terça-feira, 23 de abril de 2024

Parte IV | 2.


Na entrada do ranário, um guarda afetado bateu continência ao carro do meu primo, parecia ridículo. O portão elétrico se abriu lentamente e o Passat do meu primo entrou devagar. Yuan Bochecha, outrora adivinho e curandeiro, hoje presidente Yuan da Companhia Geral de Criação de Rãs-Touro, já nos aguardava ao pé de uma escultura pretíssima.
Era a estátua de uma rã-touro.
De longe, parecia um veículo blindado de transporte de pessoal.
No revestimento de mármore do pedestal, lia-se: “Rã-touro (Rana catesbeiana), Amphibia, Anura, Ranidae, Rana: produz coaxos sonoros semelhantes ao mugido de um touro, daí seu nome popular”.
Vamos tirar fotos”, sugeriu Yuan Bochecha, “primeiro as fotos, depois a visita e, por fim, o almoço.”
A visão daquela rã colossal me inspirou um temor reverente. Via-se um dorso negro, a boca verde-musgo, cor de ouro no contorno dos olhos. A pele tinha a textura das algas, com verrugas aqui e ali. Aquele par de olhos salientes, sombrios, parecia me trazer notícias de um passado distante.
Jovem Bi! Traga a câmera!”, gritou meu primo.
Uma moça magra de óculos vermelhos e vestido xadrez colorido veio correndo com uma pesada máquina fotográfica.
Jovem Bi é formada em artes pela Universidade Qidong e nossa diretora administrativa”, meu primo disse, nos apresentando a moça.
Além de bonita, é talentosa”, acrescentou Yuan Bochecha. “Ela entende de tudo: canta, dança, tira fotos, faz esculturas. E ainda sabe beber!”
Estou lisonjeada, presidente Yuan”, disse Jovem Bi, corando.
Este meu velho colega de escola também é uma figura importante. Quando menino, era bom na corrida, todo mundo achava que seria campeão mundial, ninguém imaginava que se tornaria dramaturgo.” Yuan Bochecha me apresentou à moça: “Nome oficial: Wan Perna, apelido de infância: Corre Corre, hoje conhecido como Girino”.
Girino é meu pseudônimo literário”, expliquei.
Esta é a esposa do professor Girino, Leoazinha, ginecologista”, disse meu primo, apontando para minha mulher.
Leoazinha, que segurava o boneco de barro, acenou com a cabeça, meio distraída.
O sr. Yuan e o sr. Jin me falaram muito do senhor”, disse Jovem Bi.
A rã número 1 do mundo!”, disse Bochecha. “Esta escultura é da autoria de Jovem Bi”, contou meu primo.
Soltei uma exclamação um tanto exagerada.
Sua crítica terá grande valor para mim, professor Girino.”
Demos a volta em torno da escultura. Fosse qual fosse a minha posição, sentia que aqueles olhos enormes e sombrios podiam me seguir, que estavam olhando para mim.
Terminada a sessão de fotos, fomos com Bochecha, meu primo e Jovem Bi conhecer os viveiros de reprodução, de girinos, de metamorfose e de rãs jovens, assim como as oficinas de processamento de ração e de beneficiamento de produtos ranícolas, nessa ordem.
Depois daquela visita, sonhei muitas vezes com o viveiro de reprodução. É um tanque de aproximadamente quarenta metros quadrados, com mais ou menos meio metro de água turva. Na superfície, os machos, inflando seus papos brancos, emitem um mugido de boi para atrair as fêmeas, e elas, flutuando com as pernas esticadas, vão se aproximando devagar do parceiro. Cada vez mais pares se formam. A fêmea nada com o macho nas costas; o macho usa as patas anteriores para segurar a fêmea e as posteriores para golpear a barriga dela. Massas de ovos transparentes são excretadas pela abertura genital enquanto o macho despeja na água um sêmen transparente — a rã faz fertilização externa —, foi meu primo, ou Bochecha talvez, que explicou — as fêmeas podem eliminar de oito a dez mil ovos por vez, são muito mais capazes que o ser humano. No tanque, o coaxar soa aqui e acolá, a água aquecida pelo sol de abril exala um odor nauseante. É o espaço do romance, da busca de parceiros, mas também o espaço da procriação, da produção de descendência. “Para que as fêmeas liberem mais ovos, colocamos na ração um aditivo que estimula a ovulação.” Coac, coac, coac — buá, buá, buá…
Com os ouvidos cheios de coaxos e a cabeça cheia de rãs, fomos levados a um restaurante com decoração luxuosa.
Duas garçonetes de uniforme rosa nos serviram chá, trouxeram a comida, encheram as taças.
O banquete hoje é só de rãs”, disse Yuan Bochecha.
Dei uma olhada no menu sobre a mesa, que listava: pernas de rã ao sal e pimenta, pele de rã frita, iscas de rã com pimentão, fatias de rã com broto de bambu, girinos ao vinagrete, sopa de ovos de rã com sagu…
Vão me desculpar, mas não como rãs”, eu disse.
Nem eu”, disse Leoazinha.
Mas por quê?”, estranhou Yuan Bochecha, “é uma delícia, por que não experimentam?”
Fiz um esforço para esquecer os olhos esbugalhados, a pele pegajosa, o cheiro desagradável que se desprende de seu corpo, em vão. Balancei a cabeça, angustiado.
Recentemente cientistas sul-coreanos extraíram da pele da rã-touro um peptídeo valiosíssimo, com propriedades antioxidantes, que elimina os radicais livres no corpo humano e age como retardador natural do envelhecimento. E, claro, ainda tem outras propriedades secretas”, disse meu primo Jin Xiu com ar de mistério. “Sobretudo consegue aumentar substancialmente a probabilidade de nascimentos múltiplos.”
Não querem provar um pouco?”, perguntou Yuan Bochecha. “Precisa ser mais ousado! Já teve coragem de comer escorpião, sanguessuga, minhoca e cobra peçonhenta, vai deixar de comer rã-touro?”
Você se esqueceu? Meu pseudônimo é Girino!”
Pois bem! Então retirem todos os pratos da mesa. Mandem a cozinha preparar outros pratos, não façam nada que tenha a ver com rã!”, ordenou Bochecha às garçonetes.
Trouxeram novos pratos à mesa, serviram mais de três rodadas de bebida.
Como você teve a ideia de criar rãs-touro?”, perguntei a Bochecha.
Para fazer fortuna, você precisa pensar em coisas que os outros não pensam!”, disse Bochecha, orgulhoso, enquanto soltava anéis de fumaça.
Mas que talento o seu, hein? Desde menino sempre foi diferente”, falei com algum sarcasmo, imitando a entonação de um conhecido comediante. “Não vejo problema em criar rã-touro, mas não seria um desperdício abandonar as maravilhosas técnicas de retirar prego de bucho de boi e ler a sorte das pessoas na feira?”
Girino, seu patife, você nunca ouviu falar em não bater na cara dos outros e não revelar defeitos alheios?”, protestou Bochecha.
E também tirava DIU com um gancho de ferro”, lembrou Leoazinha friamente.
Ora, minha irmã, isso jamais deve ser lembrado”, disse Bochecha. “Naquele tempo, em primeiro lugar, eu não sabia de nada, em segundo, tinha coração mole e não resistia à insistência daquela mulherada louca para ter filho homem e, terceiro, era a pobreza que me forçava.”
Agora ainda teria coragem de fazer?”, perguntei.
Fazer o quê?”, questionou ele de olhos arregalados.
Tirar DIU!”
Mas que conversa é essa? Acha que tenho memória tão curta? Depois de anos de trabalho forçado, sou um homem refeito”, disse Bochecha, “agora sou um homem digno e ganho meu dinheiro à luz do dia. Faço tudo e qualquer coisa desde que não viole a lei. Não mexo com coisas ilegais nem com uma arma na cabeça.”
Somos uma empresa bem conceituada no município, cumprimos as leis, pagamos os impostos e trabalhamos para o bem público”, explicou meu primo.
Leoazinha não largou o boneco de barro durante toda a refeição.
Qin He, aquele filho da mãe, é que é um gênio de verdade!”, disse Bochecha. “Nunca fazia nada, mas foi só pôr a mão na massa que logo superou Hao Mão Grande.”
Cada obra do mestre Qin cristaliza seu sentimento”, interveio Jovem Bi, que até então só sorria sem dizer nada.
Para moldar bonecos também precisa de sentimentos?”, perguntou Bochecha.
Claro que sim”, respondeu ela. “Cada obra de sucesso é um bebê do artista.”
Então aquela rã-touro também é seu bebê?” Bochecha apontou para a estátua no pátio.
Jovem Bi ficou corada e parou de falar.
Você gosta tanto de bonecos de barro, prima?”, perguntou meu primo.
Não é do boneco de barro que ela gosta, mas de bebês de verdade”, respondeu Bochecha.
Que tal trabalharmos juntos? Você pode ser nosso sócio também”, meu primo disse, animado.
Quer que a gente crie rã-touro com vocês?”, perguntei. “Tenho calafrios só de olhar para esses bichos.”
Mas, primo, não criamos só rã-touro, também…”
Não assuste seu primo”, interrompeu Bochecha, “vamos beber! Meu irmão, ainda se lembra de como o presidente Mao educou a ‘juventude instruída’? O campo é um mundo vasto no qual poderão desenvolver plenamente suas potencialidades!”

Mo Yan, in As rãs

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