alvez

 

A nova Califórnia

I

Ninguém sabia donde viera aquele homem. O agente do Correio pudera apenas informar que acudia ao nome de Raimundo Flamel, pois assim era subscrita a correspondência que recebia. E era grande. Quase diariamente, o carteiro lá ia a um dos extremos da cidade, onde morava o desconhecido, sopesando um maço alentado de cartas vindas do mundo inteiro, grossas revistas em línguas arrevesadas, livros, pacotes...
Quando Fabrício, o pedreiro, voltou de um serviço em casa do novo habitante, todos na venda perguntaram-lhe que trabalho lhe tinha sido determinado.
Vou fazer um forno, disse o preto, na sala de jantar.
Imaginem o espanto da pequena cidade de Tubiacanga, ao saber de tão extravagante construção: um forno na sala de jantar! E, pelos dias seguintes, Fabrício pôde contar que vira balões de vidro, facas sem corte, copos como os da farmácia — um rol de coisas esquisitas a se mostrarem pelas mesas e prateleiras como utensílios de uma bateria de cozinha em que o próprio diabo cozinhasse.
O alarme se fez na vila. Para uns, os mais adiantados, era um fabricante de moeda falsa; para outros, os crentes e simples, um tipo que tinha parte com o tinhoso.
Chico da Tirana, o carreiro, quando passava em frente da casa do homem misterioso, ao lado do carro a chiar, e olhava a chaminé da sala de jantar a fumegar, não deixava de persignar-se e rezar um “credo” em voz baixa; e, não fora a intervenção do farmacêutico, o subdelegado teria ido dar um cerco à casa daquele indivíduo suspeito, que inquietava a imaginação de toda uma população.
Tomando em consideração as informações de Fabrício, o boticário Bastos concluíra que o desconhecido devia ser um sábio, um grande químico, refugiado ali para mais sossegadamente levar avante os seus trabalhos científicos.
Homem formado e respeitado na cidade, vereador, médico também, porque o doutor Jerônimo não gostava de receitar e se fizera sócio da farmácia para mais em paz viver, a opinião de Bastos levou tranquilidade a todas as consciências e fez com que a população cercasse de uma silenciosa admiração à pessoa do grande químico, que viera habitar a cidade.
De tarde, se o viam a passear pela margem do Tubiacanga, sentando-se aqui e ali, olhando perdidamente as águas claras do riacho, cismando diante da penetrante melancolia do crespúsculo, todos se descobriam e não era raro que às “boas noites” acrescentassem “doutor”. E tocava muito o coração daquela gente a profunda simpatia com que ele tratava as crianças, a maneira pela qual as contemplava, parecendo apiedar-se de que elas tivessem nascido para sofrer e morrer.
Na verdade, era de ver-se, sob a doçura suave da tarde, a bondade de Messias com que ele afagava aquelas crianças pretas, tão lisas de pele e tão tristes de modos, mergulhadas no seu cativeiro moral, e também as brancas, de pele baça, gretada e áspera, vivendo amparadas na necessária caquexia dos trópicos.
Por vezes, vinha-lhe vontade de pensar qual a razão de ter Bernardin de Saint-Pierre gasto toda a sua ternura com Paulo e Virgínia e esquecer-se dos escravos que os cercavam...
Em poucos dias a admiração pelo sábio era quase geral, e não o era unicamente porque havia alguém que não tinha em grande conta os méritos do novo habitante.
Capitão Pelino, mestre-escola e redator da Gazeta de Tubiacanga, órgão local e filiado ao partido situacionista, embirrava com o sábio. “Vocês hão de ver, dizia ele, quem é esse tipo... Um caloteiro, um aventureiro ou talvez um ladrão fugido do Rio.”
A sua opinião em nada se baseava, ou antes, baseava-se no seu oculto despeito vendo na terra um rival para a fama de sábio de que gozava. Não que Pelino fosse químico, longe disso; mas era sábio, era gramático. Ninguém escrevia em Tubiacanga que não levasse bordoada do capitão Pelino, e mesmo quando se falava em algum homem notável lá no Rio, ele não deixava de dizer: “Não há dúvida! O homem tem talento, mas escreve: ‘um outro’, ‘de resto’...”. E contraía os lábios como se tivesse engolido alguma coisa amarga.
Toda a vila de Tubiacanga acostumou-se a respeitar o solene Pelino, que corrigia e emendava as maiores glórias nacionais. Um sábio...
Ao entardecer, depois de ler um pouco o Sotero, o Cândido de Figueiredo ou o Castro Lopes, e de ter passado mais uma vez a tintura nos cabelos, o velho mestre-escola saía vagarosamente de casa, muito abotoado no seu paletó de brim mineiro, e encaminhava-se para a botica do Bastos a dar dois dedos de prosa. Conversar é um modo de dizer, porque era Pelino avaro de palavras, limitando-se tão somente a ouvir. Quando, porém, dos lábios de alguém escapava a menor incorreção de linguagem, intervinha e emendava. “Eu asseguro, dizia o agente do Correio, que...” Por aí, o mestre-escola intervinha com mansuetude evangélica: “Não diga ‘asseguro’, senhor Bernardes; em português é garanto”.
E a conversa continuava depois da emenda, para ser de novo interrompida por uma outra. Por essas e outras, houve muitos palestradores que se afastaram, mas Pelino, indiferente, seguro dos seus deveres, continuava o seu apostolado de vernaculismo. A chegada do sábio veio distraí-lo um pouco da sua missão. Todo o seu esforço voltava-se agora para combater aquele rival, que surgia tão inopinadamente.
Foram vãs as suas palavras e a sua eloquência: não só Raimundo Flamel pagava em dia as suas contas, como era generoso — pai da pobreza — e o farmacêutico vira numa revista de específicos seu nome citado como químico de valor.

II

Havia já anos que o químico vivia em Tubiacanga, quando, uma bela manhã, Bastos o viu entrar pela botica adentro. O prazer do farmacêutico foi imenso. O sábio não se dignara até aí visitar fosse quem fosse e, certo dia, quando o sacristão Orestes ousou penetrar em sua casa, pedindo-lhe uma esmola para a futura festa de Nossa Senhora da Conceição, foi com visível enfado que ele o recebeu e atendeu.
Vendo-o, Bastos saiu de detrás do balcão, correu a recebê-lo com a mais perfeita demonstração de quem sabia com quem tratava e foi quase em uma exclamação que disse:
Doutor, seja bem-vindo.
O sábio pareceu não se surpreender nem com a demonstração de respeito do farmacêutico, nem com o tratamento universitário. Docemente, olhou um instante a armação cheia de medicamentos e respondeu:
Desejava falar-lhe em particular, senhor Bastos.
O espanto do farmacêutico foi grande. Em que poderia ele ser útil ao homem, cujo nome corria mundo e de quem os jornais falavam com tão acendrado respeito? Seria dinheiro? Talvez... Um atraso no pagamento das rendas, quem sabe? E foi conduzindo o químico para o interior da casa, sob o olhar espantado do aprendiz que, por um momento, deixou a “mão” descansar no gral, onde macerava uma tisana qualquer.
Por fim, achou ao fundo, bem no fundo, o quartinho que lhe servia para exames médicos mais detidos ou para as pequenas operações, porque Bastos também operava. Sentaram-se e Flamel não tardou a expor:
Como o senhor deve saber, dedico-me à química, tenho mesmo um nome respeitado no mundo sábio…
Sei perfeitamente, doutor, mesmo tenho disso informado, aqui, aos meus amigos.
Obrigado. Pois bem: fiz uma grande descoberta, extraordinária...
Envergonhado com o seu entusiasmo, o sábio fez uma pausa e depois continuou:
Uma descoberta... Mas não me convém, por ora, comunicar ao mundo sábio, compreende?
Perfeitamente.
Por isso precisava de três pessoas conceituadas que fossem testemunhas de uma experiência dela e me dessem um atestado em forma, para resguardar a prioridade da minha invenção... O senhor sabe: há acontecimentos imprevistos e...
Certamente! Não há dúvida!
Imagine o senhor que se trata de fazer ouro...
Como? O quê? fez Bastos, arregalando os olhos.
Sim! Ouro! disse, com firmeza, Flamel.
Como?
O senhor saberá — disse o químico secamente. A questão do momento são as pessoas que devem assistir à experiência, não acha?
Com certeza, é preciso que os seus direitos fiquem resguardados, porquanto...
Uma delas, interrompeu o sábio, é o senhor; as outras duas, o senhor Bastos fará o favor de indicar-me.
O boticário esteve um instante a pensar, passando em revista os seus conhecimentos e, ao fim de uns três minutos, perguntou:
O coronel Bentes lhe serve? Conhece?
Não. O senhor sabe que não me dou com ninguém aqui.
Posso garantir-lhe que é homem sério, rico e muito discreto.
É religioso? Faço-lhe esta pergunta, acrescentou Flamel logo, porque temos que lidar com ossos de defunto e só estes servem...
Qual! É quase ateu...
Bem! Aceito. E o outro?
Bastos voltou a pensar e dessa vez demorou-se um pouco mais consultando a sua memória... Por fim, falou:
Será o tenente Carvalhais, o coletor, conhece?
Como já lhe disse...
É verdade. É homem de confiança, sério, mas...
Que é que tem?
É maçom.
Melhor.
E quando é?
Domingo. Domingo, os três irão lá em casa assistir à experiência e espero que não me recusarão as suas firmas para autenticar a minha descoberta.
Está tratado.
Domingo, conforme prometeram, as três pessoas respeitáveis de Tubiacanga foram à casa de Flamel, e, dias depois, misteriosamente, ele desaparecia sem deixar vestígios ou explicação para o seu desaparecimento.

III

Tubiacanga era uma pequena cidade de três ou quatro mil habitantes, muito pacífica, em cuja estação, de onde em onde, os expressos davam a honra de parar. Há cinco anos não se registrava nela um furto ou roubo. As portas e janelas só eram usadas... porque o Rio as usava.
O único crime notado em seu pobre cadastro fora um assassinato por ocasião das eleições municipais; mas, atendendo que o assassino era do partido do governo, e a vítima da oposição, o acontecimento em nada alterou os hábitos da cidade, continuando ela a exportar o seu café e a mirar as suas casas baixas e acanhadas nas escassas águas do pequeno rio que a batizara.
Mas, qual não foi a surpresa dos seus habitantes quando se veio a verificar nela um dos mais repugnantes crimes de que se tem memória! Não se tratava de um esquartejamento ou parricídio; não era o assassinato de uma família inteira ou um assalto à coletoria; era coisa pior, sacrílega aos olhos de todas as religiões e consciências: violavam-se as sepulturas do “Sossego”, do seu cemitério, do seu campo-santo.
Em começo, o coveiro julgou que fossem cães, mas, revistando bem o muro, não encontrou senão pequenos buracos. Fechou-os; foi inútil. No dia seguinte, um jazigo perpétuo arrombado e os ossos saqueados; no outro, um carneiro e uma sepultura rasa. Era gente ou demônio. O coveiro não quis mais continuar as pesquisas por sua conta, foi ao subdelegado e a notícia espalhou-se pela cidade.
A indignação na cidade tomou todas as feições e todas as vontades. A religião da morte precede todas e certamente será a última a morrer nas consciências. Contra a profanação, clamaram os seis presbiterianos do lugar — os bíblias, como lhes chama o povo; clamava o agrimensor Nicolau, antigo cadete, e positivista do rito Teixeira Mendes; clamava o major Camanho, presidente da loja Nova Esperança; clamavam o turco Miguel Abudala, negociante de armarinho, e o cético Belmiro, antigo estudante, que vivia ao deus-dará, bebericando parati nas tavernas. A própria filha do engenheiro residente da estrada de ferro, que vivia desdenhando aquele lugarejo, sem notar sequer os suspiros dos apaixonados locais, sempre esperando que o expresso trouxesse um príncipe a desposá-la —, a linda e desdenhosa Cora não pôde deixar de compartilhar da indignação e do horror que tal ato provocara em todos do lugarejo. Que tinha ela com o túmulo de antigos escravos e humildes roceiros? Em que podia interessar aos seus lindos olhos pardos o destino de tão humildes ossos? Porventura o furto deles perturbaria o seu sonho de fazer radiar a beleza de sua boca, dos seus olhos e do seu busto nas calçadas do Rio?
Decerto, não; mas era a Morte, a Morte implacável e onipotente, de que ela também se sentia escrava, e que não deixaria um dia de levar a sua linda caveirinha para a paz eterna do cemitério. Aí Cora queria os seus ossos sossegados, quietos e comodamente descansando num caixão bem feito e num túmulo seguro, depois de ter sido a sua carne encanto e prazer dos vermes...
O mais indignado, porém, era Pelino. O professor deitara artigo de fundo, imprecando, bramindo, gritando: “Na história do crime, dizia ele, já bastante rica de fatos repugnantes, como sejam: o esquartejamento de Maria de Macedo, o estrangulamento dos irmãos Fuoco, não se registra um que o seja tanto como o saque às sepulturas do ‘Sossego’”.
E a vila vivia em sobressalto. Nas faces não se lia mais paz; os negócios estavam paralisados; os namoros suspensos. Dias e dias por sobre as casas pairavam nuvens negras e, à noite, todos ouviam ruídos, gemidos, barulhos sobrenaturais... Parecia que os mortos pediam vingança...
O saque, porém, continuava. Toda noite eram duas, três sepulturas abertas e esvaziadas de seu fúnebre conteúdo. Toda a população resolveu ir em massa guardar os ossos dos seus maiores. Foram cedo, mas, em breve, cedendo à fadiga e ao sono, retirou-se um, depois outro e, pela madrugada, já não havia nenhum vigilante. Ainda nesse dia o coveiro verificou que duas sepulturas tinham sido abertas e os ossos levados para destino misterioso.
Organizaram então uma guarda. Dez homens decididos juraram perante o subdelegado vigiar durante a noite a mansão dos mortos.
Nada houve de anormal na primeira noite, na segunda e na terceira; mas, na quarta, quando os vigias já se dispunham a cochilar, um deles julgou lobrigar um vulto esgueirando-se por entre a quadra dos carneiros. Correram e conseguiram apanhar dois dos vampiros. A raiva e a indignação, até aí sopitadas no ânimo deles, não se contiveram mais e deram tanta bordoada nos macabros ladrões, que os deixaram estendidos como mortos.
A notícia correu logo de casa em casa e, quando, de manhã, se tratou de estabelecer a identidade dos dois malfeitores, foi diante da população inteira que foram neles reconhecidos o coletor Carvalhais e o coronel Bentes, rico fazendeiro e presidente da Câmara. Este último ainda vivia e, a perguntas repetidas que lhe fizeram, pôde dizer que juntava os ossos para fazer ouro e o companheiro que fugira era o farmacêutico.
Houve espanto e houve esperanças. Como fazer ouro com ossos? Seria possível? Mas aquele homem rico, respeitado, como desceria ao papel de ladrão de mortos se a coisa não fosse verdade!
Se fosse possível fazer, se daqueles míseros despojos fúnebres se pudesse fazer alguns contos de réis, como não seria bom para todos eles!
O carteiro, cujo velho sonho era a formatura do filho, viu logo ali meios de consegui-la. Castrioto, o escrivão do juiz de paz, que no ano passado conseguiu comprar uma casa, mas ainda não a pudera cercar, pensou no muro, que lhe devia proteger a horta e a criação. Pelos olhos do sitiante Marques, que andava desde anos atrapalhado para arranjar um pasto, pensou logo no prado verde do Costa, onde os seus bois engordariam e ganhariam forças...
Às necessidades de cada um, aqueles ossos que eram ouro viriam atender, satisfazer e felicitá-los; e aqueles dois ou três milhares de pessoas, homens, crianças, mulheres, moços e velhos, como se fossem uma só pessoa, correram à casa do farmacêutico.
A desinteligência não tardou a surgir; os mortos eram poucos e não bastavam para satisfazer a fome dos vivos. Houve facadas, tiros, cachações. Pelino esfaqueou o turco por causa de um fêmur e mesmo entre as famílias questões surgiram. Unicamente, o carteiro e o filho não brigaram. Andaram juntos e de acordo e houve uma vez que o pequeno, uma esperta criança de onze anos, até aconselhou ao pai: “Papai vamos aonde está mamãe; ela era tão gorda...”.
De manhã, o cemitério tinha mais mortos do que aqueles que recebera em trinta anos de existência. Uma única pessoa lá não estivera, não matara nem profanara sepulturas: fora o bêbedo Belmiro.
Entrando numa venda, meio aberta, e nela não encontrando ninguém, enchera uma garrafa de parati e se deixara ficar a beber sentado à margem do Tubiacanga, vendo escorrer mansamente as suas águas sobre o áspero leito de granito — ambos, ele e o rio, indiferentes ao que já viram, mesmo à fuga do farmacêutico, com o seu Potosi e o seu segredo, sob o dossel eterno das estrelas.

Lima Barreto, in Contos completos