domingo, 22 de junho de 2025

1568 – Cidade do México

Os filhos de Cortez

Martín se chama o filho mais velho de Hernán Cortez, filho natural nascido da índia Malinche. Seu pai deixou-lhe, ao morrer, uma pensão anual magra.
Martín se chama, também, o filho legal de Hernán Cortez, nascido de uma espanhola filha de conde e sobrinha de duque. Este Martín herdou o brasão e a fortuna: é o marquês do vale de Oaxaca, dono de milhares de índios e léguas nesta terra que seu pai tinha humilhado e amado e escolhido para dormir para sempre.
Em poltrona de veludo carmesim e beiradas de ouro, costumava passear Martín, o marquês, pelas ruas do México. Atrás dele marchavam seus guardas de libré vermelha, armados de espadas. Quem se cruzava com ele se descobria, lhe rendia homenagem e se somava ao séquito. O outro Martín, o bastardo, fazia parte da comitiva.
Martín, o marquês, quis romper com a Espanha, e proclamar-se rei do México. Quando a conjura fracassou, balbuciou arrependimentos e delatou nomes. Perdoaram-lhe a vida.
Martín, o bastardo, que serviu a seu irmão na conspiração e em todo o resto, se contorce agora na tortura. Ao seu lado, o escrivão anota: Foi despido e posto na cilha. Admoestado, disse que não devia nada.
O verdugo dá uma volta na roda. As cordas arrebentam carne e esticam os ossos.
O escrivão anota: Admoestam-lhe de novo. Diz que não tem mais a dizer do que já disse.
Segunda volta de corda. Terceira, quarta, quinta.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Súplica Cearense | Hamilton de Holanda & Mestrinho

Uma lição de James Wright

Se James Wright
pôde colocar no seu livro de poemas
uma página em branco

dedicada “Ao cavalo David
Que Comeu Um Dos Meus Poemas”, estou pronta
a segui-lo ao longo

do doce caminho que abriu
através da aridez
e sugerir que agora te sentes

sossegadamente
em algum maravilhoso lugar selvagem, e escutes
o silêncio.

Digo eu ser isto, também,
um poema.

Mary Oliver, em Devotions – The Selected Poems of Mary Oliver (versão de Pedro Belo Clara)

Só para si

Dona Cômoda tem três gavetas. E um ar confortável de senhora rica. Nas gavetas guarda coisas de outros tempos, só para si. Foi sempre assim, dona Cômoda: gorda, fechada, egoísta.

Mário Quintana, em Sapato Florido

O impagável Laerte

Mas não no Sul

Uma das coisas mais desagradáveis é a evidência de nossa própria ignorância, o que para mim se manifesta a maior parte do tempo, mas principalmente em festinhas e reuniões. Em festinhas e reuniões eu posso sempre ser reconhecido, mesmo por aqueles que nunca viram a minha cara. Eu sou o de vestes frouxas, camisa para fora das calças, copo de uísque agarrado quase convulsivamente e a aparência de estar sofrendo uma ligeira dispnéia, que no momento presta esforçada atenção a um senhor que explica em pormenores o mercado imobiliário do Rio de Janeiro. Sinto a necessidade premente de intercalar um comentário, mas só me vem à cabeça “comprar apartamento é uma boa coisa”. É evidente que preciso de algo melhor, a fim de que meu interlocutor não descubra que está falando com um débil mental.
Comprar apartamento é uma boa coisa — digo finalmente, sem ter certeza de que cara se faz quando se diz isso.
Você comprou o seu quando? — pergunta ele.
Nunca, nunca — respondo vagamente, esperando que ele infira que com isso quero dizer que tenho preferência por investir na Bolsa de Nova Iorque ou qualquer coisa assim.
Ah — diz ele, e eu me sinto um pouco desconfortável.
Por essa razão também sou aquele, na festinha ou na reunião, que é visto fingindo vasta admiração por um quadro pendurado na parede, junto da gaiola dos passarinhos ou do aquário, ou então afetando vivo interesse por peixes e passarinhos. Adianta pouco, porque sempre aparece alguém para mexer na ferida.
Ah, gosta do Scliar, hein? — diz o alguém que, nestes casos, costuma ser um senhor gordo, alto e de voz tonitruante.
Sim, sim — digo eu. — O Scliar...
Ah, eu também gosto muito — fala o senhor gordo, aproximando-se do quadro com ar apreciador. — Ele tem uma sutileza estranha, eu diria uma sutileza agressiva, você não acha?
Acho sim, acho. Aliás, sinceramente, eu só sabia da atividade dele como escritor, ele é meu amigo, gosto muito, gosto muito.
O senhor gordo me olha fulminantemente. Noto que disse alguma coisa errada. Tomo um gole de uísque, desvio a vista para o outro lado e passo o dedo na moldura do quadro.
O senhor está falando do Moacyr. Eu estou falando do Carlos. O pintor!
Metralha o indicador em direção ao quadro, com indignação.
Ah, sim, claro — digo eu. — O Moacyr é gaúcho, não é? O senhor sabe que até hoje eu não conheço Porto Alegre, mas tenho muito amigos lá? O Moacyr...
O senhor me desculpe, estão me chamando ali.
O Moacyr é médico! — tento eu ainda, mas ele não me ouve e desaparece pelo corredor adentro.
Restam os passarinhos e os peixes. Como pode sempre haver um passarinho que fale, dou preferência aos peixes e dedico algum tempo a me recuperar do incidente scliariano fitando o aquário e agitando os pedacinhos de gelo dentro do copo. Quem sabe posso juntar-me àquela rodinha onde estavam discutindo futebol? Literatura nem pensar. Na outra o papo é música popular, barra muito pesada. Com o pessoal que compra terreninhos não posso esperar diálogo, sou de outra classe. A turma da política não pode ser, inclusive sou o único aqui que não chama ninguém em Brasília pelo primeiro nome. Fico assim, ponderando essas angustiosas decisões, quando uma senhora, talvez a dona da casa, pergunta se não quero outro uísque e aí me vê olhando os peixes.
Ah! — exclama ela, encantada. — O senhor sabe que peixe é esse?
Como se responde a uma pergunta dessas? Por que ela tem de perguntar, ainda mais com essa cara de expectativa, essa aparência de quem vai ficar decepcionada se eu não souber? Resolvo, finalmente, optar pelo caminho digno. Responderei que não sei. Há um intervalo, a senhora me espera com o pescoço espichado e aqueles olhinhos arregalados de quem só está aguardando ouvir o que já sabe que vai ouvir.
Tu... tucunaré? — indago afinal, com os olhos piscando mais do que deviam.
A senhora fica pasma. Tucunaré? Mas se todo mundo sabe que é um acará-bandeira! O acará-bandeira, um peixe brasileiro tão conhecido! Como, aliás, o tucunaré! Mas o tucunaré... — ha-ha — o tucunaré... não, meu senhor, isto não é um tucunaré, ha-ha.
Claro, um acará. Eu sempre confundo. Tucunaré, acará...
E prossegue a noite, numa sucessão lamentável. Até mesmo na rodinha do futebol não me dei muito bem. Antes, temerariamente, ingressei na de literatura, por culpa de uma sobrinha minha que me puxou pela mão e me apresentou como “um grande escritor”. O rapaz que detinha a palavra no momento perguntou o meu nome, eu disse e ele fez “oh”. Perguntei a ele em que trabalhava, e ele disse que era professor de literatura brasileira. “Oh”, fiz eu. Aí ele ficou um pouco embaraçado porque achou que eu fiquei embaraçado porque ele nunca tinha ouvido falar em mim e então, de vez em quando, interrompia a palestra, sorria para o meu lado e me chamava de “o nosso João Osvaldo Vieira”. Houve até uma vez em que, generosamente, disse que “o nosso João Osvaldo sabe isso melhor do que eu”. Fiquei grato, mas não tive condições de permanecer, inclusive porque o papo estava descambando para o processo criativo e não entendo nada de processo criativo, só escrevo.
Hoje, contudo, sou um homem novo. Li num livro americano, escrito por uma vítima de aflição equivalente à minha, que aconselha um remédio simples para essas situações. Deve-se sorrir com grande confiança e, quando a coisa aperta, dizer “mas não no sul”, ou qualquer variante bem escolhida (na verdade, basta que se variem os pontos cardeais). Funciona. Já testei aqui mesmo em Portugal, estou pronto para o que der e vier. Ontem assisti a toda uma discussão sobre a situação do Timor com um sorriso superior nos lábios que, dentro de pouco tempo, fez com que todos se dirigissem a mim com grande respeito. Há de haver alguns, inclusive, que a esta altura me consideram uma grande autoridade em assuntos timorianos. Notadamente porque um deles, no auge da discussão, exigiu que eu me manifestasse quanto à sua afirmação, segundo a qual a situação do Timor estava sob o perfeito controle da Indonésia. Fez-se uma pausa, todos me olharam. Não me apressei, não apaguei de todo o sorriso. Mirando diretamente o meu interlocutor, balancei um pouco a cabeça e me pronunciei com a gravidade apropriada:
Sim, mas no sul não.
Ele recebeu uma pancada diante da súbita revelação de meu conhecimento íntimo do problema. Hesitou um pouco, mas continuou.
Sim, claro — falou. — No sul, nem tanto, porque, efetivamente...
Fiz muito sucesso, continuei sorrindo. Como vocês sabem, sou muito famoso por essas artes. Não no sul, é claro.

João Ubaldo Ribeiro, em O rei da noite

Enquanto Agonizo


Tull

Eram 10 horas quando regressei, com a parelha de Peabody atada atrás da carroça. Já tinham trazido o carro de onde Quick o encontrou, de rodas para o ar, na valeta, a um quilômetro e meio da nascente. Já o tinham puxado para a beira da estrada, junto i nascente, e uma dúzia de carroças encontrava-se no lugar. Foi Quick que o encontrou. Ele disse que o rio está enchendo e continuará a subir. Disse que as águas já tinham quase atingido a marca mais alta do pilar da ponte; uma coisa nunca vista.
Essa ponte não resistirá à força de tanta água”, eu disse.
Alguém já foi avisar Anse?”
Eu avisei”, disse Quick. “Ele respondeu que espera que os rapazes tenham sabido, feito a descarga e estejam agora de volta. Acha que podem carregar e fazer a travessia.”
Ele faria melhor enterrando-a em New Hope”, disse Armstid. “A ponte é velha. Eu não confiaria nela.”
Ele é teimoso: meteu na cabeça que tem de levá-la a Jefferson”, disse Quick.
Então, é melhor sair o mais cedo possível”, disse Armstid.
Anse nos recebe à porta. Barbeou-se mas não muito bem. Tem um corte longo no queixo e está vestindo as calças domingueiras e uma camisa branca de colarinho abotoado. Está bem esticada sobre as costas curvas, o que o faz parecer mais curvo ainda, por causa do branco da camisa, e seu rosto também está diferente. Encara, agora, as pessoas nos olhos, digno, o rosto trágico e compenetrado, apertando nossas mãos quando subimos ao alpendre e esfregamos os sapatos, um tanto rígidos em nossas roupas domingueiras, nossas roupas domingueiras estalando, sem olhar diretamente para ele, enquanto nos cumprimenta.
É a vontade de Deus”, dizemos.
É a vontade de Deus.”
O menino não está à vista. Peabody contou como ele entrou na cozinha, aos berros, aos tropeções e arranhando Cora, quando a encontrou cozinhando aquele peixe, e como Dewey Dell levou-o ao celeiro.
Minha parelha está em ordem?”, pergunta Peabody.
Tudo bem”, digo. “Dei-lhes ração esta manhã. E o carro também está perfeito. Sem um arranhão.”
Alguém tem de ser culpado”, ele diz. “Eu daria um níquel para saber onde aquele menino estava quando a parelha disparou.”
Se tiver alguma peça quebrada, eu conserto”, digo.
As mulheres entram em casa. Podemos ouvi-las falar e abanarem-se. Os leques fazem zis, zis, zis, e elas falando, as conversas parecendo zumbido de abelhas dentro de uma tina de água. Os homens, parados no alpendre, falam pouco, sem se olharem.
Olá, Vernon”, eles dizem. “Olá, Tull.” “Parece que a chuva não para. “Sem dúvida alguma.” “Sim, senhor. Vai chover mais ainda.” “E não demora muito.” “E não para tão cedo. É sempre assim.” Vou aos fundos da casa. Cash está tapando os buracos abertos na tampa. Prepara pregos de madeira para encaixá-los, um a um; a madeira está úmida e difícil de trabalhar.
Podia cortar uma folha de lata para tapar os buracos e ninguém notaria a diferença. Mas não importa. Já o vi perder uma hora, aparando um tarugo, como se fosse de vidro, quando poderia abaixar-se, apanhar uma dúzia de gravetos e introduzi-los nos buracos, dando o trabalho por terminado.
Quando acabamos, volto para a frente da casa. Os homens tinham-se afastado um pouco da casa e estavam sentados em tábuas e nos cavaletes onde nós o fizemos a noite passada; uns, sentados, e outros de cócoras. Whitfield ainda não chegou.
Olham-me com ar interrogativo.
Tudo pronto”, digo. “Agora ele vai pregá-la.”
Enquanto eles reerguem, Anse chega à porta e nos olha e nós voltamos ao alpendre. Esfregamos novamente os sapatos, com cuidado, esperando para ver quem entra primeiro, hesitando um pouco diante da porta. Anse está do lado de dentro da porta, digno, compenetrado. Faz-nos sinal para entrar e nos conduz ao quarto.
Já a tinham colocado no caixão, de revés. Cash o fez em forma de relógio de parede, assim, com todas as juntas e ligações chanfradas e bem aplainadas, tenso como um tambor e bem — acabado como um cesto de costura, e puseram-na dentro com a cabeça no lugar onde ficariam normalmente os pés, para não enrugar-lhe o vestido. Era seu vestido de noiva, muito fofo embaixo, e eles a tinham deitado assim, com a cabeça para os pés, a fim de acomodar melhor o vestido, e tinham feito um véu, de uma tira de mosquiteiro, para esconder os buracos de prego em sua cara.
Quando estávamos saindo, Whitfield chega. Está encharcado e enlameado até a cintura. “Que o Senhor abençoe esta casa”, diz. “Demorei porque a ponte desapareceu. Tive de descer até o antigo vau e, com a ajuda de Deus, passar nadando com o meu cavalo. Que a graça de Deus desça sobre esta casa.” Voltamos aos cavaletes e tábuas e nos sentamos ou ficamos de cócoras.
Eu sabia que a ponte não aguentava”, diz Armstid.
Estava durando muito, aquela ponte”, diz Quick.
Você quer dizer que o Senhor a manteve firme”, diz Tio Billy. “Não conheço ninguém que tocasse ali com um martelo nos últimos vinte e cinco anos.”
Há quanto tempo ela está ali, Tio Billy?”, pergunta Quick.
Foi construída em... deixe-me ver... Foi no ano de 1888”, diz Tio Billy. “Eu me lembro porque o primeiro homem a atravessá-la foi Peabody, que ia à minha casa quando Jody estava nascendo.”
Se eu passei pela ponte todas as vezes que sua mulher pariu, Billy, então ela já devia estar gasta há mais tempo”, dia Peabody.
Rimos com estrondo, e paramos repentinamente. Olhamos um para o outro, um pouco de banda. “Muitas pessoas que passaram por ela já não passarão por ponte nenhuma”, diz Houston.
É verdade”, diz Littlejohn. “Assim é.”
Conheço uma, pelos menos”, diz Armstid. “Serão precisos dois a três dias para eles a levarem à cidade, na carroça. Gastarão uma semana para ir a Jefferson e voltar.”
Por que Anse está tão ansioso em levá-la a Jefferson?”, pergunta Houston. “Prometeu a ela”, digo. “Ela queria. Ela é de lá. Não pensava em outra coisa.”
E Anse também não pensa em outra coisa”, diz Quick.
Ahn”, diz Tio Billy. “Isto é próprio de um homem que deixou sempre a vida correr, e de repente mete-se numa empresa que trará os maiores problemas a todo mundo.”
Bem, só Deus lhe permitirá cruzar o rio agora”, diz Peabody.
Anse, sozinho, não pode.”
E eu acho que Ele permitirá”, diz Quick. “Ele cuida de Anse há muito tempo.”
É verdade”, diz Littlejohn.
Depois de tanto tempo não o abandonará agora”, diz Armstid.
Acho que Ele se parece com todo mundo por aqui”, diz Tio Billy. “Acostumou-se tanto a servir que agora não pode negar ajuda.”
Cash sai. Vestiu camisa limpa; seu cabelo, molhado, foi penteado para a testa, liso e preto como se o tivesse pintado na cabeça. Acocora-se, rígido, entre nós, que o observamos.
Você se ressente deste tempo, não?”, pergunta Armstid.
Cash não responde.
Um osso partido sempre dói”, diz Littlejohn. “Um sujeito de osso partido pode prever mudança de tempo.”
Cash teve sorte de escapar só com uma perna quebrada”, diz Armstid. “Podia ter ficado aleijado, de cama a vida inteira. De que altura você caiu, Cash?”
Oito metros e meio, onze centímetros e alguns quebrados, mais ou menos”, diz Cash.
Eu me aproximo dele. “A gente escorrega facilmente em cima de tábuas molhadas”, diz Quick.
É uma pena”, eu digo. “Mas você não podia fazer nada.”
A culpa é dessas amaldiçoadas mulheres”, ele diz. “Eu o fiz de maneira que ficasse bem equilibrado. Ajustado à medida e ao peso dela.”
Se são necessárias tábuas molhadas para alguém cair, muita gente vai cair antes que esta tempestade acabe.
Você não podia evitar”, eu digo.
Pouco me importa que alguém caia. Estou preocupado é com o algodão e o milho. Peabody tampouco se importa que alguém caia. Não é mesmo, doutor? É verdade. O campo é que ficará inteiramente destroçado. Parece até que alguma coisa sempre está a lhe acontecer.
Claro que sim. Isto, aliás, é que lhe dá valor.
Se nunca acontecesse nada e todo mundo fizesse boa colheita, você acha que valia a pena ser lavrador? Bem, o diabo me leve se gosto de ver meu trabalho destruído no chão, o trabalho que me custou tanto suor.
É fato. Um cara não se incomodaria de ver sua colheita destruída pela água, se pudesse transformar-se na própria chuva.
Mas qual o homem capaz disso? Onde está a cor de seus olhos? Ahn. Deus faz crescer. E Ele pode destruir tudo, com uma chuvarada, se achar melhor assim.
Você não podia evitar”, eu digo.
A culpa é dessas amaldiçoadas mulheres”, ele diz.
Na casa, as mulheres começam a cantar. Ouvimos a primeira estrofe começar, aumentar à medida que suas vozes se firmam, e nos levantamos e vamos para a porta, tirando os chapéus e cuspindo o tabaco que mascamos. Não entramos. Paramos nos degraus, misturados, segurando os chapéus nas mãos moles, adiante ou atrás, com um pé adiante e as cabeças curvadas, olhando de banda para chapéus nas mãos e para a terra, ou, de vez em quando, para o céu e para o rosto grave, compenetrado, do companheiro.
O canto termina; as vozes trêmulas apagam-se em desfalecimento rico. Whitfield começa. Sua voz é maior que ele. Como se não lhe pertencesse. Como se ele fosse um e sua voz outro, nadando sobre dois cavalos, lado a lado, através da correnteza, e entrando na casa, um sujo de lama e o outro nem mesmo molhado, triunfante e triste. Alguém dentro de casa começa a soluçar. Parece que seus olhos e sua voz entraram dentro do corpo e puseram-se à escuta; nós mudamos de posição, descansando na outra perna, procurando os olhos um do outro, mas fingindo que não.
Afinal, Whitfield para. As mulheres voltam a cantar. No ar espesso parece que suas vozes saem do ar, escorrem unidas em tristes e confortadoras modulações. Quando cessam, é como se não houvessem desaparecido ao longe. É como se houvessem apenas desaparecido no ar. E se mudássemos de posição, nós as perderíamos, novamente, no ar à nossa volta, tristes e reconfortantes. Então eles terminam e põem os chapéus, em gestos rígidos, como se nunca tivéssemos usado chapéu.
A caminho de casa, Cora ainda canta. “Reconheço meu Deus e espero minha recompensa”, ela canta, sentada na carroça, o xale em redor dos ombros e a sombrinha aberta, embora não esteja chovendo.
Ela teve a sua”, eu digo. “Vá para onde for, foi recompensada em ver-se livre de Anse Bundren.”
Ela ficou três dias naquela caixa, esperando que Darl e Jewel retornassem, pegassem uma roda nova e voltassem para onde a carroça estava parada na valeta. Leve minha parelha, Anse, eu disse. Aguardaremos a nossa, ele disse. É o que ela faria. Sempre foi uma mulher cheia de nós nas costas. No terceiro dia, eles voltaram e a puseram na carroça e partiram e já era muito tarde. Vocês terão de dar a volta pela ponte de Samson. É preciso um dia de viagem para chegar lá. Depois, serão sessenta quilômetros até Jefferson. Leve minha parelha, Anse. Esperaremos a nossa. É o que ela faria. A um quilômetro e meio da casa nós o vimos, sentado à beira de um charco. Que eu saiba, nunca vi um peixe ali.
Ele nos olhou com seus olhos redondos e calmos, o rosto sujo, o caniço nos joelhos. Cora ainda cantava.
O dia não é favorável à pesca”, eu disse. “Venha para casa conosco e amanhã cedo você irá ao rio e pegará um peixe.”
Há um aqui”, ele disse. “Dewey Dell viu-o.”
Venha conosco. O rio é o melhor lugar.”
Há um aqui”, ele disse. “Dewey Dell viu-o.”
Reconheço meu Deus e espero minha recompensa”, cantarolava Cora.

William Faulkner, em Enquanto Agonizo

sábado, 21 de junho de 2025

Lembrança de um Beijo | Joyce Alane e Chico César

Palavra

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, de oco
ao ponto de ninguém e de nuvem.
Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na
sarjeta.
Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las
pro chão, corrompê-las
até que padeçam de mim e me sujem de branco.
Sonho exercer com elas o ofício de criado:
usá-las como quem usa brincos.

Manoel de Barros, em Meu quintal é maior do que o mundo

Gratidão à máquina


Uso uma máquina de escrever portátil Olympia que é leve bastante para o meu estranho hábito: o de escrever com a máquina no colo. Corre bem, corre suave. Ela me transmite, sem eu ter que me enredar no emaranhado de minha letra. Por assim dizer provoca meus sentimentos e pensamentos. E ajuda-me como uma pessoa. E não me sinto mecanizada por usar máquina. Inclusive parece captar sutilezas. Além de que, através dela, sai logo impresso o que escrevo, o que me torna mais objetiva. O ruído baixo de seu teclado acompanha discretamente a solidão de quem escreve. Eu gostaria de dar um presente a minha máquina. Mas o que se pode dar a uma coisa que modestamente se mantém como coisa, sem a pretensão de se tornar humana? Essa tendência atual de elogiar as pessoas dizendo que são “muito humanas” está-me cansando. Em geral esse “humano” está querendo dizer “bonzinho”, “afável”, senão meloso. E é isso tudo o que a máquina não tem. Nem sequer a vontade de se tornar um robô sinto nela. Mantém-se na sua função, e satisfeita. O que me dá também satisfação.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

Inveja

Diário de Bernardo Soares

31.

O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.
Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
Tudo no meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafisico do mistério das coisas.
Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.
Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!... Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!... Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, ténue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!... Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho... O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida... E durmo, ao meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
Durmo e desdurmo.
Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contacto de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto.
Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me... E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que canta segunda vez.

Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego

CAPÍTULO XVIII. Onde se contam as razões que passou Sancho Pança com seu senhor D. Quixote com outras aventuras dignas de ser contadas




Chegou Sancho murcho e desmaiado ao pé do amo; tanto, que nem podia fazer andar o burro. Quando D. Quixote assim o viu, disse-lhe:
Agora, bom Sancho, é que eu acabo de crer que aquele castelo ou venda é encantado sem dúvida, porque aqueles que tão atrozmente se divertiram contigo, que poderiam ser senão fantasmas, e gente do outro mundo? E nisto me certifico, por ver que, estando pelo espigão do muro do quintal a presenciar os atos da tua triste tragédia, não pude, por mais que fiz, subir-me acima, nem sequer apear-me do Rocinante; decerto porque me tinham encantado; porque te juro, à fé de quem sou, que, se pudera subir ou apear-me, eu te houvera vingado de maneira que aqueles foles de vento, aqueles malandrinos, se ficassem lembrando da brincadeira para sempre, ainda que nisso soubera descumprir as leis da cavalaria, que, segundo já muitas vezes me ouviste, não consentem a cavaleiro pôr mão em quem o não seja, salvo sendo em defensa da sua própria vida e pessoa, em caso de urgente e grande necessidade.
Também eu me vingava se pudesse — disse o outro — quer fosse armado cavaleiro, quer não; mas não pude, ainda que tenho para mim, que os que se divertiram à minha custa não eram fantasmas, nem homens encantados, como Vossa Mercê diz: eram homens de carne e osso como nós; e todos (segundo lhes ouvi enquanto me estavam volteando) tinham os seus nomes; um chamava-se Pedro Martins, outro Tenório Fernandes; e o vendeiro ouvi que se chamava João Palomeque, o surdo; e por isso, senhor meu, o Vossa Mercê não ter podido saltar o muro, nem apear-se do cavalo, por outra causa foi, que não por encantamentos. O que eu tiro a limpo de tudo isto é que estas aventuras, que andamos buscando, afinal de contas nos hão-de meter em tantas desaventuras, que não saibamos qual é a nossa mão direita. O que seria melhor e mais acertado, segundo o meu fraco entender, seria tornarmo-nos para o nosso lugar, agora que é tempo das aceifas, e de cuidar da fazenda, deixando-nos de andar de seca em meca, e de Herodes para Pilatos, como dizem.
Que pouco sabes, Sancho — respondeu D. Quixote — dos achaques da cavalaria! Cala e tem paciência, que lá virá dia em que vejas por teus olhos que honrosa coisa é andar neste exercício!
Se não, dize-me: que maior contentamento pode haver neste mundo, ou que satisfação pode comparar-se à de vencer uma batalha, e triunfar do inimigo? Sem dúvida que nada chega a isso.
Assim deve ser — respondeu Sancho — posto que eu por mim não sei; só sei que, depois que somos cavaleiros andantes, ou (por melhor dizer) depois que Vossa Mercê o é (que eu, à minha parte, não há por que me entre em tão honroso rol), nunca jamais temos vencido batalha alguma, salvo a do biscainho, e ainda dessa saiu Vossa Mercê com meia orelha, e meia celada de menos; de então para cá tudo tem sido bordoada e mais bordoada, murros e mais murros; e eu, ainda por cima de tudo, manteado, e por pessoas encantadas, de quem me não posso vingar para saber até onde chega o gosto de vencer inimigos, como Vossa Mercê diz.
Essa é que é a minha pena, e a que tu deves também sentir, Sancho — respondeu D. Quixote; — porém daqui em diante eu procurarei haver às mãos alguma espada feita com tal mestria, que ao que a tiver consigo se não possa fazer nenhum gênero de encantamento. Até não era impossível que a ventura me deparasse a de Amadis, quando se chamava “O Cavaleiro da ardente espada”; foi a melhor que teve cavaleiro algum do mundo, porque, além de ter a virtude referida, cortava como uma navalha, e não havia armadura, por forte e encantada que fosse, que lhe resistisse.
Eu sou tão venturoso — disse Sancho — que, ainda que isso fosse, e Vossa Mercê viesse a achar espada semelhante, só viria a servir e aproveitar aos armados cavaleiros, assim como o bálsamo; e aos escudeiros, que os papem os lobos.
Não tenhas medo, Sancho — disse D. Quixote — melhor se haverá Deus contigo.
Nestes colóquios se estavam D. Quixote e o escudeiro, quando o fidalgo reparou que pelo caminho se adiantava para ali uma grande poeirada. Voltou-se então para Sancho, e disse-lhe:
É este o dia, Sancho, em que se há-de ver o bem que a minha sorte me tinha reservado; é o dia, repito, em que se há-de mostrar mais que nunca o valor do meu braço, e em que hei-de fazer obras que fiquem registradas no livro da fama por todos os vindouros séculos. Vês aquela poeirada que ali se ergue, Sancho? pois é levantada por um copiosíssimo exército de diversos e inumeráveis povos que por ali vêm marchando.
Por essas contas — disse Sancho — dois devem eles ser, porque desta parte contrária também sobe outra poeirada semelhante.
Voltou-se para ali D. Quixote e viu que era verdade; e, alegrando-se sobremodo, assentou que eram, sem dúvida alguma, dois exércitos que vinham a travar-se e combater no meio daquela espaçosa planície, porque não se passava hora que não tivesse a fantasia cheia daquelas batalhas, encantamentos, sucessos, desatinos, amores e desafios, que nos livros de cavalaria se relatam. Quanto dizia, pensava, ou fazia, ia sempre bater em coisas dessas.
A poeirada, que havia visto, levantavam-na dois grandes rebanhos de ovelhas e carneiros que por aquele mesmo caminho vinham de diferentes partes; os quais, em razão do pó, se não deixaram perceber enquanto se não avizinharam. Com tamanho afinco afirmava D. Quixote que eram exércitos, que Sancho chegou a acreditar e a dizer:
Pois senhor, que havemos então de fazer?
Que havemos de fazer! — disse D. Quixote — havemos de favorecer e ajudar aos necessitados e desvalidos. Hás-de saber, Sancho, que este, que vem pela nossa frente, o capitaneia o grande Imperador Alifanfarrão, senhor da grande Taprobana; e estoutro, que marcha por trás das minhas costas, é o do seu inimigo El-Rei dos garamantes Pentapolim de arremangado braço, porque sempre entra nas batalhas com o braço direito nu.
E por que se querem tão mal esses dois senhores? — perguntou Sancho.
Querem-se mal — respondeu D. Quixote — porque este Alifanfarrão é um pagão furibundo, e está namorado da filha de Pentapolim, que é uma formosíssima, e ainda por cima muito engraçada senhora, e cristã. Seu pai não quer dá-la ao Rei pagão, sem ele primeiro renegar a lei do seu falso profeta Mafoma, e se converter à sua.
Voto por estas barbas — disse Sancho — que faz muito bem o Pentapolim, e hei-de ajudá-lo em quanto puder.
Nisso farás o que deves, Sancho — disse o fidalgo — porque para entrar em batalhas semelhantes não se requer ter sido armado cavaleiro.
Até aí bem percebo eu — respondeu Sancho; — mas onde poremos nós este asno, para termos a certeza de o acharmos depois da refrega? porque o entrar nela com semelhante cavalgadura, creio que ainda até agora se não viu.
É certo — disse D. Quixote; — o que melhormente podes fazer dele é deixá-lo às suas aventuras, quer se perca, quer não; porque tantos hão-de ser os cavalos com que havemos de ficar depois da vitória,que até o Rocinante corre seu risco de eu o trocar por outro. Mas está atento e repara, que te quero dar conta dos cavaleiros mais principais que vêm nestes dois exércitos; e para que melhor os notes, retiremo-nos para aquela alturinha que ali se levanta, donde se devem descobrir os exércitos ambos.
Fizeram-no assim, colocando-se numa lomba, donde se avistavam bem os dois rebanhos, que a D. Quixote se representavam exércitos. As nuvens de pó que levantavam lhe tinham turvada e cega a vista. Apesar de tudo, porém, vendo na imaginação o que lhe não mostravam os olhos, nem havia, em voz alta começou a dizer:
Aquele cavaleiro que ali vês, de armas amarelas, que traz no escudo um leão coroado rendido aos pés de uma donzela, é o valoroso Laurcalco, senhor da ponte de prata. O outro das armas com flores de ouro, que traz no escudo três coroas de prata em campo azul, é o temido Micocolembo, Grã-Duque da Quirócia. O outro, de membros agigantados, que à sua mão direita vem, é o nunca amedrontado Brandabarbarrão de Boliche, senhor das três Arábias, que vem armado com aquela pele de serpente, e tem por escudo uma porta, que (segundo é fama) é uma das do templo derribado por Sansão, quando se vingou dos seus inimigos, matando-se. Mas vira agora os olhos para a outra parte, e verás diante, e na frente destoutro exército, ao sempre vencedor, e nunca jamais vencido Timonel de Carcajona, Príncipe de Nova Biscaia, que vem armado com armas esquarteladas de azul, verde, branco e amarelo, e traz no escudo um gato de ouro em campo aleonado, com uma letra que diz “Miau”, que é o princípio do nome da sua dama, que (segundo se diz) é a sem par Miaulina, filha do Duque Alfenhique do Algarve. O outro, que oprime e assoberba os lombos daquela possante égua, e traz as armas brancas de neve, é um cavaleiro novel, de nação francês, chamado Pierre Papin, senhor das baronias de Utrique. O outro, que bate com os ferrados talões os ilhais daquela pintada e ligeira zebra e traz o escudo veirado de azul, é o poderoso Duque de Nerbia, Espartafilardo do Bosque. Traz por empresa no escudo um espargal, com uma letra em castelhano, que diz assim: Rastrea mi suerte.
E assim foi D. Quixote por diante, nomeando muitos cavaleiros de um e de outro campo, como a ele se antolhavam, dando a todos as suas armas, cores, empresas e letras, que improvisava levado das imaginativas da sua loucura nunca vista; e sem se deter prosseguiu, dizendo:
Este esquadrão formam-no gentes de diversas nações. Aqui estão os que bebem as doces águas do famoso Xanto; os montanheses que pisam os campos Massílicos; os que joeiram o finíssimo e miúdo ouro da feliz Arábia; os que gozam das famosas e frescas ribeiras do claro Termodonte; os que sangram por muitas e diversas vias o rico Pactolo; os númidas incertos no cumprir a palavra; os persas afamados em arcos e frechas; os partos e medas, que pelejam fugindo; os árabes de vivendas mudáveis; os citas tão cruéis como alvos; os etíopes de lábios furados; e outras infinitas nações, cujos rostos estou vendo e conhecendo, ainda que os nomes não me lembram. Nestoutro esquadrão vêm os que bebem as correntes cristalinas do olivífero Bétis; os que lavam o rosto nas águas do sempre rico e dourado Tejo; os que desfrutam as proveitosas águas do divino Xenil; os que pisam os Tartésios campos de pastos abundantes; os que folgam nos elísios prados do Xeres; os manchegos, ricos e coroados de louras espigas; os de ferro vestidos, restos antigos do sangue godo; os que se banham no Pisuerga, famoso pela mansidão da corrente; os que apascentam os seus gados nas extensas devesas do tortuoso Guadiana, celebrado pelo seu escondido curso; os que tremem com o frio dos selváticos Pireneus, e com as brancas neves do alteroso Apenino; finalmente, quantos se contêm na Europa toda.
Valha-me Deus! e quantas mais províncias não disse! quantas nações não nomeou, dando a cada uma, e com maravilhosa presteza, os atributos que lhe pertenciam, todo absorto e repassado do que tinha lido nos seus livros mentirosos!
Embasbacado estava Sancho Pança com tanto palavrório sem dizer nem pio; de quando em quando voltava a cabeça para ver se avistava os cavaleiros e gigantes que o amo nomeava; e como não descobria nem meio, lhe disse:
Senhor meu, leve o diabo tudo isso, que não vejo por todo este descampado homem, nem gigante, nem cavaleiro nenhum dos que menciona. Eu ao menos não percebo tal. Talvez seja tudo encantamento como os avejões desta noite.
Como! pois não ouves o rinchar dos cavalos? o toque dos clarins, e o trovejar dos tambores?
O que eu ouço — respondeu Sancho — são muitos balidos de carneiros e ovelhas; mais nada.
E era verdade, porque os dois rebanhos já vinham muito perto.
O medo que tens — disse D. Quixote — é que faz, Sancho, que nem vejas, nem ouças às direitas, porque um dos efeitos do medo é turvar os sentidos, e fazer que pareçam as coisas outras do que são. Se tão medroso és, retira-te para onde quiseres, e deixa-me só, que basto eu para dar a vitória à parcialidade a quem ajude.
E, falando assim, cravou as esporas em Rocinante; e, posta a lança em riste, baixou da lomba como um raio. Dava-lhe vozes Sancho, dizendo:
Volte para trás, senhor D. Quixote, que voto a Deus que isso que vai investir são carneiros e ovelhas. Volte para trás. Mal haja o pai que me gerou. Forte loucura! Repare bem, que não há gigante, nem cavaleiro, nem gatos, nem escudos partidos nem inteiros, nem veiros azuis, nem endiabrados. Que faz? pecados meus!
Nem com tudo aquilo se refreava D. Quixote, antes em altas vozes ia clamando:
Eia, cavaleiros, que seguis e militais debaixo das bandeiras do valoroso Imperador Pentapolim de arremangado braço, segui-me todos, vereis quão facilmente lhe dou vingança do seu inimigo Alifanfarrão de Taprobana.
Com estas palavras se entranhou pelo tropel das ovelhas, e começou a alancear nelas, tão denodado como se desse em verdadeiros inimigos mortais. Bradavam-lhe os pastores que tivesse mão; porém vendo que era tempo perdido, levaram de suas fundas, e começaram a cumprimentar-lhe as orelhas com pedradas como punhos. D. Quixote, sem fazer caso das pedras, campeava para todas as partes, dizendo:
Onde estás, soberbo Alifanfarrão? vem para mim, que sou um só cavaleiro, e desejo a sós por sós provar as tuas forças, e tirar-te a vida em castigo das penas que dás ao valoroso Pentapolim Garamante.
Nisto acertou-lhe um seixo dos do rio, que lhe meteu duas costelas dentro.
Vendo-se tão maltratado, deu por sem dúvida que estava morto, ou muito gravemente ferido, e, lembrando-se do seu específico, puxou da almotolia, pô-la à boca, e principiou a engolir; mas, antes de ter esvaziado quanto lhe pareceu suficiente, veio outra amêndoa tão certeira contra a mão e a almotolia, que a amolgou toda, levando juntamente a D. Quixote três ou quatro dentes queixais, e pisando-lhe fortemente dois dedos.
Tal foi o primeiro golpe e o segundo, que ao pobre cavaleiro forçado foi deixar-se cair do cavalo.
Chegaram-se a ele os pastores, e, supondo terem-no morto, recolheram o gado a toda a pressa, levaram as reses mortas, que passavam de sete, e sem mais averiguações se lançaram a fugir.
Todo aquele tempo o levou Sancho na lomba, a observar as loucuras que seu amo fazia, e a arrancar as barbas, e a amaldiçoar a hora e o instante em que a desgraça lho tinha feito conhecer. Vendo-o caído, e os pastores já desaparecidos, desceu da lomba, chegou-se a ele, e achou-o naquela lástima, mas ainda em si; e disse-lhe:
Não lhe pregava eu, senhor D. Quixote, que se tornasse atrás, e que os que ia acometer não eram exércitos, senão carneiradas?
Aí tens tu como aquele ladrão do sábio meu inimigo faz aparecer e desaparecer as coisas — disse D. Quixote; — podes crer, Sancho, que aos tais é fácil figurarem-nos tudo que lhes lembra; e este maligno que me persegue, invejoso da glória que viu me adviria desta batalha, transformou os esquadrões dos inimigos em fatos de ovelhas; quando não, por vida minha! faze uma coisa, Sancho, para tedesenganares da verdade: monta no teu asno, segue-os de longe, e verás como, em se afastando um pouco daqui, tornam ao seu primeiro ser, deixam de ser carneiros e se fazem homens, tão feitos e perfeitos como eu tos pintei. Mas não vás por ora, que tenho precisão de que me ajudes; primeiro chega-te cá, e vê bem quantos queixais me faltam; parece-me que são todos.
Chegou-se-lhe tão perto o Sancho, que lhe metia quase os olhos pela boca, e foi a tempo que já o bálsamo tinha produzido o seu efeito no estômago de D. Quixote. Neste momento, pois, desfechou sobre as barbas do compassivo escudeiro, que nem tiro de escopeta, tudo que havia dentro.
Nossa Senhora! — exclamou Sancho — que é isto? sem dúvida este pecante está ferido mortalmente: vomita sangue.
Reparando porém um pouco mais, conheceu pela cor, sabor e cheiro, que tal sangue não era, mas sim o bálsamo da almotolia, que ele lhe vira engolir. Tamanho foi o seu nojo, que, revolvendo-se-lhe o interior, vomitou as tripas mesmo por cima do amo; ficaram ambos como umas pérolas.
Correu Sancho ao seu burro, para tirar dos alforjes com que se limpar a si, e curar ao patrão; não os achou. Esteve a pique de perder o juízo; disse outra vez mal à sua vida, e resolveu de si para si deixar tal cargo, e tornar-se para a terra, ainda que perdesse a soldada já merecida e as esperanças da prometida ilha.
Levantou-se neste comenos D. Quixote, e com a mão esquerda na boca, para lhe não acabarem de sair os dentes, colheu com a direita as rédeas de Rocinaiite, o qual não tinha ainda arredado pé (tanta era a sua lealdade e boa condição), e foi-se para onde o escudeiro estava de peito sobre o asno, com a mão na face, como excessivamente pensativo.
Vendo-o assim, e tão triste, disse-lhe:
Sabe, Sancho, que só quem faz mais que outrem é que é mais que outrem. Todas estas inclemências que nos acontecem sinais são de que breve se nos há-de o tempo abonançar, e as coisas correr-nos melhormente, porque não é possível que nem o mal nem o bem, sejam perduráveis; por isso, tendo o mal aturado já tanto, já o bem nos deve estar chegando; pelo tanto, não tens por que anojar-te pelas desgraças que a mim me sucedem, porque não tens nelas quinhão.
Não tenho quinhão? — soltou Sancho — então o que ontem mantearam não era o filho de meu pai? e os alforjes, que me faltam agora, com tudo o que eu tinha dentro deles, eram do vizinho; não?
Perdeste os alforjes, Sancho? — disse D. Quixote.
Não sei; não os acho — respondeu ele.
Desse modo, não há que se coma hoje! — replicou D. Quixote.
Não haveria decerto — tornou Sancho — se faltassem por estes prados as ervas que Vossa Mercê conhece, segundo diz, das quais se costumam valer para remédio em semelhantes faltas os tão mal-aventurados cavaleiros andantes como Vossa Mercê.
Mesmo assim — respondeu D. Quixote — mais quisera eu agora um quarto de pão, e até uma bola de suborralho, com duas cabeças de sardinhas de espicha, que todas quantas ervas descreve Dioscórides, nem que fosse o ilustrado pelo doutor Laguna. Seja como for, monta, bom Sancho, no teu jumento, e vem atrás de mim, que Deus, que por tudo olha, não nos há-de faltar, e mais andando nós tanto em serviço dele como andamos, ele, que nem falta aos mosquitos do ar, nem aos bichinhos da terra, nem aos filhos das rãs nos charcos, e é tão piedoso que faz nascer o sol sobre os bons e os maus, e chove sobre os injustos e os justos.
Mais talhado estava Vossa Mercê — disse Sancho — para pregador, que para cavaleiro andante.
De tudo sabiam e devem saber os cavaleiros andantes — disse D. Quixote — pois cavaleiro andante houve nos passados séculos, que se detinha a fazer um sermão ou prática no meio duma estrada real, como se fora graduado pela Universidade de Paris; donde se infere que nem a lança dana à pena, nem a pena à lança.
Ora bem; seja assim como Vossa Mercê diz — respondeu Sancho — mas vamo-nos já daqui, e procuremos onde se há-de ficar esta noite. Permita Deus que seja em parte onde não haja mantas, nem manteadores, nem mouros encantados, que, se os houver, dou ao diabo a cartada.
Pede-o tu a Deus, filho — disse D. Quixote — e vamos para onde tu quiseres, que desta vez quero deixar à tua escolha o albergar-nos. Mas chega cá a mão, e apalpa-me com o dedo; vê bem quantos queixais me faltam deste lado direito no queixo de cima; ali é que me dói.
Meteu Sancho os dedos, e, estando a apalpar, lhe disse:
Quantos queixais costumava Vossa Mercê ter deste lado?
Quatro — respondeu D. Quixote — afora a presa; todos inteiros e muito sãos.
Olhe Vossa Mercê bem o que diz, senhor — respondeu Sancho.
Digo quatro, se não eram cinco — respondeu D. Quixote — porque em toda a minha vida nunca me tiraram dente da boca, nem me caiu nenhum, nem me apodreceu.
Pois nesta parte de baixo — tornou Sancho — não tem Vossa Mercê senão dois queixais e meio; e da parte de cima nem meio, nem nenhum; está tudo raso como a palma da mão.
Desventurado de mim! — disse D. Quixote, ouvindo as tristes novas que o seu escudeiro lhe dava — antes quisera que me tivessem deitado abaixo um braço (uma vez que não fosse o da espada); porque te digo, Sancho, que boca sem queixais é como moinho sem mós; e muito mais se há-de estimar um dente, que um diamante. Mas a tudo isto andamos sujeitos os que professamos a apertada ordem da cavalaria. Monta, amigo, e vai guiando, que eu te sigo na andadura que te parecer.
Assim o fez Sancho, e se encaminhou para onde entendeu poderia achar acolhida sem sair da estrada real, que por ali ia muito trilhada; e, caminhando devagarinho porque as dores dos queixos de D. Quixote não o deixavam sossegar nem apressar-se, quis Sancho i-lo entretendo e divertindo com dizer-lhe alguma coisa; e, entre as que lhe disse, foi o que se agora referirá no seguinte capítulo.

Miguel de Cervantes, em Dom Quixote de La Mancha

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Targino na Farra

Vão

vão é tudo
que não for prazer
repartido prazer
entre parceiros
vãs
todas as coisas que vão.

Paulo Leminski, em Toda Poesia

Nazistas no Chile

Regressei outra vez em terceira classe ao meu país. Ainda que na América Latina não tivéssemos lido o caso de que eminentes escritores como Céline, Drieu La Rochelle ou Ezra Pound se convertessem em traidores a serviço do fascismo, nem por isso deixou de existir uma forte corrente impregnada, natural ou financeiramente, pela corrente hitleriana. Em toda parte formavam-se pequenos grupos que levantavam o braço fazendo a saudação fascista, disfarçados de guardas de assalto. Mas não se tratava somente de pequenos grupos. As velhas oligarquias feudais do continente simpatizavam (e simpatizam) com qualquer tipo de anticomunismo, venha este da Alemanha ou da ultra-esquerda criolla. Além disso não esqueçamos que grandes grupos de descendentes de alemães povoam a maioria de determinadas regiões do Chile, Brasil e México. Esses setores foram facilmente seduzidos pela meteórica ascensão de Hitler e pela fábula de um milênio de grandeza germânica.
Por aqueles dias de vitórias estrondosas de Hitler, tive que cruzar mais de uma vez alguma rua de um vilarejo ou de uma cidade do Sul do Chile sob verdadeiros bosques de bandeiras com a cruz gamada. Numa ocasião, em um pequeno povoado sulista, vi-me forçado a usar o único telefone da localidade e a fazer uma involuntária reverência ao Führer. O proprietário alemão do estabelecimento tinha maquinado colocar o aparelho de tal forma que a gente ficava obrigado a ficar com o braço no alto diante de um retrato de Hitler com o braço levantado.
Fui diretor da revista Aurora de Chile. Toda a artilharia literária (não tínhamos outra) era disparada contra os nazistas que iam engolindo um país atrás do outro. O embaixador hitleriano no Chile presenteou livros da chamada cultura neogermânica à Biblioteca Nacional. Respondemos pedindo a todos os nossos leitores que nos mandassem os verdadeiros livros alemães da verdadeira Alemanha proibidos por Hitler. Foi uma grande experiência. Recebi ameaças de morte. E chegaram muitos embrulhos corretamente empacotados com livros que continham imundícies. Recebemos também coleções inteiras do Stürner, jornal pornográfico, sadista e anti-semita, dirigido por Julius Streicher, justamente enforcado anos depois em Nuremberg. Mas pouco a pouco, com timidez, começaram a chegar as edições em idioma alemão de Henri Heine, de Thomas Mann, de Ana Seghers, de Einstein, de Arnold Zweig. Quando tivemos cerca de quinhentos volumes fomos deixá-los na Biblioteca Nacional.
Que surpresa! A Biblioteca Nacional nos tinha fechado as portas com cadeado.
Organizamos então uma passeata e penetramos no salão de honra da universidade com os retratos do Pastor Niemoller e de Karl von Ossietvsky. Não sei por que razão celebrava-se ali nesse instante um ato presidido por Dom Miguel Cruchaga Tocornal, ministro das Relações Exteriores. Colocamos com cuidado os livros e os retratos no estrado da presidência. Ganhou-se a batalha: os livros foram aceitos.

Pablo Neruda, em Confesso que vivi

Gente certa




[…]

Vemos voltemos. O Buriti-Pintado, o Oi-Mãe, o rio Soninho, a Fazenda São Serafim; com outros, mal esquecidos, seja. Ao pé das chapadas, no entremeio do se encher de rios tantos, ou aí subindo e descendo solaus, recebendo o empapo de chuva e mais chuva, a gente se fervia ― debaixo desses extraordinários de Zé Bebelo ― a gente lambia guerra. Zé BebeloVaz Ramiro ― viva o nome! A gente vinha sobre o rastro deles, dos hermógenes ― por matar, por acabar com eles, por perseguir. No borrusco, o Hermógenes corria, longes, de nós, sempre. As artes que fugiam. Mas eu com aquilo já tinha inteirado costume. Era ruim e era bom.
Aí quando muito vento abriu o céu, e o tempo deu melhora, a gente estava na erva alta, no quase liso de altas terras. Se ia, aos vintes e trintas, com Zé Bebelo de bota-fogo. Assim expresso, chapadão voante. O chapadão é sozinho ― a largueza. O sol. O céu de não se querer ver. O verde carteado do grameal. As duras areias. As arvorezinhas ruim-inhas de minhas. A diversos que passavam abandoados de araras ― araral ― conversantes. Aviavam vir os periquitos, com o canto-clim. Ali chovia? Chove ― e não encharca poça, não rola enxurrada, não produz lama! a chuva inteira se soverte em minuto terra a fundo, feito um azeitezinho entrador. O chão endurecia cedo, esse rareamento de águas. O fevereiro feito. Chapadão, chapadão, chapadão.
De dia, é um horror de quente, mas para a noitinha refresca, e de madrugada se escorropicha o frio, o senhor isto sabe. Para extraviar as mutucas, a gente queimava folhas de arapavaca. Aquilo bonito, quando tição acêso estala seu fim em faíscas ― e labareda dalalala. Alegria minha era Diadorim. Soprávamos o fogo, juntos, ajoelhados um frenteante o ao outro. A fumaça vinha, engasgava e enlagrimava. A gente ria. Assim que fevereiro é o mês mindinho: mas é quando todos os cocos do buritizal maduram, e no céu, quando estia, a gente acha reunidas as todas estrelas do ano todo. Mesmas vezes eu ria. Homem dorme com a cabeça para trás, dois dedos no queixo. Era o Pitoló. Um Pitoló, sei lá, cabra destemido, com crimes nos maniçobais perto para cima de Januária; mas era nascido no barranco. No Carinhanha, rio quase preto, muito imponente, comprido e povooso. Ademais que ele contava casos de muito amor; Diadorim às vezes gostava. Mas Diadorim sabia era a guerra. Eu , no gozo de minha ideia, era que o amor virava senvergonhagem. Turvei, tanto. ― Andorinha que vem e que vai, quer é ir bem pousar nas duas torres da matriz de Carinhanha... ― o Pitoló falava. Eu tinha súbitas outras minhas vontades, de passar devagar a mão na pele branca do corpo de Diadorim, que era um escondido. E em Otacília, eu não pensava? No escasso, pensei. Nela, para ser minha mulher, aqueles usos-frutos. Um dia, eu voltasse para a Santa Catarina, com ela passeava, no laranjal de lá. Otacília, mel do alecrim. Se ela por mim rezava? Rezava. Hoje sei. E era nessas boas horas que eu virava para a banda da direita, por dormir meu sensato sono por cima de estados escuros.
Mas levei minha sina. Mundo, o em que se estava, não era para gente: era um espaço para os de meia-razão. Para ouvir gavião guinchar ou as tantas seriemas que chungavam, e avistar as grandes emas e os veados correndo, entrando e saindo até dos velhos currais de ajuntar gado, em rancharias sem morador? Isso, quando o ermo melhorava de ser só ermo. A chapada é para aqueles casais de antas, que toram trilhas largas no cerradão por aonde, e sem saber de ninguém assopram sua bruta força. Aqui e aqui, os tucanos senhoreantes, enchendo as árvores, de mim a um tiro de pistola ― isto resumo mal. Ou o zabelê choco, chamando seus pintos, para esgaravatar terra e com eles os bichinhos comíveis catar. A fim, o birro e o garrixo sigritando. Ah, e o sabiá-preto canta bem. Veredas. No mais, nem mortalma. Dias inteiros, nada, tudo o nada ― nem caça, nem pássaro, nem codorniz. O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juizo de raiz? Não se tem onde se acostumar os olhos, toda firmeza se dissolve. Isto é assim. Desde o raiar da aurora, o sertão tonteia. Os tamanhos. A alma deles. Mas Zé Bebelo, andante, estava esperdiçando o consistir. E que o Hermógenes só fizesse por se fugir toda a vida, isso ele não entendia. ― Vai cavacando buraco, vai, que tu vê! ― oco da paciência, ele resmungou. Ainda que, nesses dias, ele menos falasse; ou, quando falava, eu não queria ouvir. Digo que, no cível trivial, Zé Bebelo me indispunha com algum enjôo. A antes uma conversa com Alaripe, somente simples, ou com o Fafafa, que estimava irmãmente os cavalos, deles tudo entendia, mestre em doma e em criação. Zé Bebelo só tinha graça para mim era na beira dos acontecimentos ― em decisões de necessidade forte e vida virada ― horas de se fazer. O traquejar. Se não, aquela mente de prosa já me aborrecia.
A monte andante, ao adiável, aí assim e assaz eu airei meu pensamento. Amor eu pensasse. Amormente. Otacília era, a bem-dizer, minha nôiva? Mas eu carecia era de mulher ministrada, da vaca e do leite. De Diadorim eu devia de conservar um nôjo. De mim, ou dele? As prisões que estão refincadas no vago, na gente. Mas eu aos poucos macio pensava, desses acordados em sonho! e via, o reparado ― como ele principiava a rir, quente, nos olhos, antes de expor o riso daquela boca; como ele falava meu nome com um agrado sincero; como ele segurava a rédea e o rifle, naquelas mãos tão finas, brancamente. Esses Gerais em serras planas, beleza por ser tudo tão grande, repondo a gente pequenino. Como se eu estivesse calçando par de chinelo muito flote; e eu queria um sinapismo, botim reiúno, duro, redomão.
Agora ― e os outros? ― o senhor dirá. Ah, meu senhor, homens guerreiros também têm suas francas horas, homem sozinho sem par supre seus recursos também. Surpreendi um, o Conceiço, que jazia vadio deitado, se ocultando atrás de fechadas môitas; momento que raro se vê, feito o cagar dum bicho bravo. ― E essa natureza da gente... ― ele disse; eu não tinha perguntado explicação. O que eu queria era um divertimento de alívio. Ali, com a gente, nenhum cantava, ninguém não tinha viola nem nenhum instrumento. No peso ruim do meu corpo, eu ia aos poucos perdendo o bom tremor daqueles versos de Siruiz? Então eu forcejei por variar de mim, que eu estava no não-acontecido nos passados. O senhor me entende?
De Diadorim não me apartava. Cobiçasse de comer e beber os sobejos dele, queria pôr a mão onde ele tinha pegado. Pois, por que? Eu estava calado, eu estava quieto. Eu estremecia sem tremer. Porque eu desconfiava mesmo de mim, não queria existir em tenção soez. Eu não dizia nada, não tinha coragem. O que tinha era uma esperança? Mesmo parava tempos no pensar numa mulher achada! Nhorinhá, a minha moça Rosa uarda, aquela mocinha Miosótis. Mas o mundo falava, e em mim tonto sonho se desmanchando, que se esfiapa com o subir do sol, feito neblina noruega movente no frio de agosto.
A noite que houve, em que eu, deitado, confesso, não dormia; com dura mão sofreei meus ímpetos, minha força esperdiçada; de tudo me prostrei. Ao que me veio uma ânsia. Agora eu queria lavar meu corpo debaixo da cachoeira branca dum riacho, vestir terno novo, sair de tudo o que eu era, para entrar num destino melhor. Anda que levantei, a pé caminhei em redor do arrancho, antes do romper das horas dalva. Saí no grande orvalho. Só os pássaros, pássaro de se ouvir sem se ver. Ali se madruga com céu esverdeado. Zé Bebelo podia pautear explicação de tudo: de como a gente ia alcançar os hermógenes e dar neles grave derrota; podia referir tudo que fosse de bem se guerrear e reger essa política, com suas futuras benfeitorias. De que é que aquilo me servisse? Me cansava. E vim vindo, para a beira da vereda. Consegui com o frio, esperei a escuridão se afastar. Mas, quando o dia clareou de todo, eu estava diante do buritizal. Um buriti ― teteia enorme. Aí sendo que eu completei outros versos, para ajuntar com os antigos, porque num homem que eu nem conheci ― aquele Siruiz ― eu estava pensando. Versos ditos que foram estes, conforme na memória ainda guardo, descontente de que sejam sem razoável valor:

Trouxe tanto este dinheiro o quanto, no meu surrão,
pra comprar o fim do mundo no meio do Chapadão.
Urucúia ― rio bravo cantando à minha feição:
é o dizer das claras águas que turvam na perdição.
Vida é sorte perigosa passada na obrigação toda noite é rio-abaixo,
todo dia é escuridão…

Mas estes versos não cantei para ninguém ouvir, não valesse a pena. Nem eles me deram refrigério. Acho que porque eu mesmo tinha inventado o inteiro deles. A virtude que tivessem de ter, deu de se recolher de novo em mim, a modo que o truso dum gado mal saído, que em sustos se revolta para o curral, e na estreitez da porteira embola e rela. Sentimento que não espairo; pois eu mesmo nem acerto com o mote disso ― o que queria e o que não queria, estória sem final. O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza! Só assim de repente, na horinha em que se quer, de propósito ― por coragem. Será? Era o que eu às vezes achava. Ao clarear do dia.
Aí o senhor via os companheiros, um por um, prazidos, em beira do café. Assim, também, por que se aguentava aquilo, era por causa da boa camaradagem, e dessa movimentação sempre. Com todos, quase todos, eu bem combinava, não tive questões. Gente certa. E no entre esses, que eram, o senhor me ouça bem: Zé Bebelo, nosso chefe, indo à frente, e que não sediava folga nem cansaço; o Reinaldo ― que era Diadorim: sabendo deste, o senhor sabe minha vida; o Alaripe, que era de ferro e de ouro, e de carne e ósso, e de minha melhor estimação; Marcelino Pampa, segundo em chefe, cumpridor de tudo e senhor de muito respeito; João Concliz, que com o Sesfrêdo porfiava, assoviando imitado de toda qualidade de pássaros, este nunca se esquecia de nada; o Quipes, sujeito ligeiro, capaz de abrir num dia suas quinze léguas, cavalos que haja; Joaquim Beijú, rastreador, de todos esses sertões dos Gerais sabente; o Tipote, que achava os lugares d’água, feito boi geralista ou buriti em broto de semente; o Suzarte, outro rastreador, feito cão cachorro ensinado, boa pessoa; o Quêque, que sempre tinha saudade de sua rocinha antiga, desejo dele era tornar a ter um pedacinho de terra plantadeira; o Marimbondo, faquista, perigoso nos repentes quando bebia um tanto de mais; o Acauã, um roxo esquipático, só de se olhar para ele se via o vulto da guerra; o Mão-de-Lixa, porreteiro, nunca largava um bom cacete, que nas mãos dele era a pior arma; Freitas Macho, grão-mogolense, contava ao senhor qualquer patranha que prouvesse, e assim descrevia, o senhor acabava acreditando que fosse verdade; o Conceiço, guardava numa sacola todo retrato de mulher que ia achando, até recortado de folhinha ou de jornal; José Gervásio, caçador muito bom; José Jitirana, filho dum lugar que se chamava a Capelinha-do-Chumbo! esse sempre dizia que eu era muito parecido com um tio dele, Timóteo chamado; o Preto Mangaba, da Cachoeira-do-Choro, dizia-se que entendia de toda mandraca; JoãoVaqueiro, amigo em tanto, o senhor já sabe; o Coscorão, que tinha sido carreiro de muito ofício, mas constante que era canhoto; o Jacaré, cozinheiro nosso; Cavalcânti, competente sujeito, só que muito soberbo ― se ofendia com qualquer brincadeira ou palavra; o Feliciano, caôlho; o Marruaz, homem desmarcado de forçoso! capaz de segurar as duas pernas dum poldro; Guima, que ganhava em todo jogo de baralho, era do sertão do Abaeté; Jiribibe, quase menino, filho de todos no afetual paternal; o Moçambicão ― um negro enorme, pai e mãe dele tinham sido escravos nas lavras; Jesualdo, rapaz cordato ― a ele fiquei devendo, sem me lembrar de pagar, quantia de dezoito mil-réis; o Jequitinhão, antigo capataz arrieiro, que só se dizia por ditados; o Nelson, que me pedia para escrever carta, para ele mandar para a mãe, em não sei onde moradora; Dimas Doido, que doido mesmo não era, só valente demais e esquentado; o Sidurino, tudo o que ele falava divertia a gente; Pacamã-de-Presas, que queria qualquer dia ir cumprir promessa, de acender velas e ajoelhar adiante, no São Bom Jesus da Lapa; Rasga-em-Baixo, caolho também, com movimentos desencontrados, dizia que nunca tinha conhecido mãe nem pai; o Fafafa, sempre cheirando a suor de cavalo, se deitava no chão e o cavalo vinha cheirar a cara dele; Jõe Bexiguento, sobrenomeado Alparcatas, deste qual o senhor, recital, já sabe; um José Quitério: comia de tudo, até calango, gafanhoto, cobra; um infeliz Treciziano; o irmão de um, José Félix; o Liberato; o Osmundo. E os urucuianos que Zé Bebelo tinha trazido: aquele Pantaleão, um Salústio João, os outros. E ― que ia me esquecendo ― RaymundoLé, puçanguara, entendido de curar qualquer doença, e Quim Queiroz, que da munição dava conta, e o Justino, ferrador e alveitar. A mais, que nos dedos conto: o Pitoló, José Micuim, Zé Onça, Zé Paquera, Pedro Pintado, Pedro Afonso, ZéVital, João Bugre, Pereirão, o Jalapa, Zé Beiçudo, Nestor. E Diodôlfo, o Duzentos, João Vereda, Felisberto, o Testa-em-Pé, Remigildo, o Jósio, Domingos Trançado, Leocádio, Pau-na-Cobra, Simião, Zé Geralista, o Trigoso, o Cajueiro, Nhô Faísca, o Araruta, Durval Foguista, Chico Vosso, Acrísio e o Tuscaninho Caramé. Amostro, para o senhor ver que eu me alembro. Afora algum de que eu me esqueci ― isto é: mais muitos... Todos juntos, aquilo tranquilizava os ares. A liberdade é assim, movimentação. E bastantes morreram, no final. Esse sertão, esta terra.
[…]

Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas