segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Azeite na roldana

Transpus, a porta da igreja e mergulhei na penumbra fresca e perfumada.
Estava deserta. Brilhavam suavemente os candelabros de bronze; a iconóstase finamente trabalhada ocupava todo o fundo, representando uma parreira de ouro carregada de uvas. As paredes, de alto a baixo, recobriam-se de afrescos meio apagados: horrendos ascetas esqueléticos, padres da igreja, a longa paixão de Cristo, anjos robustos e ferozes, com os cabelos presos por fitas largas e desbotadas.
Bom no alto, na abóbada, a Virgem de braços estendidos, implorante. A luz trêmula de uma pesada lamparina de prata acesa diante dela lambia e acariciava molemente seu longo rosto atormentado. Jamais esquecerei aqueles olhos dolorosos, a boca franzida e redonda, o queixo robusto e voluntarioso. Dizia comigo: eis a mãe completamente satisfeita, perfeitamente feliz, mesmo na sua dor mais torturante, pois ela sente que de suas entranhas perecíveis saiu algo de imortal.
Quando deixei a igreja, o sol já se escondia. Sentei-me à sombra da laranjeira, feliz. A cúpula coloria-se de rosa, como no romper da aurora. Retirados em suas celas, os monges repousavam.
Esta noite não dormiriam, precisavam ganhar forças. À tardinha Cristo começaria a subir o Gólgota, e iriam subir com ele. Duas porcas pretas, de tetas rosadas, cochilavam embaixo de uma alfarrobeira.
Pombos se amavam nos telhados.
Pensei: até quando poderei viver e sentir esta suavidade da terra, do ar, do silêncio e do perfume da laranjeira em flor? Um ícone de São Baco que contemplara na igreja tinha feito meu coração transbordar de felicidade. Tudo aquilo que me comove o mais profundamente: a unidade de vontade, a perseverança no esforço, se descobriu de novo diante de mim. Bendito seja esse pequenino e gracioso ícone do efebo cristão, com os cabelos crespos caindo em volta do rosto, em cachos pretos. Dionísio, o belo Deus do vinho e do êxtase, e São Baco misturavam-se em mim, tomando a mesma feição. Sob as folhas da vinha e sob o hábito de monge palpitava o mesmo corpo fremente, queimando de sol — a Grécia.
Zorba voltou.
O Higumeno chegou — disse-me precipitadamente; conversamos um pouco, está duro na queda: disse que não quer ceder a floresta por um pedaço de pão; quer mais, o safado, mas eu vou conseguir.
Duro na queda? mas nós não estamos de acordo?
Não se meta em nada, patrão, por favor! — suplicou Zorba. — vai estragar tudo. Você fala do antigo acordo, que já está enterrado! Vamos ter a floresta pela metade do preço!
Mas que está você tramando ainda, Zorba?
Não se preocupe, isso é cá comigo. Vou pôr azeite na roldana e ela vai rodar, morou?
Mas como? Não entendo nada.
Porque eu gastei mais do que devia em Cândia, é isso! Porque Lola me comeu, isto é, lhe comeu um bocado de erva. Acha que me esqueci? A gente tem amor-próprio, que é que você pensa? Nada de manchas na minha reputação! Eu gastei, eu pago. Fiz as contas: Lola custou sete mil dracmas, que eu vou tirar da floresta. O Higumeno, o mosteiro, a Santa Virgem, todos vão pagar por Lola. É este o meu plano, lhe agrada?
De jeito nenhum. Em que é que a Virgem é responsável por suas prodigalidades?
É responsável, é mesmo mais que responsável. Ela fez o seu filho, o bom Deus. O bom Deus fez a mim, Zorba, e me deu os instrumentos que você sabe. E os danados desses instrumentos me fazem perder a cabeça e abrir a bolsa quando encontro o bicho mulher. Morou? Então, Sua Graça é responsável, e mais que responsável. Que pague!
Não gosto disso, Zorba.
Isso é outra questão, patrão. Vamos primeiro salvar as sete notinhas, depois a gente discute. Beije-me, meu pequeno, depois serei novamente sua tia...”. Você conhece a canção?
O gordo padre hospitaleiro apareceu:
Queiram entrar — disse, numa voz melosa de eclesiástico, — o jantar está servido.
Descemos ao refeitório, uma grande sala com bancos e mesas compridas e estreitas. Cheirava a azedo e azeite rançoso. Um afresco ao fundo representava a Ceia. Os onze discípulos fiéis, amontoados como carneiros em torno de Cristo e, em frente, de costas voltadas para o espectador, sozinho, um ruivo de testa corcovada e nariz aquilino: Judas, o traidor. E Jesus só tinha olhos para ele.
Estamos na quaresma — disse, — e vocês me desculpem: nem azeite nem vinho, embora se trate de viajantes. Sejam bem-vindos!
Fizemos o sinal da cruz; servimo-nos em silencio, de azeitonas, cebolas verdes, favas frescas e salva. Mastigávamos lentamente, como coelhos.
Assim é a vida cá embaixo — disse o padre hospitaleiro, — uma crucificação, uma quaresma. Mas paciência, irmãos, paciência: um dia virá o reino dos céus.
Tossi. Zorba me deu uma pisadela, querendo dizer: “Cale-se”.
Eu vi o padre Zaharia... — falou Zorba, para mudar o assunto.
Sobressaltou-se o padre hospitaleiro.
Será que este possesso lhe disse alguma coisa? — perguntou preocupado. — está com os sete demônios, não lhe dê ouvidos! Sua alma é impura e ele vê impurezas em tudo.
O sino dobrou, lúgubre, a vigília. O padre hospitaleiro persignou-se e saiu da mesa.
Já me vou — disse ele. — começa a paixão de Cristo, vamos carregar a cruz com ele. Por essa noite, vocês podem descansar, estão fatigados da caminhada. Mas amanhã às matinas...
Seus porcos! — resmungou Zorba, entre dentes, mal o monge saiu. — porcos! Mentirosos! Mulas! Jumentos!
Que foi, Zorba! Zaharia disse a você alguma coisa?
Deixe, patrão, não se incomode; se não quiser assinar, vou mostrar a eles com que lenha eu me aqueço!
Chegamos à cela que nos tinham preparado. A um canto, um ícone representando a Virgem, de rosto colado ao do filho, os grandes olhos cheios de lágrimas.
Zorba balançou a cabeça.
Sabe por que ela chora, patrão?
Não.
Por que ela vê. Eu cá, se fosse pintor de ícone, desenhava a Virgem sem olhos, sem orelhas, sem nariz. Por que tenho pena dela.
Estendemo-nos nas duras camas. As traves recendiam a cipreste; pela janela aberta entrava o doce bafo da primavera, carregado dos perfumes das flores. De quando em quando, vinham do pátio, como rajadas de vento, as melodias fúnebres.
Um rouxinol se pôs a cantar perto da janela e logo um outro, um pouco mais longe, e outro ainda. A noite transbordava de amor.
Não conseguia dormir, o canto do rouxinol se fundiu com os lamentos de Cristo e eu lutava, entre as laranjeiras em flor, para subir, também, ao Gólgota, guiando-me pelas grossas gotas de sangue. Na noite azul de primavera via o suor frio de Cristo porejar em todo o seu corpo pálido e enfraquecido. Via-o de mãos estendidas e tremulas, parecendo suplicar, implorar. O pobre povo da Galileia se apressava a segui-lo, gritando: “Hosana! Hosana!” tinham as mãos cheias de palmas e estendiam os mantos sob seus passos. Ele olhava para os que amavam, mas nenhum deles adivinhava o seu desespero. Só ele sabia que caminhava para a morte. Sob as estrelas, chorando, silencioso, consolava seu pobre coração humano, cheio de pavor: “Como o grão de trigo, meu coração, deves também descer sob a terra e morrer. Não tenhas medo. Senão, como poderás tornar-te espiga? Como poderás nutrir os homens que morrem de fome?”
Mas dentro dele, tremia o coração de homem, palpitava e não queria morrer… 
[…]

Nikos Kazantzakis, in Zorba, o Grego

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