sexta-feira, 29 de abril de 2022

Caçada noturna

Night has a thousand eyes...

Toda a gente sabe que a plumagem das corujas é macia e mole e por isso o seu voo é silencioso. Inexplicavelmente, as penas reais de Sofia são rijas e o seu voo perfeitamente audível, percebendo-se o rangido, o atrito das asas fortes, denunciando aproximação da caçadora.
Sofia é uma coruja no esplendor da força, quatro anos de experiência de golpes e recursos individuais. Sabe calcular os terrenos onde a caça passará porque sendo de boa raça preadora não come carne morta. Precisa de bicho vivo, palpitante de sangue, estrebuchante sob suas garras que o imobilizam para fácil alvo às bicadas, golpeantes e certeiras.
Sobrevoou o quintal vizinho, reconhecido pelo perfil do moinho de vento quebrado. Depois há o pomar que o esquadrão de Quirá elegeu para o assalto. Voou manso até o último cajueiro e pousou, leve, no galho sombrio. Abriu a frincha das pupilas telescópicas, absorvendo a luz difusa, identificando o local em todas as minudências.
Da terra úmida pelo orvalho evaporado subia o murmúrio confuso de todas as vozes surdas dos animais em batalha pela vida, rastejando, escorregando, pateando no nível do solo. Das árvores derramava-se o rumor vivo de asas, pios, bufidos, estalidos, apelos, réplicas, guinchos de aviso, de informação, pedidos de auxílio e de socorro. Nos ares, as sombras rápidas perpassavam, continuando a mútua perseguição, lutando pela sobrevivência – o amor e o alimento –, vitais ambos.
Os morcegos foram descobertos pelo ruído de guizo ao longe. E também pela virada curva para descer, pertinho dos frutos escuros, e ali ficar, parados, sugando a polpa depois de abrir, com impecável roedura, o sulco reçumador do sumo adocicado.
Somente nos momentos da chegada, quando Quiró fletisse a asa, quase dobrando-a para baixar, é que seria possível um golpe fulminante.
O segundo esquadrão apareceu em seguida e durante um minuto as curvas ganharam maior amplitude. Evitavam possivelmente as urtigas trepadeiras que cobriam alguns arbustos vizinhos ao sapotizal. A urtiga é para as asas membranosas dos morcegos uma bateria de fogo antiaéreo de eficiência mortal.
Quiró roçou o galho onde Sofia o espreitava, imóvel. Rápida, a coruja lançou-se no voo de caça, cortando o círculo descrito pelo morcego. Contava encontrá-lo no ar num esbarro funesto.
Quiró empregou a velha técnica escapatória. Semifechando as asas caiu na vertical, em curva descendente que mais seria espiral. A prontidão da manobra não permitiu a Sofia acompanhá-lo naquela solução imprevista. Estendeu ainda mais as asas, pairando, em escuta, perscrutando o paradeiro de Quiró. O morcego subia em zigue-zagues, curvas fechadas, rumo ao sapotizal próximo. Sofia arremessou-se como uma pedrada, batendo forte as asas três e quatro vezes, paralela a Quiró. Calculando que este passaria justamente na linha inferior à sua trajetória, fechou-as e deixou-se cair, numa vertical atrevida. Quiró, não podendo repetir a descida, mergulhou num parafuso, uma das asas quase cerrada e assim, num voo e queda, furou a sombra dos sapotizeiros onde Sofia não podia fixá-lo nem persegui-lo. Restou à coruja sacudir as asas moles e reganhar o cajueiro, resignada e faminta.
Só então enxergou, arrastando uma sapota marrom, o velho Gô, guabiru de um palmo avantajado, lerdo, cínico, ladrão de todas as coisas comíveis. A luz esmaecida das estrelas projetava na pista de areia a sombra robusta e negra do grande rato feroz, aferrado ao jantar que disputara a Quiró, insaciável e chiante, autoconvencido de ser proprietário do sapotizal. A rixa entre ratos e corujas vem de longe e as duas partes mantêm a animosidade em estado latente e mesmo funcional. La Fontaine contou o caso dos souris e do chat-huant. A luta prossegue com os morcegos porque são chauve-souris e a coruja continua, mesmo em português, um chat-huant. Assim, ratos e gatos, morcegos e corujas representam intrigas implacáveis mesmo quando as asas intervêm para torná-las supremas e cruéis.
Sofia precipitou-se sem perder a majestade da compostura clássica. Desceu quase em cima de Gô que apenas lançou um guincho agudo e breve ao sentir as patas aduncas fincarem-se-lhe no dorso peludo, arrancando-o do solo e erguendo-o, balançado na rapidez do regresso. Tentou voltar o focinho longo e usar os dentes de serra, mordendo as unhas de Sofia. Mas esta bicou-o forte no pescoço e Gô percebeu ter chegado ao fim das aventuras terrenas. Não desanimou porque sabia que a coruja não dilacera a presa no ar e precisa pousar para saciar-se, sabiamente. Gô recorreu ao remédio velho de fazer-se mais pesado e sacudir-se violentamente, agitando as patas e guinchando alto. A sombra do cajueiro avançava e Sofia não bicorou o guabiru como devia, adormecendo-lhe a resistência mas sem matá-lo, porque notou Suinara, a coruja de igreja, rangindo as clavículas em sua direção. O brilho verde dos olhos fosforescentes pregoava sua fome e ânsia da batalha pela posse de Gô. Ia bater-se e depois reapanhar o guabiru ferido que deixaria cair no capinzal. Preferiu descer e o fez logo. Suinara, arrastada pelo ímpeto, passou adiante, com um pio de decepção. Mas descreveu uma curva fechada e voltou procurando Sofia, tentando feri-la no encontro da asa direita. Sofia então largou Gô e reagiu abrindo o bico e soltando o piado rouco, anúncio de ódio total. Acertou Suinara no peito acolchoado e duas penas voaram, além da terceira que ficou na curva do bico de Sofia. Suinara, perdido o botim, desinteressou-se pelo duelo sem prêmio. Largou um bufo estertórico e baixou para caçar a ratazana cobiçada. Sofia chegou primeiro ao chão e andou, com seu passo oscilante e pendular de marinheiro, preferindo os arredores, abrindo os grandes olhos luminosos. Suinara não mais disputou a presa mas partiu perseguindo Quiró retardatário.
Gô desaparecera definitivamente e Sofia retomou o voo para a caçada noturna. Não passou fome porque um Quiró caiu-lhe nas garras e bico antes que atingisse o cajueiro. Pôde então cear, desfazendo o morcego das asas tépidas, arrancando-lhe a carne vermelha do tórax e da barriga, triturando os ossos delicados com vagar e sabor. Apanhou o segundo quase em seguida porque este aventurou-se, tentando encurtar caminho para o sapotizal, a atravessar a copa do cajueiro onde a coruja iniciava a digestão tranquila. Pode juntar à lista um rato-do-campo, um hesperórnis de rabo comprido e fuça curtinha, enfeitada de espalhada bigodeira. Respeitou-lhe a cabeça naturalmente para não prejudicar a identificação ulterior. Do cajueiro acolhedor voou, pesada e serena, para a parede da casa-grande arruinada. Perseguiu inutilmente outro rato-do-campo, que fugiu, dando guinchos como ensinando a pista ao adversário desnorteado.
Mas estas coisas levam tempo para realizar-se. O vento manso da noite esfriara e as estrelas luziam palpitantes, ouvindo os galos que despediam as almas do outro mundo com a clarinada irresistível. Precisou limpar-se devagar no peito e nas ombreiras, passando o cuidadoso bico para expulsar os fragmentos da refeição.
Gô estava justamente dentro duma moita de capim barba-de-bode, junto ao muro da casa-grande. Viu perfeitamente o voo de Sofia e a manobra frustrada para conquistar o rato-do-campo, fujão e feliz. Só o pescoço o incomodaria porque Gô não faz confidência sobre a extensão do seu amor-próprio ferido. Certo é que não mais sangrava o vestígio das garras de Sofia e apenas o pelo mostrava, arrepiado, falho, com sangue seco, a força da coruja e a ventura do guabiru alforriado da morte.
Andou lento-lento, de touça em touça, farejando inquieto, arrastando a cauda com precaução e temor. Veio vindo, teimoso, escondendo-se, demorando-se nas sombras mais espessas, achatando-se quando ouvia o ranger dos remígios das grandes aves de presa; ficando imóvel como se posasse para um friso, esperando, paciente, que o silêncio voltasse; inflexível no rumo embora com duzentas voltas, reviravoltas, rodeios, atalhos, corridinhas nervosas, passos retardados de acompanhar andor, marchas retas, oblíquas, em diagonal ou perpendicular ao eixo da estrada, em labirinto, indo como se deliberasse chegar em primeiro lugar numa disputa olímpica, desinteressado e lerdo mas sem deixar de mover-se no mesmo quadrante sul, com uma obstinação heroica de persistir ao encontro dos possíveis inimigos, incapaz de renunciar o destino da missão misteriosa e terrível que o impelia para os lugares cruéis do seu principiado suplício. Vencedor do medo e a defesa pessoal, Gô andou perto do cajueiro, noite adentro, até encontrar a sapota bem grande e sumarenta que arrastava quando Sofia o atacou. Segurou-a nos dentes e foi embora, feliz.
Licosa é que estava de mau humor por causa do grilo tenor. Aquele canto persistente fornecia à caranguejeira a coordenada geográfica do ortóptero saltador. Lançou as oito pernas peludas e macias guiadas pelos palpos adejantes no rumo do grilo cantador. Era apenas subir para o estrado dos últimos tijolos, quase na telha final. Licosa ascendeu, silenciosa, menos guiada pelo som que tão pouco entende do que pela visão confusa do animal, destacado no topo do castelo tijoleiro. Mas precisou fazer uma volta prudente, evitando Titius que andava caçando também e aceitaria uma batalha rápida entre tenazes e quelíceras inexoráveis, para pôr-se em forma combativa. O pior é que o grilo pressentiu-a e continuou no desafio como se Licosa não existisse. Emitiu algumas notas altas e de efeito e depois dobrou as patas dianteiras, curvando as traseiras no dobro do tamanho e, bruscamente, atirou-se para cima como se o projetasse uma catapulta. Foi cair dez metros adiante, no chão, depois do tanque, de onde repetiu a façanha atlética até a calçada da cozinha abandonada. Aí sacudiu o canto, acordando quem dormia e exasperando Licosa que encontrara apenas o canto limpo onde o grilo estivera. Virou-se, quadrada e mecânica como um carro de guerra, e reiniciou a descida pelo outro lado. Só então deparou com uma barata grossa, abaulada e vagarosa, de asas duras que lhe forneceu a contragosto o primeiro alimento da noite. A filha de Blata sumiu envolvida nas suas patas felpudas e cruéis. Um gafanhoto verde-lodo, fino mas gostoso, serviu-lhe de sobremesa. Ergueu, rápida, as patas dianteiras, agitando as antenas como antecipando o embate. Recuou, dando caminho e pista à Raca que passou, ondulante, sinistra, para cumprir missão que só ela sabia onde se encontrava.
Titius tivera a ventura inesperada de deparar com uma coluna de baratas que sugavam um resto de mamão podre. Segurou duas com as pinças e pode repetir o prato porque as baratas, fujonas do primeiro medo, voltaram, tranquilas, à degustação da fruta tão cara para elas.
O sapo ouro e negro jantara uma colônia de mosquitos que festejavam o descobrimento do tanque, novidade para eles. Não apreciou totalmente o repasto porque deglutiu um besouro escuro e esse ferrou-o na língua grossa, obrigando-o a restituí-lo, úmido e pegajento, à vida terrena. O besouro enxugava-se quando Titius apareceu e incluiu-o no seu cardápio.
O grilo silenciava, roendo madeira velha, molhada de orvalho e oferecendo-se à sobremesa das sementes verdes e talos tenros. Não conseguiu avistar-se com a namorada nem havia tempo útil para procurá-la além do canto de muro. Com dois saltos magistrais voltou para perto de casa mas entreteve-se saboreando uma vergôntea de melão-bravo.
Bidu, o galo vizinho, anunciava a madrugada pela segunda vez. Titius voltou para seu apartamento, encolhendo as patas, dobrando as pinças, tranquilo para o resto das horas lentas.
Cumprindo instruções milenárias, as servas de Ata carregavam as sobras dos banquetes, os talos verdes, os brotos úmidos, seguindo em fila a um de fundo, disciplinadas, mergulhando na bocarra do formigueiro materno, levando os despojos que haviam custado os combates alheios e os riscos dos outros animais. Era como uma porcentagem devida ao trabalho eterno daquelas obreiras inúteis no egoísmo de um esforço votado ao próprio e único benefício. Nem qualquer outro animal aproveitaria o resto que as saúvas transportavam para o seu mundo escuro e sedutor. Durante toda a noite, a tarefa continuou sem pausa como um abastecimento indispensável de navio para viagem sem fim.
Raca só voltou mais tarde, saciada de ratos novos. Acabara com um ninho inteiro, enrodilhado e confuso dentro dum agasalho de jornais rasgados, junto à parede da cozinha. Devia ser ninhada de parentes de Musi, hóspedes confiados nos gabos da tranquilidade do refúgio. Os moradores sabiam da presença de Raca naquele verão e nenhum tentaria dormir ao alcance de sua fome. Inexperiência da mocidade ratoína.
O sapo negro e ouro ficou olhando os pirilampos mas não conseguiu prestar sua homenagem imediata a nenhum deles. Passaram riscando a luz azul e breve sem deter-se. Ainda faiscaram na mangueira escura e depois seguiram, lampejantes, para o rumo longe. Dizem que Tim, o lagarto verde, calango vagabundo ora visitante, detivera um deles para sempre, incorporando-o ao seu todo. Tim estava arranchado no muro, lá em cima, justamente onde os pirilampos demoraram uns instantes antes de voltar à sua base. Mas os pirilampos souberam depois da morte de Tim nas garras de Sofia, numa noite de lua cheia, clareando esconderijos como um farol indiscreto. Nesta mesma noite Licosa perdeu uma pata e Titius bateu-se em duelo. Mas isto é outra história...
Nem todos os insetos e animais vários caçam a noite inteira. Têm sua tabela de persistência e horário profissional de rendimento. Depois de certo período, os lances perdem impetuosidade e os cálculos falham em proporção alarmante. Caem em curva de fadiga. Sofia irá até madrugada alta mas Suinara depois de tentativas perseguirá o gostoso inimigo partindo do seu pouso no alto da torre de igreja ou oco de pau mais próximo das ruas, vendo de longe as luzes porque é uma coruja social e não tanto meditativa como Sofia, saudosa da deusa dos olhos verdes.
Titius e Licosa recolhem-se quando a noite esfria. Os vaga-lumes apagam a iluminação errante nas primeiras horas do escurão.
O pessoal de Ata, Gô, o malandro, Quiró, o sutil, as aranhas andejas que vão procurando caça e não são proprietárias de teias em cantos certos, morando em gretas perto do chão, debaixo da pirâmide ou nas vizinhanças do cavalo do cão, labutam até o primeiro listrão do amanhecer. Brinco, o gato, e Raca, abandonam o terreno bem antes do crepúsculo matutino. A prole e parentesco de Musi perseveram o mais possível.
Uma outra multidão batalha até o sol empurrar as nuvens derradeiras da treva. Parece mas não é o mesmo bando predador. Besouros, centopeias, lacraus, baratas escuras e obstinadas, grilos puladores, os reprovados percevejos – o verde que tem os ombros em ponta de alfinete e o moreno de dorso abaulado – ambos de irradiante emanação repugnante, aranhiços de pernas enormes que correm silenciosos como plumas e enrolam as presas em fios, segurando a vítima com as patas dianteiras e puxando os cordéis imponderáveis e resistentes, com as traseiras; as que vêm vagarosas como horas tristes, fazendo aproximação com o cuidado de quem não pode perder o golpe e se precipitam de salto, imitando na escala liliputiana o tigre-real-de-bengala ou a pantera-negra-de-java; os que lutam lealmente opondo força à força, afrontando os riscos da furiosa defesa; os milenarmente civilizados que injetam inércia no corpo do adversário, levando-o, como quem conduz amigo para festa, ao recanto onde o devorará; as turmas de insetos miúdos que furam os caules tenros dos vegetais e mergulham a tromba sugando a seiva sem precisar respirar ou mudar de iguaria; os que saem das folhas secas, debaixo de pedras chatas da umidade do tanque, escapando à goela de Fu, o sapo negro e ouro como um mandarim, atravessando tempo, guardando a existência, defendendo-a, arrancando-a aos outros da mesma ou de alheia espécie.
Pelas árvores outras ondas viventes estão fervilhando, subindo e descendo pelos galhos, imóveis nas folhas de esmeralda, grudados aos troncos, rodeando os frutos e os brotos, roendo, chupando, triturando, lambendo, furando, bebendo alimento.
Animais maiores sabem destes hábitos e vão procurar os hóspedes mantidos pelas árvores, trepadeiras e arbustos para torná-los em refeições consumidas no sigilo, na cumplicidade da treva, vezes na simultaneidade dos ataques em que o agressor passa a agredido, preando e preado, na mesma fila da vítima que assaltou. Esta cadeia palpita, pulula, escorrega, fugindo, matando, absorvendo, parando para lutar e morrer, num ciclo de perseguição implacável, de ódio espontâneo, de intensidade dramática. Os tipos fortes digerem o quinhão conquistado até que um colega do mesmo porte apareça exigindo participação nos lucros.
No ambiente a que luzes difusas vão dando uma claridade opalescente e translúcida, perpassam os vultos das aves de combate, seguindo como relâmpagos os morcegos ágeis, os besouros gordos e as mariposas lerdas. Sofia voltando para casa jamais deixou de buscar este fim de cardápio que a regala, ortópteros e coleópteros suculentos, de polpa fina de manjar branco saboroso, defendida pela casca estalante e colorida como o chocolate recobre o creme.
No solo o mesmo combate se estende convulso e sem pausa entre espécies misteriosas e adversários clássicos. Num instante fulguram os dois olhos deslumbrantes do velho Niti, o bacurau-mede-léguas, pesquisador paciente das estradas, catando folhas e pedrinhas humildes na adivinhação dos insetos preferidos, adiantando-se a passo no andar de marujo enjoado de encontrar-se em terra firme, batendo a estrada, trilho ou vereda de areia que o mato vai orlando, quilômetros dentro da noite mansa. É preciso muita resignação na espera e muita artimanha na manobra para que Niti complete o seu lote avultado, porção indispensável de comida viva, a comida que vem pulando ao seu encontro.
Desde que a estrada fique visível, Niti sacode as asas largas no voo do regresso. Não pode desmoralizar a tradição noturna de sua família, os cuprimulgídeos do gênero Nyctibius, figurando em lendas e superstições respeitáveis e seculares.
Duas centopeias batem-se por causa de uma barata sem cabeça, permutando tesouradas, coleando os corpos de ouro-cendrado numa agitação convulsiva de patas incontáveis. A barata já morta espera na areia a vencedora que não será uma combatente, mas um lacrau adventício que a apanhou e seguiu sem pretender assistir ao final das justas.
Brilha o papo prateado de uma ave que engoliu um besouro em pleno voo. Quiró repete a façanha fazendo voos de acrobacia, parafusos de espiralado eixo que finda pela morte do perseguido.
Ouve-se o bulício nos frutos que amadurecem. Vão amanhecer com os vestígios de dentadas serrilhadas, arranhões, riscos de unhas, bicos, garras, agulhas, puas, pontadas, rasgões. Apenas a mãe-árvore permite o assédio aos frutos legalmente amadurecidos ou madurez iniciada. Os verdes estão guardados pelos sumos e leites causticantes, insuportáveis e acres. Não existisse esta barreira e a frutificação total seria impossível para o mamoeiro, sapotizeiro e goiabeira, fáceis e substanciais.
Sofia desceu na borda da residência mas voltou-se, sacudindo as asas, olhando o campo de sua batalha. Depois, grave, mergulhou na toca. Niti ganhou altura quase na vertical mas desapareceu na horizontalidade do seu impulso, rumo do lar distante. Os saltos, rumores, estalidos, guinchos, pios, notas de comunicação animal apenas perceptíveis aos próprios companheiros na infrassonoridade das vibrações baixas e teimosas, foram diminuindo, cedendo, acalmando-se, nivelando-se num silêncio que emanava da luz nascente e sensível da manhã longínqua.
Bidu cantou a última vez, amiudando a saudação à alvorada, numa aleluia estridente e jubilosa. Os outros Bidus prolongaram o canto, atirando-o para as vozes afastadas que o sacodem, longe, para os finais do campo e da cidade.
A nódoa luminosa do leste se amplia no círculo que resplandece no céu de porcelana transparente. A primeira chama rósea rasga a monocromia dos tons cinzentos e ganha os matizes lilases, derramados na curva do céu.
As cores acordaram e se fazem sensíveis. Todas as coisas desaparecidas na treva retomaram os lugares habituais. Os fantasmas dimensionais restituíram as proporções verídicas aos valores encantados na noite profunda. A fada Normalidade reequilibrou o verismo da costumeira paisagem.
Brinco passeia no fio do muro verificando se o mundo continua. Ainda não apareceu Vênia com sua tropa concordante. Os xexéus sacodem nos instrumentos metálicos a protofonia animadora. As tapiucabas, vespídeos do cortejo, zumbem recomeçando a vassalagem harmoniosa.
Os primeiros voos agitam as aragens que adormeceram nas samambaias e as folhas oscilam, saudando a luz invasora e contínua que se derrama no tronco do céu do amanhecer.
Quiró agasalhou a turma buliçosa, farta de sapotis e de besouros. Sofia deve ter adormecido. Não se fala do grilo nem dos moradores da pirâmide sossegada. Ondulam os aromas das flores melancólicas daquele jardim deserto. Não se vê Fu, o sapo do tanque, nem Dica, a aranha-d’água. Surgirá esta com o sol na inspeção matinal. Fu apresentar-se-á tarde, com a varação do crepúsculo, refeito e apto para recomeçar.
A chilreada caiu dos galhos baixando como uma vaga melodia de orquestra onde os instrumentos se afinam, mas já possuem o mesmo diapasão. O bem-te-vi gritou que bem vira alguma coisa digna de menção, voando em espiral. Seguiu-o a lavadeira. Os xexéus. Dois canários vararam o quintal como duas setas de ouro.
As aranhas sedentárias verificam a cordoalha das teias. Moscas, besouros verdes, negros, listados de rubro, varejeiras de bronze reluzente, vibram no ar. Retine, longe, ferindo a bigorna, o martelado da araponga. As paquinhas, grilos-toupeiras, abrem com as patinhas incansáveis o breve túnel. Vênia deslizou na parede, visível no lusco-fusco das trepadeiras. Cintilou numa irradiação de joalheria o primeiro beija-flor madrugueiro.
Água cantou, trêmula e fiel, na linha do tanque. Uma folha largou a margem e viaja, rodando, no impulso da corrente suave. Dica passou na lâmina rebrilhante e viva. A sombra da mangueira recortou-se em relevo no chão de areia solta e suja. Um raio de sol transfigurou o canto de muro. Bom dia!…

Luís da Câmara Cascudo, in Canto de Muro

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