terça-feira, 31 de maio de 2022

Concierto de Aranjuez & Corsário | Hamilton de Holanda & João Bosco

Nietzschiana

Meu pai, ah que me esmaga a sensação do nada!
Já sei, minha filha... É atavismo.
E ela reluzia com as mil cintilações do Êxito intacto.

Manuel Bandeira, in Estrela da manhã

Calma, Cláudio

Calma, Cláudio. Eu te amo do jeito que você é. Só queria que você fosse um pouco mais parecido comigo. Eu sei que você é você e eu sou eu. Mas eu preferia que você fosse um pouco mais eu e menos você. Seria mais fácil pra mim. Já tô acostumada a lidar comigo. Quase não brigo comigo mesma. Quando brigo, esqueço rápido. Eu me perdoo com muita facilidade, Cláudio. Se você fosse eu, eu te perdoaria rapidinho.
Calma, Cláudio. Eu te amo do jeito que você é. Mas é que você ficou tão igualzinho a mim. E de mim já basta eu. Eu já não tenho paciência pra mim. Vou ter pra você? Eu sei que você também não prestava quando você era aquela outra pessoa tão diferente de mim. O que eu queria é que você fosse um meio-termo entre aquela outra pessoa que você era e eu. Nem oito nem oitenta, Cláudio.
Calma, Cláudio. É que assim ficou meio meio-termo demais. Eu só queria que você fosse uma pessoa menos meia-terma, uma pessoa menos menas, e fosse uma pessoa mais mais, mais muito, mais muito mais. Eu sei que eu disse nem oito nem oitenta, Cláudio, mas eu estava pensando em oitocentos. Oitocentos e oitenta e oito, Cláudio. Pode ser?
Calma, Cláudio. Assim tá over. Baixa a bola, segura essa onda. Assim parece que cheirou pó. Eu sei que fui eu que mandei você mudar. Mas desse jeito que você tá mudando, dá pra ver que fui eu que mandei você mudar. Queria que você mudasse porque você quis e não porque fui eu que mandei. Eu sei que foi porque você quis mas você só quis porque eu quis que você quisesse. Eu queria que você quisesse ser o que eu queria antes de saber que era assim que eu queria que você fosse. Eu só queria que você fosse uma pessoa que quisesse coisas, Cláudio.
Calma, Cláudio. Estou falando de coisas. Lá foi você querer pessoas. Quem diria, Cláudio. Até você. Correndo atrás de pessoas. Eu sei que eu falei. Mas para de me ouvir. Eu só queria que você fosse uma pessoa que não se importasse tanto em ser a pessoa que eu queria que você fosse. É difícil gostar de uma pessoa que quer tanto ser a pessoa que você gostaria que ela fosse, Cláudio. Calma, Cláudio. Não deixa de se importar comigo assim. Eu só queria que você não deixasse de gostar de mim só porque descobriu que eu não gostava de você do jeito que você era e continuasse gostando igual você gostava antes. O problema é que agora eu comecei a gostar tanto de você, Cláudio. Assim mesmo, do jeito que você é. Volta, Cláudio.

Gregório Duvivier, in Put some farofa

Insistência

 

O açougue do outro lado da rua

No que pensa o açougueiro enquanto corta a carne, no açougue do outro lado da rua?
É o que tentam adivinhar, concentrados, os alunos de filosofia, através da janela aberta da sala de aula.
O aluno sentimental responde à pergunta do professor: pensa na mulher e nos filhos.
O aluno rebelde propõe com ironia: pensa nos cães e nos gatos que não têm nada para comer.
O aluno ambicioso encolhe os ombros e, pragmático, afirma: pensa no lucro com a carne dos animais ainda não abatidos.
E o aluno romântico dispara, sem enganos: pensa nas flores e no mar!...
O professor enfileira as respostas e todos os alunos engordam com a certeza: agora sabem no que pensa o açougueiro enquanto corta a carne!

Radomir Andric, in Exceto uma coisa

Copacabana | Braguinha e Alberto Ribeiro, 1946


Muito antes de Tom e Vinicius apresentarem a vizinha Ipanema ao mundo, Braguinha (ou João de Barro) e Alberto Ribeiro (1902-1971) criaram este hino de louvor para a “Princesinha do Mar”. Lançado em disco por Dick Farney, em 1946, com arranjo para orquestra de Radamés Gnattali, “Copacabana” era um samba diferente, moderno para a época, ganhando um tratamento sofisticado, que, somado ao canto cool de Farney, em muitos aspectos antecipou a estética minimalista da bossa nova.
O grande sucesso, dominando as paradas brasileiras por mais de um ano, veio acompanhado de acusações de plágio. A melodia do samba-canção lembra vagamente o início de “I’ll remember April” (Gene de Paul, Patricia Johnston e Don Raye), lançada na trilha sonora de um filme de 1942 da dupla de comediantes Abbott & Costello, Ride ‘em Cowboy (que no Brasil ganhou o título de Cavaleiros da galhofa). Braguinha não seria estúpido de “plagiary” logo um popularíssimo standard americano. Coincidência ou não, “Copacabana” foi escrita em 1944, para um musical que não chegou a ser montado, e teve como ponto de partida outra composição da dupla Braguinha e Ribeiro. É um samba curto, com apenas 12 versos que exaltam as belezas da praia carioca: “Nenhuma tem o encanto / que tu possuis.”
O impacto inicial de “Copacabana” deve ser creditado também à interpretação magistral do pianista e cantor Dick Farney (1921-1987). Nascido no Rio de Janeiro como Farnésio Dutra e Silva, ele teve formação clássica e era apaixonado pelo jazz. Até gravar este samba-canção, após muita insistência de Braguinha, Farney só cantava em inglês. Entre os anos de 1947 e 1948, ele chegou a viver e trabalhar nos Estados Unidos, onde, entre outros compromissos, foi contratado como cantor fixo no programa de rádio do comediante Milton Berle. Com os sucessos de “Copacabana” e “Marina” (esta de Dorival Caymmi), que ele tinha gravado para a Continental antes de se radicar nos EUA, Farney voltou ao Brasil, ajudando a plantar as sementes da bossa nova.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

Uma estranha charada

E esta — disse Jane Helier, completando suas apresentações — é miss Marple!
Como atriz, ela conseguiu atingir seu intento. Era claramente o clímax, o gran finale triunfal! Seu tom era uma mistura de admiração reverente e triunfo.
O estranho é que o objeto tão orgulhosamente proclamado era apenas uma velhota solteirona, afável, detalhista. Os olhos dos dois jovens que haviam sido recém-apresentados a ela pelos bons ofícios de Jane, mostraram incredulidade e um traço de desalento.
Eram pessoas de boa aparência; a moça, Charmian Stroud, esbelta e morena; o homem, Edward Rossiter, um jovem gigante, amável e de cabelos loiros.
Oh! Estamos muito felizes de conhecê-la! — Charmian disse de um fôlego.
Mas havia dúvida em seus olhos. Ela lançou um olhar rápido e inquiridor a Jane Helier.
Querida — disse Jane respondendo ao olhar —, ela é absolutamente maravilhosa. Deixe tudo com ela. Eu lhe disse que a traria aqui e trouxe — e acrescentou para miss Marple: — Você vai resolver para eles, eu sei. Vai ser fácil para você.
Miss Marple virou seus plácidos olhos azul-turquesa para mr. Rossiter.
Poderia me dizer — ela perguntou — do que se trata tudo isso?
Jane é uma amiga nossa — interrompeu Charmian ardendo de impaciência. — Edward e eu estamos numa encrenca. A Jane disse que se pudéssemos vir à sua festa, ela nos apresentaria a alguém que ia... que iria... que poderia...
Edward veio em seu socorro:
A Jane nos contou que a senhora é a fina flor dos detetives, miss Marple!
Os olhos da velha senhora reluziram, mas ela protestou modestamente:
Oh, não, não! Nada disso. Ocorre que vivendo numa cidadezinha como a que eu vivo, a gente acaba conhecendo bem a natureza humana. Mas vocês me deixaram realmente curiosa. Contem-me qual é o problema de vocês.
Temo que seja terrivelmente banal... apenas um tesouro enterrado — disse Edward.
Mesmo? Mas isso parece muito excitante!
Eu sei. Como A Ilha do Tesouro. Mas nosso problema não tem os toques românticos usuais. Nenhum ponto num mapa indicado por uma caveira e ossos cruzados, nenhuma orientação como “quatro passos para a esquerda, oeste por norte”. É terrivelmente prosaico... indica apenas onde nós devemos cavar.
Vocês já tentaram?
Posso dizer que cavamos cerca de oito quilômetros quadrados! O local está pronto para virar uma horta comercial. Só estamos discutindo se vamos plantar abobrinhas ou batatas.
Charmian o cortou bruscamente:
Que acha de lhe contar logo tudo sobre o caso?
Mas, claro, minha querida.
Então vamos encontrar um lugar calmo. Venha, Edward.
Ela abriu caminho pela sala apinhada de gente e repleta de fumaça, e eles subiram a escada até uma saleta de estar no segundo andar.
Mal eles se sentaram, Charmian começou intempestivamente:
Bem, aí vai! A história começa com o tio Mathew, tio, ou melhor, tio-avô de nós dois. Ele era muito velho. Edward e eu éramos seus únicos parentes. Ele gostava de nós e sempre declarou que quando morresse deixaria seu dinheiro para nós dois. Bem, ele morreu em março passado e deixou tudo que tinha para ser dividido igualmente entre Edward e eu. O que acabei de dizer parece rude... não quis dizer que foi bom que ele tenha morrido... na verdade, nós éramos muito afeiçoados a ele, mas já fazia algum tempo que ele estava doente.
A questão é que o “tudo” que ele deixou se revelou, na prática, absolutamente nada. E isso, francamente, foi um pequeno golpe para nós dois, não foi, Edward?
O amável Edward concordou.
Sabe — ele disse —, nós contávamos um bocado com isso. Isto é, quando a gente sabe que vai receber uma bolada de dinheiro, a gente... bem... não se empenha para ganhar a vida por conta própria. Eu estou no Exército e não recebo nada além do meu soldo, a Charmian não tem um tostão. Trabalha como contrarregra num teatro de repertório. Muito interessante, e ela gosta, mas dinheiro que é bom, nada. Nós contávamos em nos casar, mas não estávamos preocupados com o lado pecuniário porque sabíamos que ficaríamos muito bem de vida algum dia.
E agora, como vê, não ficamos! — disse Charmian. — Além disso, Ansteys é a propriedade da família, e Edward e eu a amamos, e provavelmente teremos que vendê-la. E Edward e eu sentimos que não conseguiremos suportar isso! Mas se não acharmos o dinheiro do tio Mathew, teremos de vender.
Sabe, Charmian, ainda não chegamos ao ponto vital — disse Edward.
Bem, fale você, então.
Edward virou-se para miss Marple.
É o seguinte. À medida que envelhecia, o tio Mathew foi ficando cada vez mais cismado. Ele não confiava em ninguém.
Muito sábio da parte dele — disse miss Marple. — A depravação da natureza humana é inacreditável.
Bem, a senhora pode ter razão. Seja como for, o tio Mathew pensava assim. Ele tinha um amigo que perdeu todo seu dinheiro em um banco, e outro que foi arruinado por um advogado fujão, e ele próprio perdeu algum dinheiro numa companhia fraudulenta. Ele chegou ao ponto de sustentar, durante muito tempo, que a única coisa segura a fazer era converter seu dinheiro em lingotes sólidos e enterrá-lo.
Ah — exclamou miss Marple —, começo a entender.
Sim. Amigos discutiram com ele, apontaram que ele não receberia nenhum juro dessa maneira, mas ele sustentava que isso realmente não tinha importância. O grosso do seu dinheiro, ele dizia, deveria ser “mantido numa caixa debaixo da cama ou enterrado no jardim”. Essas foram suas palavras.
E quando ele morreu — Charmian prosseguiu —, não deixou quase nada em ações, embora fosse muito rico. De modo que nós pensamos que foi isso que ele deve ter feito.
Descobrimos que ele tinha vendido ações e sacado grandes somas de dinheiro de tempos em tempos, e ninguém sabe o que fez com elas. Mas parece provável que ele tenha vivido de acordo com seus princípios, comprado ouro e o enterrado — Edward explicou.
Ele não disse nada antes de morrer? Deixou algum papel? Alguma carta?
Essa é a parte desesperadora da coisa. Não deixou. Ficou inconsciente por alguns dias, mas se reanimou antes de morrer. Ele olhou para nós e deu uma risadinha... uma risadinha fraca, apagada. Ele disse “Vocês ficarão bem, meu lindo casal de pombinhos”. E aí ele deu um tapinha no olho, seu olho direito, e piscou para nós. E logo em seguida... morreu. Pobre tio Mathew.
Ele deu um tapinha no olho — disse miss Marple pensativa.
Edward disse ansiosamente:
Isso faz algum sentido para a senhora? Me fez lembrar uma história de Arsène Lupin em que havia alguma coisa oculta no olho de vidro de um homem. Mas o tio Mathew não tinha um olho de vidro.
Miss Marple abanou a cabeça.
Não... não consigo pensar em nada por enquanto.
A Jane nos disse que a senhora indicaria na hora onde cavar! — Charmian disse, decepcionada.
Miss Marple sorriu.
Não sou tão feiticeira, sabe. Não conheci o seu tio, ou que tipo de homem ele era, e não conheço a casa ou o terreno.
E se os conhecesse? — Charmian disse.
Bem, deve ser bem simples, de fato, não deve? — disse miss Marple.
Simples! — disse Charmian. — Venha até Ansteys e veja se é simples!
É possível que ela não tenha feito o convite a sério, mas miss Marple disse prontamente:
Bem, minha querida, é muita gentileza sua. Eu sempre quis ter a chance de procurar um tesouro escondido. E — acrescentou, olhando para eles com um sorriso pudico radiante — com um interesse amoroso, também!
Viu só! — disse Charmian, gesticulando dramaticamente.
Eles haviam terminado um grande giro por Ansteys. Haviam contornado a horta, totalmente revirada. Haviam atravessado os pequenos bosques, onde o entorno de cada árvore importante fora escavado, e observado entristecidos a superfície esburacada do antes liso gramado. Haviam subido até o sótão, onde velhos baús e arcas haviam sido pilhados de seus conteúdos. Haviam descido aos porões, onde ladrilhos do piso haviam sido arrancados deliberadamente de seus encaixes. Haviam feito medições e dado pancadinhas em paredes, e haviam mostrado a miss Marple cada peça de mobília antiga que continha ou poderia ser suspeita de conter uma gaveta secreta.
Sobre uma mesa na sala de desjejum havia uma pilha de papéis, todos os papéis que o falecido Mathew Stroud havia deixado. Nenhum fora destruído, e Charmian e Edward criaram o hábito de voltar a eles a todo momento, vasculhando atentamente contas, convites e correspondência comercial na esperança de topar com uma pista que passara despercebida.
Consegue pensar em algum lugar que não olhamos? — perguntou Charmian, esperançosa.
Miss Marple abanou a cabeça.
Parece que vocês foram muito meticulosos, minha querida. Talvez, se posso dizer, um tantinho meticulosos demais. Sabem, eu sempre penso que é preciso ter um plano. É como minha amiga, mrs. Eldritch, ela tinha uma ótima criadinha que lustrava lindamente o linóleo, mas ela era tão meticulosa que lustrava demais o piso do banheiro, e, um dia, quando mrs. Eldritch estava saindo do banho o capacho de cortiça escorregou sob seus pés, e ela teve uma queda muito feia, aliás, quebrou a perna! Muito embaraçoso, porque a porta do banheiro estava trancada, é claro, e o jardineiro teve de pegar uma escada e entrar pela janela... terrivelmente angustiante para mrs. Eldritch, que sempre foi uma mulher muito recatada.
Edward se remexia sem parar.
Por favor, me perdoe — miss Marple disse rapidamente. — Tenho a mania, eu sei, de sair pela tangente. Mas uma coisa puxa outra. E às vezes isto é útil. O que eu estava tentando dizer é que talvez se nós tentássemos aguçar nossa sagacidade e pensar num lugar provável...
Edward cortou sua fala:
Pense em um, miss Marple. Os cérebros da Charmian e o meu agora são lindos vazios!
Querido, querida. É claro... é estafante para vocês. Se não se importam, vou dar uma espiada em tudo isso — ela apontou para os papéis sobre a mesa. — Isto é, se não houver nada privado... não quero parecer uma bisbilhoteira.
Oh, tudo bem. Mas temo que não encontrará nada.
Ela sentou-se à mesa e examinou metodicamente o maço de documentos. Ao recolocar cada um no lugar, ela os separava automaticamente em montículos. Quando terminou, ficou sentada olhando para frente por alguns minutos.
Edward perguntou, não sem um traço de malícia:
E então, miss Marple?
Miss Marple voltou a si com um pequeno sobressalto.
Desculpe-me. Muito proveitoso.
Descobriu alguma coisa relevante?
Oh, não, nada disso, mas acredito que sei que tipo de homem era seu tio Mathew. Muito parecido com meu próprio tio Henry, eu creio. Gosta de piadas bem óbvias. Um solteiro, evidentemente... me pergunto por quê... talvez uma decepção antiga? Metódico até certo ponto, mas não muito afeito a se amarrar... poucos solteiros são assim!
Pelas costas de miss Marple, Charmian fez um sinal para Edward. O sinal dizia: Ela está gagá.
Miss Marple continuara a falar alegremente de seu falecido tio Henry.
Gostava muito de trocadilhos, e como. E, para algumas pessoas, trocadilhos são uma chatice. Um mero jogo de palavras pode ser muito irritante. Era um homem desconfiado, também. Estava sempre convencido de que a criadagem o estava roubando. E, às vezes, é claro, ela estava, mas não sempre. A coisa se apoderou dele, pobre homem. Perto do fim, ele suspeitava que estivessem adulterando a sua comida, e finalmente se recusou a comer qualquer coisa exceto ovos cozidos! Querido tio Henry, ele foi uma alma tão alegre numa época. Gostava muito de seu café após o jantar. Ele sempre dizia “Este café é bem mourisco”, querendo dizer, entendem, que gostaria de um pouco mais.
Edward sentiu que se ouvisse mais alguma coisa sobre o tio Henry ficaria louco.
Gostava de pessoas jovens também — prosseguiu miss Marple —, mas tendia a arreliá-las um pouco, se entendem o que eu digo. Costumava pôr sacos de doces onde uma criança simplesmente não conseguiria alcançá-los.
Deixando a polidez de lado, Charmian disse:
Ele me parece horrível!
Oh, não, querida, apenas um velho solteirão, sabe, e pouco acostumado com crianças. E ele não era nada estúpido, aliás. Costumava guardar uma boa quantia de dinheiro na casa, e tinha um cofre para colocá-lo. Fazia um estardalhaço sobre ele... sobre como ele era seguro. De tanto ele falar, ladrões entraram uma noite e abriram um buraco no cofre com um dispositivo químico.
Bem feito para ele — disse Edward.
Oh, mas não havia nada no cofre — disse miss Marple. — Percebem, ele na verdade guardava o dinheiro em alguma outra parte... atrás de alguns volumes de sermões na biblioteca, aliás. Dizia que as pessoas jamais tiravam um livro daquele tipo da estante!
Edward a interrompeu excitadamente:
Eu digo, é uma ideia e tanto. Que tal a biblioteca?
Mas Charmian abanou a cabeça com desdém.
Acha que não pensei nisso? Verifiquei todos os livros na terça-feira da semana passada, quando você foi a Portsmouth. Tirei-os para fora, sacudi cada um. Nada ali.
Edward suspirou. Depois, levantando-se, ele tratou de se livrar diplomaticamente de sua decepcionante convidada.
Foi extrema bondade sua ter vindo como veio e tentado nos ajudar. Pena que tenha sido tudo um fracasso. Sinto termos tomado tanto tempo seu. Mas... vou tirar o carro, e a senhora poderá pegar o trem das três e meia...
Oh — disse miss Marple —, mas nós precisamos encontrar o dinheiro, não é? Não deve desistir, mr. Rossiter. “Se de inicio não consegues, tenta, tenta, tenta de novo.”
Quer dizer que vai... continuar tentando?
Estritamente falando — disse miss Marple —, ainda não comecei. “Primeiro pegue sua lebre...”, como diz mrs. Beaton em seu livro de culinária... um livro maravilhoso, mas extremamente caro; a maioria das receitas começa com “Pegue um quarto de creme de leite e uma dúzia de ovos”. Deixe-me ver, onde é que eu estava? Oh, sim. Bem, por assim dizer, nós pegamos nossa lebre, sendo a lebre, é claro, seu tio Mathew, só nos restando decidir agora onde ele teria escondido o dinheiro. Deve ser bem simples.
Simples? — perguntou Charmian.
Oh, sim, querida. Estou certa de que ele teria feito a coisa óbvia. Uma gaveta secreta, esta é a minha solução.
Edward disse secamente:
Não se podem pôr barras de ouro numa gaveta secreta.
Não, não, claro que não. Mas não há razão para acreditar que o dinheiro esteja em barras de ouro.
Ele sempre costumava dizer...
O mesmo fazia meu tio Henry sobre o seu cofre! De modo que eu deveria suspeitar fortemente de que isso era apenas um subterfúgio. Diamantes... estes sim poderiam estar facilmente numa gaveta secreta.
Mas nós olhamos em todas as gavetas secretas. Chamamos um carpinteiro para examinar os móveis.
Chamaram, querida? Foi muito inteligente da sua parte. Eu sugeriria que a escrivaninha pessoal de seu tio seria o mais provável. Seria aquela alta encostada lá na parede?
Sim. E vou lhe mostrar — Charmian foi até o móvel e abriu o tampo. Dentro havia escaninhos e pequenas gavetas. Ela abriu então uma portinhola no centro e tocou numa mola dentro da gaveta da esquerda. O fundo do recesso central deu um estalo e deslizou para frente. Charmian o puxou para fora, revelando um pequeno espaço oco embaixo.
Ele estava vazio.
Mas não é uma coincidência? — exclamou miss Marple. — O tio Henry tinha uma escrivaninha igualzinha a essa, só que a dele era de nogueira e esta é de mogno.
Seja como for — disse Charmian —, não há nada ali, como pode ver.
Imagino — disse miss Marple — que seu carpinteiro era um jovem. Ele não sabia tudo. As pessoas eram muito habilidosas quando faziam esconderijos naqueles tempos. Havia como que um segredo dentro de um segredo.
Ela tirou um grampo de seu coque bem arrumado de cabelos grisalhos. Endireitando-o, ela enfiou a ponta no que parecia um minúsculo buraco de cupim em um lado do recesso secreto. Com alguma dificuldade, ela puxou uma gavetinha. Nela havia um maço de cartas desbotadas e um papel dobrado.
Edward e Charmian saltaram juntos sobre o achado. Com os dedos tremendo, Edward desdobrou o papel. Ele o deixou cair com uma exclamação de desgosto.
Uma droga de receita de culinária. Presunto assado!
Charmian estava desatando uma fita que amarrava o maço de cartas.
Ela tirou uma e deu uma olhada. — Cartas de amor!
Miss Marple reagiu com entusiasmo vitoriano:
Que coisa interessante! Talvez a razão porque seu tio nunca se casou.
Charmian leu em voz alta:

Meu sempre querido Mathew, devo confessar que parece que faz muito tempo que recebi sua última carta. Tento me ocupar com as várias tarefas que me foram conferidas, e amiúde digo a mim que sou mesmo uma afortunada de ver tanta coisa do globo, embora tivesse pouca ideia de que quando fosse para a América viajaria para estas ilhas distantes!

Charmian fez uma pausa:
De onde ela veio? Oh! Havaí! — e prosseguiu:

Estes nativos, coitados, ainda estão longe de ver a luz. Ainda vivem num estado selvagem e despidos, e passam a maior parte do tempo nadando e dançando, adornando-se com guirlandas de flores. Mr. Gray fez algumas conversões, mas é um trabalho árduo, e ele e mrs. Gray ficam tristemente desencorajados. Tento fazer tudo que posso para animá-lo e encorajá-lo, mas eu também fico com frequência triste por uma razão que você pode imaginar, querido Mathew. A ausência é uma provação severa para um coração que ama. Seus renovados votos e protestos de afeição me alegraram enormemente. Agora e sempre você tem meu fiel e devotado coração, querido Mathew, e eu continuo sendo o seu sincero amor, Betty Martin.
PS — Endereço minha carta protegida para nossa amiga mútua, Matilda Graves, como sempre. Espero que Deus me perdoe esse pequeno subterfúgio.

Edward assobiou:
Uma missionária! Então era esse o romance do tio Mathew. Fico tentando imaginar por que eles nunca se casaram.
Ela parece ter viajado pelo mundo todo — disse Charmian, examinando as cartas. — Ilha Maurício... toda sorte de lugares. Provavelmente morreu de febre amarela ou algo assim.
Uma risadinha suave os sobressaltou. Miss Marple estava aparentemente se divertindo muito.
Bem, bem — disse ela. — Quem diria!
Ela estava lendo a receita de presunto assado. Ao notar seus olhares curiosos, ela leu em voz alta:
Presunto assado com espinafre. Pegue uma bonita peça de presunto, recheie-a com cravos, e cubra com açúcar mascavo. Asse em forno baixo. Sirva rodeado por purê de espinafre. O que acham disso, agora?
Penso que parece horrível — disse Edward.
Não, não, na verdade seria muito bom... mas o que pensam da coisa toda?
Um súbito raio de luz iluminou a face de Edward.
Acha que é um código... algum tipo de criptograma? — ele comprou a ideia. — Sabe, Charmian, poderia ser, não é? Se não, por que colocar uma receita de culinária numa gaveta secreta?
Exatamente — disse miss Marple. — Muito, muito significativo.
Eu sei o que pode ser — disse Charmian. — Tinta invisível! Vamos aquecê-lo. Ligue o fogão elétrico.
Edward assim fez, mas não surgiram sinais de escrita com o tratamento.
Miss Marple tossiu.
O que eu realmente penso, sabem, é que vocês estão complicando demais a coisa. A receita é apenas um indício, por assim dizer. Creio que as cartas é que são mais significativas.
As cartas?
Em especial — disse miss Marple —, a assinatura.
Mas Edward mal a ouviu e chamou cheio de excitação:
Charmian! Venha aqui! Ela está certa. Veja... os envelopes são velhos, isso é fato, mas as cartas foram escritas muito depois.
Exatamente — disse miss Marple.
Elas são falsamente velhas apenas. Aposto qualquer coisa que o velho tio Mat as falsificou pessoalmente...
Exatamente — disse miss Marple.
A coisa toda é um embuste. Nunca existiu uma missionária. Deve ser um código.
Minhas caras, caras crianças... não há mesmo nenhuma necessidade de tornar tudo tão difícil. Seu tio era de fato um homem muito simples. Ele teve de fazer sua piadinha, apenas isso.
Pela primeira vez eles lhe prestaram inteira atenção.
O que exatamente quer dizer, miss Marple? — perguntou Charmian.
Quero dizer, querida, que você está segurando o dinheiro em sua mão neste minuto.
Charmian olhou para baixo.
A assinatura, querida. Isso revela tudo. A receita é apenas um indício. Retire todos os cravos, o açúcar mascavo e o resto todo. O que ela é de fato? Ora, presunto e espinafre, é claro! Presunto e espinafre! Significando... bobagem! Então está claro que as cartas é que são importantes. E aí se você levar em consideração o que seu tio fez pouco antes de morrer. Ele deu uma batidinha no olho, você disse. Bem, aí está... isso lhe dá a pista, percebe.
Nós estamos loucos, ou a senhora está? — Charmian disse.
Seguramente, minha querida, você deve ter ouvido a expressão “por fora bela viola, por dentro pão bolorente”, ou ela já terá caído em desuso? Que incrível!
Edward arquejou, seus olhos fitavam a carta em sua mão:
Betty Martin...
Claro, mr. Rossiter. Como disse agora há pouco... não havia tal pessoa. As cartas foram escritas por seu tio, e eu imagino que ele se divertiu um bocado ao escrevê-las! Como diz, a escrita nos envelopes é muito mais antiga... aliás, o envelope não poderia pertencer às cartas, de todo modo, porque o carimbo postal da que você está segurando é de 1851 — ela fez uma pausa. E prosseguiu enfaticamente: — Mil oitocentos e cinquenta e um. E isso explica tudo, não é?
Não para mim — disse Edward.
Bem, é claro — disse miss Marple. — Ouso dizer que não significaria para mim não fosse meu sobrinho-neto Lionel. Um garotinho tão querido e um apaixonado colecionador de selos. Sabe tudo sobre selos. Foi ele que me contou sobre os selos raros e caros e que uma maravilhosa nova descoberta fora colocada em leilão. E eu me lembro de ele mencionar um selo — um azul de dois cents de mil oitocentos e cinquenta e um. Ele saiu por algo em torno de vinte e cinco mil dólares, creio. Caramba! Eu devia imaginar que os outros selos são também raros e valiosos. Seu tio seguramente os comprou por meio de intermediários e cuidadosamente “encobriu suas pegadas” como dizem em histórias policiais.
Edward gemeu e enterrou o rosto nas mãos.
O que foi? — perguntou Charmian.
Nada. Foi só o pensamento horrível de que, não fosse por miss Marple, nós poderíamos ter queimado estas cartas por decente cavalheirismo.
Ah — disse miss Marple —, é precisamente isso que esses velhos cavalheiros piadistas não percebem. O tio Henry, lembram, enviou a sua sobrinha favorita uma nota de cinco libras de presente de Natal. Ele a colocou num cartão de Natal, selou o cartão com goma, e escreveu nele “Amor e boas festas. Lamento que isso seja tudo que posso lhe dar este ano”. Ela, pobre menina, ficou aborrecida com o que achou que fosse sovinice da parte dele e o atirou direto no fogo; aí, é claro, ele teve de dar-lhe outra.
Os sentimentos de Edward para com o tio Henry haviam sofrido uma brusca e completa mudança.
Miss Marple — disse. — Vou buscar uma garrafa de champanhe. Beberemos à saúde do seu tio Henry.

Agatha Christie, in Três ratos cegos e outros contos

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Chico César e Zeca Baleiro | Respira

Inimigos em casa

Que a família está em crise ninguém se atreverá a negá-lo, por muito que a Igreja Católica tente disfarçar o desastre sob a capa de uma retórica melíflua que já nem a ela própria engana, que muitos dos denominados valores tradicionais de convivência familiar e social se foram pelo cano abaixo arrastando consigo até aqueles que deveriam ter sido defendidos dos contínuos ataques desferidos pela sociedade altamente conflitiva em que vivemos, que a escola moderna, continuadora da escola velha, aquela que, durante sucessivas gerações, foi tacitamente encarregada, à falta de melhor, de suprir as falhas educacionais dos agregados familiares, está paralisada, acumulando contradições, erros, desorientada entre métodos pedagógicos que em realidade não o são, e que, demasiadas vezes, não passam de modas passageiras ou de experimentos voluntaristas condenados ao fracasso pela própria ausência de madurez intelectual e pela dificuldade de formular e responder à pergunta, essencial em minha opinião: que cidadão estamos a querer formar? O panorama não é agradável à vista. Singularmente, os nossos mais ou menos dignos governantes não parecem preocupar-se com estes problemas tanto quanto deveriam, talvez porque pensam que, sendo os ditos problemas universais, a solução, quando vier a ser encontrada, será automática, para toda a gente.
Não estou de acordo. Vivemos numa sociedade que parece ter feito da violência um sistema de relações. A manifestação de uma agressividade que é inerente à espécie que somos, e que em tempos pensámos, pela educação, haver controlado, irrompeu brutalmente das profundidades nos últimos vinte anos em todo o espaço social, estimulada por modalidades de ócio que viraram as costas ao já simples hedonismo para se transformarem em agentes condicionadores da própria mentalidade do consumidor: a televisão, em primeiro lugar, onde imitações de sangue, cada vez mais perfeitas, saltam em jorros a todas as horas do dia e da noite, os vídeo-jogos que são como manuais de instruções para alcançar a perfeita intolerância e a perfeita crueldade, e, porque tudo isto está ligado, as avalanchas de publicidade de serviços eróticos a que os jornais, incluindo os mais bem-pensantes, dão as boas-vindas, enquanto nas páginas sérias (são-no algumas?) abundam hipocritamente em lições de boa conduta à sociedade. Que estou a exagerar? Expliquem-me então como foi que chegámos à situação de muitos pais terem medo dos filhos, desses gentis adolescentes, esperanças do amanhã, em quem um “não” do pai ou da mãe, cansados de exigências irracionais, instantaneamente desencadeia uma fúria de insultos, de vexames, de agressões. Físicas, para que não fiquem dúvidas. Muitos pais têm os seus piores inimigos em casa: são os seus próprios filhos. Ingenuamente, Ruben Darío escreveu aquilo da “juventud, divino tesoro”. Não o escreveria hoje.

José Saramago, in O caderno

O provedor de iniquidades Monk Eastman


OS DESTA AMÉRICA

Bem perfilados diante de um fundo de paredes azul-celeste ou do céu aberto, dois compadritos resguardados em séria roupa negra dançam com sapatos de mulher uma dança gravíssima, que é a das facas parecidas, até que de uma orelha salta um cravo porque o punhal penetrou num homem que encerra com sua morte horizontal o baile sem música. Resignado, o outro acomoda o chapéu e consagra a velhice à narração daquele duelo tão limpo. Essa é a história detalhada e completa de nossa canalha. A dos valentões de Nova York é mais vertiginosa e mais desastrada.

OS DA OUTRA

A história das gangues de Nova York (revelada em 1928 por Herbert Asbury num decoroso volume de quatrocentas páginas in-oitavo) tem a confusão e a crueldade das cosmogonias bárbaras, e muito de sua gigantesca inépcia: porões de antigas cervejarias habilitados para cortiços de negros, uma raquítica Nova York de três andares, bandos de pilantras como os Anjos do Pântano (Swamp Angels) que andavam à espreita entre labirintos de cloacas, bandos de delinquentes como os Daybreak Boys (Garotos da Alvorada) que recrutavam assassinos precoces de dez e onze anos, gigantes solitários e descarados Cartolas Ferozes (Plug Uglies) que buscavam o inverossímil riso do próximo com o firme chapéu de copa alta cheio de lã e as fraldas da camisa ondeantes no vento do subúrbio, mas com um porrete na mão direita e um pau de fogo enorme; bandos de marginais como os Coelhos Mortos (Dead Rabbits) que iam para a briga sob a insígnia de um coelho morto na ponta de um pau; homens como Johnny Dolan, o Dândi, famoso pelo topete besuntado sobre a testa, pelas bengalas com cabeça de macaco e pelo fino apetrecho de cobre que costumava usar no polegar para vazar os olhos do adversário; homens como Kit Burns, capaz de decapitar com uma única mordida um rato vivo; homens como Blind Danny Lyons, rapaz loiro de imensos olhos mortos, rufião de três rameiras que circulavam com orgulho por ele; filas de casas com lampião vermelho, como as dirigidas pelas sete irmãs da Nova Inglaterra, que destinavam os ganhos da noite de Natal à caridade; rinhas de ratos famélicos e de cães; casas de jogo chinesas; mulheres como as várias vezes viúva Red Norah, amada e ostentada por todos os varões que dirigiram a gangue dos Gophers; mulheres como Lizzie the Dove, que ficou de luto quando executaram Danny Lyons e morreu degolada por Gentle Maggie, que disputou com ela a antiga paixão do finado homem cego; motins como o de uma semana selvagem de 1863, quando foram incendiados cem edifícios e que quase tomam conta da cidade; combates de rua nos quais um homem se perdia como no mar porque o pisoteavam até a morte; ladrões e envenenadores de cavalo como Yoske Nigger — tecem aquela caótica história. Seu herói mais famoso é Edward Delaney, aliás, William Delaney, aliás, Joseph Marvin, aliás, Joseph Morris, aliás, Monk Eastman, chefe de mil e duzentos homens.

O HERÓI

Esses disfarces graduais (penosos como um jogo de máscaras em que não se sabe ao certo quem é quem) omitem seu nome verdadeiro — se é que nos atrevemos a pensar que haja tal coisa no mundo. A verdade é que no registro civil de Williamsburg, Brooklyn, o nome é Edward Ostermann, americanizado em Eastman mais tarde. Coisa estranha, aquele bandido tempestuoso era judeu. Descendia de um dono de restaurante dos que anunciam kosher, onde varões de barbas rabínicas podem assimilar sem perigo a carne dessangrada e três vezes limpa de vitelas degoladas com retidão. Aos dezenove anos, por volta de 1892, abriu com auxílio do pai uma loja de pássaros. Investigar a vida dos animais, observar suas pequenas decisões e sua inescrutável inocência, foi uma paixão que o acompanhou até o final. Em épocas de esplendor posteriores, quando recusava com desdém os charutos de folha dos sardentos sachems de Tammany ou visitava os melhores prostíbulos num coche, espécie precoce de automóvel que parecia o filho natural de uma gôndola, abriu uma segunda e falsa casa de comércio que hospedava cem gatos finos e mais de quatrocentas pombas que não estavam à venda para qualquer um. Gostava deles individualmente e costumava percorrer a pé seu território com um gato feliz no braço, e outros que o seguiam enciumados.
Era um homem em ruínas e monumental. O pescoço era curto, como de touro, o peito inexpugnável, os braços lutadores e longos, o nariz quebrado, o rosto embora marcado de cicatrizes menos importante que o corpo, as pernas arqueadas como as de ginete ou de marinheiro. Podia prescindir de camisa como também de paletó, mas não de uma cartolinha de abas curtas sobre a cabeça ciclópica. Os homens cuidam de sua memória. Fisicamente, o pistoleiro convencional dos filmes é um arremedo dele, não do ambivalente e balofo Capone. De Wolheim dizem que o empregaram em Hollywood porque seus traços aludiam diretamente ao do deplorado Monk Eastman… Este saía para percorrer seu império celerado com uma pomba de penas azuis no ombro, feito um touro com um bem-te-vi no lombo.
Por volta de 1894, eram numerosos os salões de baile público na cidade de Nova York. Eastman foi encarregado de manter a ordem num deles. Conta a lenda que o empresário não o quis receber e que Monk demonstrou sua capacidade demolindo com fragor o par de gigantes que detinham o emprego. Exerceu-o até 1899, temido e só.
Para cada arruaceiro que ele serenava, fazia com a faca uma marca no brutal porrete. Certa noite, uma calva resplandecente que se inclinava sobre um bock de cerveja chamou sua atenção, e desfaleceu-a com uma cacetada. “Me faltava uma marca para cinquenta!”, exclamou depois.

O MANDO

Desde 1899, Eastman não era apenas famoso. Era mandachuva eleitoral de uma zona importante, e recebia fortes subsídios das casas de lampião vermelho, das casas de jogo, de mulheres da rua e de ladrões daquele sórdido feudo. Os comitês consultavam-no para organizar diretórios, e também os particulares. Eis aqui seus honorários: quinze dólares por uma orelha arrancada; dezenove por uma perna quebrada; vinte e cinco por um tiro numa perna; vinte e cinco por uma punhalada; cem pelo negócio todo. Às vezes, para não perder o costume, Eastman executava pessoalmente uma encomenda.
Uma questão de limites (sutil e enfezada como as outras que o direito internacional posterga) colocou-o diante de Paul Kelly, famoso capitão de outro bando. Tiros e entreveros das patrulhas tinham determinado uma fronteira. Eastman atravessou-a num amanhecer e foi acometido por cinco homens. Com aqueles braços vertiginosos de macaco e com o porrete fez dançar três, mas lhe meteram duas balas no abdômen e abandonaram-no como morto. Eastman segurou a ferida quente com o polegar e o índice e caminhou com passos de bêbado até o hospital. A vida, a febre alta e a morte disputaram-no por várias semanas, mas seus lábios não se rebaixaram a delatar ninguém. Quando saiu, a guerra era um fato e floresceu em contínuos tiroteios até 19 de agosto de 1903.

A BATALHA DE RIVINGTON

Uns cem heróis vagamente diferentes das fotografias que esmaecerão nos prontuários, uns cem heróis saturados de fumaça de tabaco e álcool, uns cem heróis de chapéu de palha com fita colorida, uns cem heróis afetados uns mais que outros por doenças vergonhosas, cáries, males das vias respiratórias ou do rim, uns cem heróis tão insignificantes ou esplêndidos como os de Troia ou Junín, travaram esse denigrido feito de armas à sombra dos arcos do Elevated. A causa foi o tributo exigido pelos pistoleiros de Kelly ao empresário de uma casa de jogo, compadre de Monk Eastman. Um dos pistoleiros foi morto, e o tiroteio subsequente cresceu numa batalha de incontáveis revólveres. Do abrigo dos altos pilares, homens de queixo raspado atiravam em silêncio e eram o centro de um apavorado horizonte de coches de aluguel carregados de impacientes reforços, com artilharia Colt nos punhos. Que sentiram os protagonistas daquela batalha? Primeiro (creio) a brutal convicção de que o estrépito insensato segurança de que, se a descarga inicial não os derrubara, seriam invulneráveis. A verdade é que lutaram com fervor, escorados pelo parapeito do ferro e da noite. Duas vezes a polícia interveio e duas vezes foi rechaçada. Ao primeiro vislumbre do amanhecer, o combate morreu, como se fosse obsceno ou espectral. Debaixo dos grandes arcos de engenharia ficaram sete gravemente feridos, quatro cadáveres e uma pomba morta.

OS RANGIDOS

Os políticos paroquiais, a cujo serviço estava Monk Eastman, sempre desmentiram publicamente que houvesse tais gangues, ou esclareceram que se tratava de meras sociedades recreativas. A indiscreta batalha de Rivington alarmou-os. Convocaram os dois capitães para persuadi-los da necessidade de uma trégua. Kelly (bem sabendo que os políticos eram mais aptos que os revólveres Colt para arrefecer a ação da polícia) disse, ato contínuo, que sim; Eastman (com a soberba de seu corpo grande e bruto) ansiava por mais detonações e mais refregas. Começou por recusar e tiveram de ameaçá-lo com a prisão. Afinal os dois ilustres malfeitores conferenciaram num bar, cada um com seu charuto de folha na boca, a direita no revólver e a vigilante nuvem de pistoleiros ao redor. Chegaram a uma decisão muito americana: confiar a uma luta de boxe a disputa. Kelly era um boxeador habilíssimo. Realizou-se o duelo num galpão e foi extravagante. Cento e quarenta espectadores viram-no, entre compadres de cartola torta e mulheres de frágil penteado monumental. Durou duas horas e terminou numa completa exaustão. Na semana seguinte pipocaram os tiroteios. Monk foi preso, pela enésima vez. Os protetores desinteressaram-se dele com alívio; o juiz vaticinou-lhe, com toda a justiça, dez anos de cárcere.

EASTMAN CONTRA A ALEMANHA

Quando o ainda perplexo Monk saiu de Sing Sing, os mil e duzentos gângsteres sob seu comando estavam desgarrados. Não soube juntá-los e se resignou a operar por sua própria conta. No dia 8 de setembro de 1917, promoveu desordem na via pública. No dia 9, resolveu participar noutra desordem e alistou-se num regimento de infantaria.
Sabemos vários traços de sua campanha. Sabemos que desaprovou com fervor a captura de prisioneiros e que certa vez (com apenas a culatra do fuzil) impediu essa prática deplorável. Sabemos que conseguiu evadir-se do hospital para voltar às trincheiras. Sabemos que se distinguiu nos combates perto de Montfaucon. Sabemos que depois opinou que muitos bailinhos do Bowery eram mais brutos que a guerra europeia.

MISTERIOSO, LÓGICO FIM

No dia 25 de dezembro de 1920, o corpo de Monk Eastman amanheceu numa das ruas centrais de Nova York. Recebera cinco balaços. Desconhecedor feliz da morte, um gato dos mais ordinários rondava-o com certa perplexidade.

Jorge Luis Borges, in História universal da infâmia

Seminal

Você existe como componente. Desaparecerá naquilo que o produziu. Ou melhor, transmutará e regressará à sua razão seminal.

Marco Aurélio, in Meditações do Imperador Marco Aurélio: Uma Nova Tradução

Enquanto isso, na farmácia das almas...

 

Bocó

Quando o moço estava a catar caracóis e pedrinhas
na beira do rio até duas horas da tarde, ali
também Nhá Velina Cuê estava. A velha paraguaia
de ver aquele moço a catar caracóis na beira do
rio até duas horas da tarde, balançou a cabeça
de um lado para o outro ao gesto de quem estivesse
com pena do moço, e disse a palavra bocó. O moço
ouviu a palavra bocó e foi para casa correndo
a ver nos seus trinta e dois dicionários que coisa
era ser bocó. Achou cerca de nove expressões que
sugeriam símiles a tonto. E se riu de gostar. E
separou para ele os nove símiles. Tais: Bocó é
sempre alguém acrescentado de criança. Bocó é
uma exceção de árvore. Bocó é um que gosta de
conversar bobagens profundas com as águas. Bocó
é aquele que fala sempre com com sotaque das suas
origens. É sempre alguém obscuro de mosca. É
alguém que constrói sua casa com pouco cisco.
É um que descobriu que as tardes fazem parte de
haver beleza nos pássaros. Bocó é aquele que
olhando para o chão enxerga um verme sendo-o.
Bocó é uma espécie de sânie com alvoradas. Foi
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou.
o que o moço colheu em seus trinta e dois
dicionários. E ele se estimou.

Manoel de Barros, in Memórias Inventadas – A segunda infância

É um mundo sujo

Eu dirigia pelo Sunset, no fim de uma tarde, parei num sinal, e num ponto de ônibus vi uma ruiva tingida com um rosto brutal e destroçado, empoado, pintado, que dizia “isto é o que a vida faz com a gente”. Eu podia imaginá-la bêbada, gritando com algum homem do outro lado da sala, e fiquei feliz por esse homem não ser eu. Ela me viu olhando-a e acenou: – Ei, que tal um passeio? – Tudo bem – eu disse, e ela atravessou correndo as duas pistas de tráfego e entrou. Partimos e ela mostrou uma abundância de coxa. Nada mal. Eu dirigia sem dizer nada. – Quero ir à Rua Alvarado – ela disse. Era o que eu imaginava. É onde elas fazem ponto. Da Oitava e da Alvarado para cima, nos bares do outro lado do parque e dobrando as esquinas, até o pé do morro. Eu frequentara aqueles bares muitos anos e conhecia o babado. A maioria das garotas queria apenas um drinque e um lugar para ficar. Naqueles bares escuros, não pareciam demasiado mal. Chegávamos perto da Rua Alvarado. – Pode me dar cinquenta centavos? – ela pediu. – Enfiei a mão no bolso e dei-lhe duas moedas de vinte e cinco. – Eu devia poder dar uma apalpada por isso. – Ela riu. – Vá em frente. – Eu suspendi o vestido dela e belisquei-a suavemente onde terminava a meia. Quase disse “Merda, vamos pegar uma garrafa e ir lá pra casa”. Podia me ver entrando naquele corpo magro, quase ouvia as molas da cama. Depois podia vê-la sentada numa cadeira, xingando, falando e rindo. Deixei passar. Ela saltou na Alvarado e a vi atravessar a rua, tentando parecer gostosa. Segui em frente. Devia ao estado 606 dólares de imposto de renda. Tinha de abrir mão de um belo rabo de vez em quando.
Estacionei diante do China, entrei e peguei uma tigela de frango won ton. O cara sentado à minha direita não tinha uma orelha. Só um buraco na cabeça, um buraco sujo com um monte de pelos brancos em redor. Orelha nenhuma. Olhei o buraco e depois voltei ao won ton de frango. O gosto não estava mais tão bom. Depois veio outro cara e se sentou à minha esquerda. Era um vagabundo. Pediu uma xícara de café. Olhou pra mim:
Oi, bebum – disse.
Oi – respondi.
Todo mundo me chama de “bebum”, por isso pensei em chamar você.
Tudo bem. Eu já fui.
Ele mexeu seu café.
Essas bolhinhas em cima do café. Olhe. Minha mãe dizia que isso significava que eu ia ganhar dinheiro. Não foi assim.
Mãe? Aquele homem um dia tivera mãe?
Acabei minha tigela e deixei-os lá, o cara sem orelha e o vagabundo olhando as bolhas de seu café.
Esta está se revelando uma noite dos diabos, pensei. Acho que não pode acontecer muito mais.
Estava errado.
Decidi atravessar a Alameda e comprar alguns selos. O trânsito estava pesado e um jovem guarda orientava os carros. Alguma coisa acontecia. Um rapaz à minha frente gritava para o guarda: – Vamos lá, deixa a gente atravessar, que diabos! A gente já está aqui há tempo bastante! – O guarda continuava mandando o trânsito passar. – Vamos lá, que diabos há com você? – gritava o garoto. Esse garoto deve ser maluco, pensei. Ele tinha boa aparência, jovem, grande, seus um metro e noventa, cem quilos. Camiseta branca. Nariz um pouco grande demais. Podia ter tomado algumas cervejas, mas não estava bêbado. Então o tira apitou e mandou a multidão atravessar. O garoto desceu para a rua. – Tudo bem, vamos lá todo mundo, agora é seguro, agora é seguro atravessar! – É que você pensa, garoto, foi o que eu pensei. O garoto agitava os braços. – Vamos lá, todo mundo! – Eu andava bem atrás dele. Vi o rosto do guarda. Ficou muito pálido. Vi os olhos reduzirem-se a fendas. Era um guarda jovem, pequeno, parrudo. Ele veio em direção ao garoto. Oh, deus, lá vem! O garoto viu o guarda aproximar-se dele. – Não me TOQUE! Não se atreva a TOCAR em mim! – O guarda pegou-o pelo braço esquerdo, disse-lhe alguma coisa, tentou conduzir o garoto de volta ao meio-fio. O garoto soltou-se e afastou-se. O guarda correu atrás dele, aplicou uma gravata no garoto. O garoto livrou-se e os dois passaram a lutar, rodopiando. A gente ouvia os pés deles na rua. As pessoas paravam e olhavam de longe. Eu estava bem em cima deles. Várias vezes tive de recuar enquanto eles lutavam. Também eu não tinha o mínimo de juízo. Aí eles subiram na calçada. O quepe do guarda voou. Foi aí que comecei a ficar meio nervoso. O guarda não parecia bem um guarda sem o quepe, mas ainda tinha o cassetete e a arma. O garoto tornou a soltar-se e correu. O guarda saltou nele por detrás, passou um braço pelo pescoço e tentou derrubá-lo, mas o garoto ficou firme. E então se livrou. Finalmente, o guarda segurou-o contra o corrimão de ferro de um estacionamento da Standard Station. Um garoto branco e um guarda branco. Eu olhei para o outro lado da rua e vi cinco jovens negros sorrindo e observando. Eles estavam enfileirados contra uma parede. O guarda recuperara o quepe e conduzia o garoto rua abaixo para uma cabine de telefone.
Fui pegar meus selos na máquina. Era uma noite fodida. Eu quase esperava que uma cobra caísse da máquina. Mas só recebi selos. Ergui os olhos e vi meu amigo Benny.
Viu o barulho, Benny?
É..., quando levarem ele pra delegacia, vão calçar luvas de couro e dar um pau daqueles.
Você acha?
Claro. A cidade é igual ao condado. Os caras batem pra valer. Acabei de sair da nova cadeia do condado. Eles botam os novos tiras pra bater nos presos lá, pra pegar experiência. A gente ouvia eles gritando e os tiras batendo. Eles se gabam disso. Quando eu estava lá, um tira passou e disse: “Dei um pau daqueles num bebum!”
Ouvi falar.
Deixam a gente dar um telefonema, e esse cara ficou no telefone muito tempo, e os tiras mandando ele desligar. Ele ficava dizendo “só um minuto, só um minuto!”, e finalmente um tira ficou puto e desligou o telefone e o cara gritou: “Eu tenho meus direitos, você não pode fazer isso!”
Que foi que houve?
Uns quatro tiras pegaram o cara. Levaram ele tão depressa que os pés dele nem tocavam no chão. Levaram ele pra sala do lado. A gente ouvia, fizeram um bom trabalho nele. Você sabe, eles botam a gente lá, curvado, olham dentro do rabo da gente, dentro do sapato, procurando droga, e trouxeram o garoto nu, e ele vinha tremendo com arrepios. A gente via as marcas vermelhas no corpo todo. Deixaram ele ali, tremendo contra a parede. O cara tinha apanhado mesmo.
É... – eu disse. – Eu passava de carro pela Union Rescue Mission uma noite e dois tiras num carro-patrulha estavam pegando um bêbado. Um deles se meteu no banco de trás com o bêbado, e eu ouvi o bêbado dizer “seu tira filho da puta sujo!”, e vi o tira tirar o cassetete e enfiar a ponta, com força, na barriga do cara. Foi uma porrada dos diabos, que me deixou meio nauseado. Podia ter rompido o estômago, ou causado hemorragia interna.
É, é um mundo sujo.
É isso aí, Benny. Vejo você por aí. Te cuida.
Claro. Você também.
Encontrei o carro e voltei subindo o Sunset. Quando cheguei à Alvarado, dobrei para o sul e desci até quase a Rua Oito. Parei, saltei, encontrei uma loja de bebidas e comprei uma garrafa de uísque. Depois entrei no bar mais próximo. Lá estava ela. Minha ruiva de rosto brutal. Cheguei perto, bati na garrafa.
Vamos lá.
Ela terminou sua bebida e saiu atrás de mim.
Bela noite – disse.
Ah, sim – respondi.
Quando chegamos à minha casa, ela foi ao banheiro e eu lavei dois copos. Não tem saída, pensei, não tem saída de nada.
Ela entrou na cozinha, encostou-se em mim. Tinha renovado o batom. Me beijou, mexendo a língua dentro de minha boca. Suspendi o vestido dela e palmeei a calcinha. Ficamos debaixo da lâmpada, travados. Bem, o estado ia ter de esperar mais um pouco por seu imposto de renda. Talvez o Governador Deukmejian entendesse. Nós nos separamos, eu servi dois drinques e entramos no outro quarto.

Charles Bukowski, in Numa Fria