segunda-feira, 30 de abril de 2018

Prólogo de Zaratustra - 2

Zaratustra desceu sozinho pela montanha, sem deparar com ninguém. Chegando aos bosques, porém, viu subitamente um homem velho, que havia deixado sua cabana sagrada para colher raízes na floresta. E assim falou o velho a Zaratustra:
Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há muitos anos. Chamava-se Zaratustra; mas está mudado.
Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não temes o castigo para o incendiário?
Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino?
Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um despertado é Zaratustra: que queres agora entre os que dormem?
Vivias na solidão como num mar, e o mar te carregava. Ai de ti, queres então subir à terra? Ai de ti, queres novamente arrastar tu mesmo o teu corpo?”
Respondeu Zaratustra: “Eu amo os homens”.
Por que”, disse o santo, “fui para o ermo e a floresta? Não seria por amar demais os homens?
Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me mataria.”
Respondeu Zaratustra: “Que fiz eu, falando de amor? Trago aos homens uma dádiva”.
Não lhes dês nada”, disse o santo. “Tira-lhes algo, isto sim, e carrega-o juntamente com eles — será o melhor para eles: se for bom para ti!
E, querendo lhes dar, não dês mais que uma esmola, deixando ainda que a mendiguem!”
Não”, respondeu Zaratustra, “não dou esmolas. Não sou pobre o bastante para isso.”
O santo riu de Zaratustra, e falou assim: “Então cuida para que recebam teus tesouros! Eles desconfiam dos eremitas e não acreditam que viemos para presentear.
Para eles, nossos passos ecoam solitários demais pelas ruas. E, quando, deitados à noite em suas camas, ouvem um homem a caminhar bem antes de nascer o sol, perguntam a si mesmos: aonde vai esse ladrão?
Não vás para junto dos homens, fica na floresta! Seria até melhor que fosses para junto dos animais! Por que não queres ser, como eu — um urso entre os ursos, um pássaro entre os pássaros?”
E o que faz o santo na floresta?”, perguntou Zaratustra.
Respondeu o santo: “Eu faço canções e as canto, e, quando faço canções, rio, choro e sussurro: assim louvo a Deus.
Cantando, chorando, rindo e sussurrando eu louvo ao deus que é meu Deus. Mas o que trazes de presente?”
Ao ouvir essas palavras, Zaratustra saudou o santo e falou: “Que poderia eu vos dar? Deixai-me partir, para que nada vos tire!” — E assim se despediram um do outro, o idoso e o homem, rindo como riem dois meninos.
Mas, quando Zaratustra se achou só, assim falou para seu coração: “Como será possível? Este velho santo, na sua floresta, ainda não soube que Deus está morto!”.
Friedrich Nietzsche, in Assim falou Zaratustra

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