quarta-feira, 24 de abril de 2024

Considerações Iatrofilosóficas

Realmente, como vocês devem estar cansados de me ver repetir, não se pode querer tudo neste mundo. Há gente, contudo, como eu, que continua neuroticamente tentando. E não consegue, claro. Por exemplo, aqui com o juízo coçando, eu ia falar mal do governo outra vez. Como também já disse, não é que eu goste de falar mal do governo. Pelo contrário, queria falar bem, mas sabem como é, às vezes fica difícil (lá ia eu de novo, mil perdões). Pronto, não vou falar mal do governo. Mas aí outro problema que me aflige se apresentou, como é também freqüente: um dos meus acessozinhos de pernosticismo, no título acima, com o uso de uma palavra que nem mesmo está registrada nos dicionários que consultei, embora sua formação me pareça tão legítima quanto a de “imexível”. Procurei esquivar-me, mas não deu e me redimo parcialmente, explicando que “iatro” é um elemento de composição que vem do grego e quer dizer “médico”. Por exemplo, “iatrogênico”, palavra que existe mesmo, qualifica uma enfermidade ou anomalia provocada pelo tratamento, ou seja, pelo médico. Não sei nem por que ela existe, pois ninguém ignora que médico não comete esse tipo de erro, como, segundo me dizem, costuma ser a posição dos conselhos regionais de medicina diante de denúncias — sempre calúnias geradas por pacientes irresponsáveis e, notadamente, pela imprensa, como todas as desgraças e calamidades.
Preâmbulo concluído, apresso-me a apresentar-lhes meu grande amigo Toinho Sabacu, conceituado cidadão de Itaparica, de quem nunca lhes falei antes devido a injusto esquecimento, pois ele, por suas inúmeras boas qualidades, já de muito merecia ser mais conhecido. E também porque, apesar de sermos amigos, ai de nós, há mais de 60 anos, não prestara suficiente atenção a certas colocações suas (vejam como posso não ser craque, mas dá para manejar o linguajar contemporâneo), que considero educativas, relevantes e de acentuado interesse público. No exemplo que vou narrar-lhes, as utilidades práticas e filosóficas são evidentes e devem interessar bastante aos que se preocupam com a saúde dos brasileiros, na vanguarda dos quais está o governo (pronto, lá vou eu novamente; por favor, ignorem esta última ironia).
Toinho é, que eu saiba, o autor da metáfora da catraca, alusão ao inevitável transcurso de todos nós desta para melhor. Ele sabe que ninguém escapa de passar pela catraca e, da mesma forma que a maioria, deseja adiar esse momento, digamos, desagradável, o máximo possível. É, aliás, da ala radical, não quer nem ouvir falar na catraca. Cuida-se com seriedade, não fuma, só bebe um copinho de cerveja de caju em caju, não come o que faz mal e, enfim, obedece escrupulosamente às recomendações aplicáveis à preservação da boa saúde. E oferece conselhos e exemplos práticos sempre que surge uma ocasião oportuna. Como os que expôs há pouco tempo, em relação a adivinhe o quê. Claro, exame de próstata, ato execrado pelos varões em geral e especialmente os itaparicanos, eis que a machidão altiva por lá impera, em grau ainda maior que entre outras coletividades. Ele me contou por que, apesar de seus princípios, a lembrança da catraca o leva a fazer o exame com resignação e assiduidade, sem receio ou acanhamento.
O médico me disse — disse ele — uma coisa importante. Ele queria fazer o exame, mas mandava minha natureza perguntar se não dava para quebrar o galho sem precisar enfiar o dedo num orifício de grande privacidade, em que eu nunca aprovei enfiar nada, pelo menos no meu. Aí ele me explicou que o exame do PSA era uma indicação importante, mas insuficiente, por isso e por aquilo. E, no que se refere à ultrassonografia, ele me elucidou: “Seu Antônio, vamos comparar a ultrassonografia a uma fotografia. Ela me dá uma visão de sua próstata, do tamanho a outros aspectos, é mais ou menos como uma foto. Mas, se eu puser um grãozinho de areia da praia na sua mão e fizer a foto dela, o senhor não vai enxergar o grãozinho. No entanto, se o senhor passar o dedo na mão, vai sentir alguma coisa, por mais miudinha que seja. É por isso que, apesar de compreender e respeitar a sua posição, enfiar o dedo é indispensável para um exame correto.”
E o que foi que você respondeu?
Ah, então pode até enfiar os cinco, doutor. Eu sou um homem de decisão e não é assim que eu vou dar moleza para a catraca.
Impressionado com a destemida atitude, passo adiante para o distinto leitor que ainda reluta e para as pessoas a ele afeiçoadas. É de fato rematada frescura esse negócio de não permitir o exame da dedada, catraquismo explícito, para não dizer pior. E acrescento um complemento adicional à lição. Outro amigo nosso, viúvo e em seus galantes 66 anos, tem-se recusado a fazer uma operação na próstata, porque traz a possibilidade de torná-lo impotente.
Que é que você está me dizendo? — espantou-se Toinho. — Ele não vai fazer a operação com medo disso? E ainda mais com 66 anos?
Pois é.
Interessante essa, muito interessante. Agora eu lhe pergunto, ele quer morrer com uma ereção, é isso? — Indagou ele, sem propriamente usar a expressão “com uma ereção”, mas outra, essa mesma em que vocês estão pensando. — É, bonita morte. Caixão especial abaulado no meio, algumas pessoas querendo conferir, coisa fina mesmo, uma beleza. E de fato não se pode negar que tem uma vantagem nisso.
Vantagem, que vantagem?
Ele vai poder transar com todas as caveirinhas do cemitério, não deve ser isso que ele está querendo?

João Ubaldo Ribeiro, in O rei da noite

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