sábado, 28 de abril de 2018

Carrero de óculos


Poucos meses antes de sua morte, fiz uma última visita a Hilda Hilst, reclusa em sua Casa do Sol. Foi uma mulher linda, o tempo a devastou. A gordura mórbida balançava sob a bata imensa. O semblante, encrespado pela decepção, tremia. Apoiava-se em uma bengala tosca, amaldiçoava seus amados cachorros e trazia os cabelos em tempestade.
Na mesa da cozinha, encarando-me, Hilda desabafou: “Tornei-me uma bruxa”. Falava da cisão cruel, grande fosso, que separa a existência das palavras. Resumiu assim: “Enquanto minha literatura vai para um lado, meu corpo inteiro se move para o outro”.
A frase assustadora de Hilda me volta enquanto leio A minha alma é irmã de Deus (Record), romance de Raimundo Carrero, livro com que ele encerra seu “Quarteto áspero”. Na protagonista, Camila, encontro a mesma desordem que atordoou Hilda em seus últimos dias.
Nos dias ásperos de hoje, muitos se apegam ao enigma da alma. Outros creem que o verdadeiro enigma está no corpo. Com as ideias, nos consolamos; o corpo despreza as abstrações. Lembro aqui de uma frase que, perplexa, minha velha mãe pronunciou, outro dia, diante do espelho: “Estou muito diferente de mim”.
Não é só um efeito da velhice. Em seu romance, Carrero trabalha com uma ideia estupenda de Samuel Beckett, que localiza melhor essa devastação. “O que chamam de amor é o exílio”, diz Beckett. O corpo não acompanha o sopro do humano – esteja ele nos sentimentos, nas paixões ou nas palavras. Lembro outra vez de Hilda, que, sem pudor, me disse: “Meu corpo anda cansado de mim”.
O deslocamento entre a matéria e o espírito (seja ele o que for) se expressa, com força, em um personagem secundário de Carrero: o camelô Alvarenga. Obeso e com cara de anão, ele não tira um velho gorro de Papai Noel, “embora deteste ser chamado de Papai Noel”. Um perplexo Carrero nos defronta: “Como é que uma pessoa não quer uma coisa e faz? Vá entender, vá”.
O pedido de Alvarenga – “Não me chamem de Papai Noel” – não combina com o gorro vermelho que leva na cabeça. Alvarenga quer o que não quer. Pensa uma coisa, mas o corpo lhe diz outra. Por que palavras (os nomes) e corpos não sincronizam? Porque palavras – e nomes – são o destino. Escreve Carrero a respeito de sua delicada protagonista, Camila: “Só lhe restava cumprir o nome. É assim, sempre: um nome é um destino. E não se discute mais”.
Entre as palavras (a alma) e o corpo, contudo, algo se interpõe: o incêndio do amor. Algo sopra não deles, mas entre eles. Camila é “sequestrada” por Leonardo, o pastor da seita Os Soldados da Pátria por Cristo. O pastor não abandona seu saxofone: acredita mais na música que nas palavras. Como o flautista de Hamelin, dos irmãos Grimm, que arrasta com suas melodias os ratos para afogá-los no rio Weser, também Leonardo usa a música para capturar (para sequestrar) almas.
O amor não é só um exílio, ele é também um sequestro, em que algo nos afasta de nós mesmos. Camila sabe que o corpo é puxado por coisas que não controlamos, e por isso sonha em se tornar santa – isto é, ser apenas alma, e não mais corpo. Sonho falhado, porque a alma também aprisiona.
Muito além da biologia, o que se passa no corpo vem de fora. E nele se fixa, como um selo – o registro de um destino. Certo dia, Camila vê sua sombra refletiva no chão. “É por causa da sombra que eu sou Camila.” Mais que o corpo com vísceras e glândulas, mais que as palavras com seus sentidos e abstrações, há uma sombra que – empurrada para um vão, como a Senhora D., de Hilda Hilst, espremida no vão de uma escada – determina o destino pessoal. Sombra que marca as palavras com seus lapsos e gaguejos; e que fere o corpo com seus tremores, arrepios e paixões. É na sombra que quase tudo está.
Ocorre-me, aqui, outro romance de Carrero, Sombra severa, como instrumento para ler o próprio Carrero. Carrero contra Carrero. Em dado momento, um aflito Judas faz uma reflexão que me ajuda: “As ações não nasciam de sua alma atormentada, mas das emboscadas que o segredo sabe preparar”. A existência não está no corpo, muito menos na alma; está entre eles. Pode manifestar-se em um suspiro, em uma visão súbita, em quase nada.
Nem na alma nem no corpo: entre os dois. Na sombra. Hilda gostava de passar as tardes sob uma imensa figueira. Acreditava que era mágica. À sombra da árvore, ela se interrogava a respeito do existir. Poderia repetir a frase de Camila: “Não desejo saber o que estou fazendo no mundo. Quero saber por que tenho um corpo”. Quer saber mais: o que se faz com ele.
Um dia, o pastor Leonardo desaparece. Leva consigo a alma de Camila. Resta-lhe o corpo que, como um dejeto, ela arrasta pelas ruas. Seu corpo já não lhe pertence. Desiste de pensar nele (o que só a leva ao desamparo). Prefere arrastar-se, como um réptil que serpenteia sem saber que existe.
Não é nem no corpo nem na alma que existimos, mas entre eles. No choque (do atrito) entre os dois. Camila deseja tornar-se santa porque “ter um corpo é tão limitador”. Não percebe que a ideia da alma também a diminui. A adesão ao pastor é, ela também, um rapto. Mas, então, onde está Camila?
Está no lixo, passa a levar uma vida de catadora, entre os ratos – como Hamelin. Só que, ao contrário do flautista dos Grimm, são os ratos que a arrastam. Não com a música, mas com seu silêncio. Silêncio que rói pelas beiradas os limites do mundo. Que transforma a existência em uma espécie de vazamento. Em um choro.
Os personagens de Carrero vivem entre ruínas – e aqui penso em outro romance do escritor, As sombrias ruínas da alma. Sempre a cegueira, sempre a sombra. Como se Carrero, para escrever, precisasse usar óculos escuros que o separassem do mundo (do corpo), mas que também lhe borrassem a visão (a alma). Só nesse vão – agachado sob a escada da existência – se escreve.
Volto a pensar em Hilda. Penso em Carrero. São escritores do deserto – que tateiam, cambaleiam, mas avançam. Não sei se chegaram a se conhecer. Talvez viessem a se odiar. Esse ódio (faísca) seria só um relâmpago. O leve roçar entre corpo e espírito, ali onde a escrita (como um tapete muito antigo) se desenrola.
José Castello, in Sábados inquietos

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