segunda-feira, 30 de maio de 2022

É um mundo sujo

Eu dirigia pelo Sunset, no fim de uma tarde, parei num sinal, e num ponto de ônibus vi uma ruiva tingida com um rosto brutal e destroçado, empoado, pintado, que dizia “isto é o que a vida faz com a gente”. Eu podia imaginá-la bêbada, gritando com algum homem do outro lado da sala, e fiquei feliz por esse homem não ser eu. Ela me viu olhando-a e acenou: – Ei, que tal um passeio? – Tudo bem – eu disse, e ela atravessou correndo as duas pistas de tráfego e entrou. Partimos e ela mostrou uma abundância de coxa. Nada mal. Eu dirigia sem dizer nada. – Quero ir à Rua Alvarado – ela disse. Era o que eu imaginava. É onde elas fazem ponto. Da Oitava e da Alvarado para cima, nos bares do outro lado do parque e dobrando as esquinas, até o pé do morro. Eu frequentara aqueles bares muitos anos e conhecia o babado. A maioria das garotas queria apenas um drinque e um lugar para ficar. Naqueles bares escuros, não pareciam demasiado mal. Chegávamos perto da Rua Alvarado. – Pode me dar cinquenta centavos? – ela pediu. – Enfiei a mão no bolso e dei-lhe duas moedas de vinte e cinco. – Eu devia poder dar uma apalpada por isso. – Ela riu. – Vá em frente. – Eu suspendi o vestido dela e belisquei-a suavemente onde terminava a meia. Quase disse “Merda, vamos pegar uma garrafa e ir lá pra casa”. Podia me ver entrando naquele corpo magro, quase ouvia as molas da cama. Depois podia vê-la sentada numa cadeira, xingando, falando e rindo. Deixei passar. Ela saltou na Alvarado e a vi atravessar a rua, tentando parecer gostosa. Segui em frente. Devia ao estado 606 dólares de imposto de renda. Tinha de abrir mão de um belo rabo de vez em quando.
Estacionei diante do China, entrei e peguei uma tigela de frango won ton. O cara sentado à minha direita não tinha uma orelha. Só um buraco na cabeça, um buraco sujo com um monte de pelos brancos em redor. Orelha nenhuma. Olhei o buraco e depois voltei ao won ton de frango. O gosto não estava mais tão bom. Depois veio outro cara e se sentou à minha esquerda. Era um vagabundo. Pediu uma xícara de café. Olhou pra mim:
Oi, bebum – disse.
Oi – respondi.
Todo mundo me chama de “bebum”, por isso pensei em chamar você.
Tudo bem. Eu já fui.
Ele mexeu seu café.
Essas bolhinhas em cima do café. Olhe. Minha mãe dizia que isso significava que eu ia ganhar dinheiro. Não foi assim.
Mãe? Aquele homem um dia tivera mãe?
Acabei minha tigela e deixei-os lá, o cara sem orelha e o vagabundo olhando as bolhas de seu café.
Esta está se revelando uma noite dos diabos, pensei. Acho que não pode acontecer muito mais.
Estava errado.
Decidi atravessar a Alameda e comprar alguns selos. O trânsito estava pesado e um jovem guarda orientava os carros. Alguma coisa acontecia. Um rapaz à minha frente gritava para o guarda: – Vamos lá, deixa a gente atravessar, que diabos! A gente já está aqui há tempo bastante! – O guarda continuava mandando o trânsito passar. – Vamos lá, que diabos há com você? – gritava o garoto. Esse garoto deve ser maluco, pensei. Ele tinha boa aparência, jovem, grande, seus um metro e noventa, cem quilos. Camiseta branca. Nariz um pouco grande demais. Podia ter tomado algumas cervejas, mas não estava bêbado. Então o tira apitou e mandou a multidão atravessar. O garoto desceu para a rua. – Tudo bem, vamos lá todo mundo, agora é seguro, agora é seguro atravessar! – É que você pensa, garoto, foi o que eu pensei. O garoto agitava os braços. – Vamos lá, todo mundo! – Eu andava bem atrás dele. Vi o rosto do guarda. Ficou muito pálido. Vi os olhos reduzirem-se a fendas. Era um guarda jovem, pequeno, parrudo. Ele veio em direção ao garoto. Oh, deus, lá vem! O garoto viu o guarda aproximar-se dele. – Não me TOQUE! Não se atreva a TOCAR em mim! – O guarda pegou-o pelo braço esquerdo, disse-lhe alguma coisa, tentou conduzir o garoto de volta ao meio-fio. O garoto soltou-se e afastou-se. O guarda correu atrás dele, aplicou uma gravata no garoto. O garoto livrou-se e os dois passaram a lutar, rodopiando. A gente ouvia os pés deles na rua. As pessoas paravam e olhavam de longe. Eu estava bem em cima deles. Várias vezes tive de recuar enquanto eles lutavam. Também eu não tinha o mínimo de juízo. Aí eles subiram na calçada. O quepe do guarda voou. Foi aí que comecei a ficar meio nervoso. O guarda não parecia bem um guarda sem o quepe, mas ainda tinha o cassetete e a arma. O garoto tornou a soltar-se e correu. O guarda saltou nele por detrás, passou um braço pelo pescoço e tentou derrubá-lo, mas o garoto ficou firme. E então se livrou. Finalmente, o guarda segurou-o contra o corrimão de ferro de um estacionamento da Standard Station. Um garoto branco e um guarda branco. Eu olhei para o outro lado da rua e vi cinco jovens negros sorrindo e observando. Eles estavam enfileirados contra uma parede. O guarda recuperara o quepe e conduzia o garoto rua abaixo para uma cabine de telefone.
Fui pegar meus selos na máquina. Era uma noite fodida. Eu quase esperava que uma cobra caísse da máquina. Mas só recebi selos. Ergui os olhos e vi meu amigo Benny.
Viu o barulho, Benny?
É..., quando levarem ele pra delegacia, vão calçar luvas de couro e dar um pau daqueles.
Você acha?
Claro. A cidade é igual ao condado. Os caras batem pra valer. Acabei de sair da nova cadeia do condado. Eles botam os novos tiras pra bater nos presos lá, pra pegar experiência. A gente ouvia eles gritando e os tiras batendo. Eles se gabam disso. Quando eu estava lá, um tira passou e disse: “Dei um pau daqueles num bebum!”
Ouvi falar.
Deixam a gente dar um telefonema, e esse cara ficou no telefone muito tempo, e os tiras mandando ele desligar. Ele ficava dizendo “só um minuto, só um minuto!”, e finalmente um tira ficou puto e desligou o telefone e o cara gritou: “Eu tenho meus direitos, você não pode fazer isso!”
Que foi que houve?
Uns quatro tiras pegaram o cara. Levaram ele tão depressa que os pés dele nem tocavam no chão. Levaram ele pra sala do lado. A gente ouvia, fizeram um bom trabalho nele. Você sabe, eles botam a gente lá, curvado, olham dentro do rabo da gente, dentro do sapato, procurando droga, e trouxeram o garoto nu, e ele vinha tremendo com arrepios. A gente via as marcas vermelhas no corpo todo. Deixaram ele ali, tremendo contra a parede. O cara tinha apanhado mesmo.
É... – eu disse. – Eu passava de carro pela Union Rescue Mission uma noite e dois tiras num carro-patrulha estavam pegando um bêbado. Um deles se meteu no banco de trás com o bêbado, e eu ouvi o bêbado dizer “seu tira filho da puta sujo!”, e vi o tira tirar o cassetete e enfiar a ponta, com força, na barriga do cara. Foi uma porrada dos diabos, que me deixou meio nauseado. Podia ter rompido o estômago, ou causado hemorragia interna.
É, é um mundo sujo.
É isso aí, Benny. Vejo você por aí. Te cuida.
Claro. Você também.
Encontrei o carro e voltei subindo o Sunset. Quando cheguei à Alvarado, dobrei para o sul e desci até quase a Rua Oito. Parei, saltei, encontrei uma loja de bebidas e comprei uma garrafa de uísque. Depois entrei no bar mais próximo. Lá estava ela. Minha ruiva de rosto brutal. Cheguei perto, bati na garrafa.
Vamos lá.
Ela terminou sua bebida e saiu atrás de mim.
Bela noite – disse.
Ah, sim – respondi.
Quando chegamos à minha casa, ela foi ao banheiro e eu lavei dois copos. Não tem saída, pensei, não tem saída de nada.
Ela entrou na cozinha, encostou-se em mim. Tinha renovado o batom. Me beijou, mexendo a língua dentro de minha boca. Suspendi o vestido dela e palmeei a calcinha. Ficamos debaixo da lâmpada, travados. Bem, o estado ia ter de esperar mais um pouco por seu imposto de renda. Talvez o Governador Deukmejian entendesse. Nós nos separamos, eu servi dois drinques e entramos no outro quarto.

Charles Bukowski, in Numa Fria

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