sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Isso foi engraçado!

Certa vez assisti a uma palestra de um filósofo que estava perplexo diante dos aspectos não verbais da comunicação humana. Ele preferia a palavra escrita e falada, mas obviamente não conseguia contornar todas as caras e todos os gestos que fazemos. Por que precisamos de todos esses acompanhamentos, ele se perguntava, e, especialmente, por que são tão exagerados? Quando rimos de uma piada, por exemplo, perdemos o controle parcial sobre nosso corpo e produzimos uma enorme quantidade de hahahas que podem ser ouvidos longe. Por que não podemos dizer simplesmente “Isso foi engraçado” e ficar por aí?
Imaginei a cena de um humorista num pequeno teatro contando a melhor piada de todos os tempos e as pessoas, em vez de caindo das poltronas às gargalhadas, todas quietas murmurando “Isso foi engraçado”. É óbvio que o humorista, sabendo que o nobre senso de humor da humanidade está irrevogavelmente casado com algo muito mais animalesco, se sentiria profundamente ofendido. O riso mostra como o corpo ocupa um lugar central em nossa existência, inclusive na vida mental. O riso une corpo e mente, fundindo-os num todo. Podemos sentir isso como perda de controle, porque gostamos que a mente esteja no comando. Como disse o crítico teatral John Lahr: “Observar o riso provocado tomar conta de uma plateia é presenciar um grande e violento mistério. Rostos em convulsão, lágrimas que correm, corpos que colapsam, não em agonia, mas em êxtase”.
Quando rimos, enlouquecemos. Ficamos moles, nos apoiamos um nos outros, ficamos vermelhos e nossos olhos se enchem de lágrimas, a ponto de dissolver a linha divisória com o choro. Fazemos literalmente xixi nas calças! Depois de uma noite de risos, ficamos totalmente exaustos. Isto se deve, em parte, ao fato de que o riso intenso é marcado por mais expirações (que produzem som) do que por inalações (que absorvem oxigênio), então acabamos ofegando por falta de ar. O riso é uma das grandes alegrias de se ser humano, com benefícios bem conhecidos para a saúde, como redução do estresse, estimulação do coração e dos pulmões e liberação de endorfinas. Não obstante, devemos torcer para que os extraterrestres nunca cheguem a observar um grupo de seres humanos rindo descontrolados, porque eles provavelmente abandonariam a ideia de ter encontrado vida inteligente.
O humor nem sempre é o gatilho para o riso. Quando os psicólogos tomam notas discretas sobre o comportamento humano em shoppings e nas calçadas de nosso habitat natural, eles descobrem que a maioria dos risos ocorre depois de declarações mundanas que são tudo menos divertidas. Tente você mesmo. Observe quando as pessoas riem em bate-papos espontâneos, e verá que muitas vezes não é por nada — nenhuma piada, nenhum trocadilho, nenhuma observação bizarra. É apenas um riso inserido no fluxo da conversa, geralmente ecoado pelo interlocutor. O humor não é fundamental para o riso: as relações sociais, sim. Nossas demonstrações tremendamente ruidosas que mais parecem latidos anunciam bem-estar e gosto compartilhados. O riso de um grupo de pessoas transmite solidariedade e intimidade, não muito diferente do uivo de uma matilha de lobos.
O volume alto da risada de nossa espécie sempre me surpreende: os símios riem com muito mais suavidade, e os macacos mal podem ser ouvidos. Meu palpite é que o volume é inversamente proporcional ao risco de predação. Se o riso dos filhotes de outros primatas fosse tão ensurdecedor quanto o riso de nossos filhos no pátio das escolas, os predadores não teriam dificuldade em localizá-los e atacar no momento certo. O ser humano pode se dar ao luxo de ser barulhento, embora obviamente também dê muitas risadinhas reprimidas e risinhos entredentes.
Em sua festa de oitenta anos, Jan fez uma demonstração esplêndida da sequência da risada humana: ele soltou uma série de gargalhadas, depois inspirou profunda, prolongadamente, para aumentar o efeito. A sala explodiu em gargalhadas, não só porque essa sequência é uma assinatura de nossa espécie, mas também porque é incrivelmente contagiante. Nos experimentos, os seres humanos imitam automaticamente rostos risonhos exibidos na tela do computador, e o propósito de se acrescentar risadas gravadas às séries cômicas da televisão é produzir o contágio. Análises detalhadas de vídeos acerca do comportamento de grandes primatas encontram mimetismo semelhante. Quando um orangotango jovem se aproxima de outro com cara de riso, o outro adota de imediato a mesma expressão, e é por isso que normalmente ambos os parceiros de brincadeiras riem, e não apenas um deles. Até as aves exibem esse comportamento contagiante. Os papagaios da Nova Zelândia, conhecidos como keas, tornam-se instantaneamente brincalhões quando ouvem as vocalizações melodiosas que acompanham as brincadeiras de sua espécie emitidas por alguém oculto. Os cantos, que se assemelham um pouco ao riso, afetam seu estado de ânimo. Os keas imediatamente convidam outras aves para brincar, pegam brinquedos para manipular ou fazem acrobacias aéreas. Nada é tão contagiante quanto a jocosidade e o riso.
A repetitividade do riso dos primatas deriva da respiração ritmada. Nos símios, o riso começa com uma respiração ofegante audível, que fica cada vez mais vocal quanto mais intenso se torna o encontro. Por si só, separada da brincadeira, a respiração ofegante expressa alívio, alegria e um desejo de contato, como quando uma fêmea de chimpanzé caminha até a sua melhor amiga e emite arquejos audíveis antes de beijá-la. Do mesmo modo, Mama ofegava rapidamente para mim antes de agarrar meu braço, depois balbuciava e estalava os lábios quando me catava. Quando se trabalha com símios, aprende-se a ser cuidadoso e observar os seus sinais. Todos esses sons suaves indicavam boas intenções, tanto que, sem eles, eu talvez relutasse em deixar Mama pegar meu braço.
Nadia Ladygina-Kohts, a cientista russa que há um século comparou o desenvolvimento emocional do jovem chimpanzé Joni com o de seu próprio filho pequeno, deu exemplos de momentos alegres que provocaram o arquejo. Um dia, Joni viu Nadia sair de casa e começou a choramingar, mas assim que ela mudou de ideia e ficou ele correu até ela com arquejos rápidos. Quando Joni esperava uma bronca séria por algum malfeito mas foi tratado cordialmente, ele ofegou em agradecimento. Essa respiração ofegante, que comunica alegria e sentimentos positivos, tornou-se a base do riso, que comunica a mesma coisa, só que muito mais alto.
A brincadeira dos animais pode ser bruta, pois eles lutam, mordiscam, pulam uns sobre os outros e arrastam uns aos outros. Sem um sinal inequívoco para esclarecer suas intenções, o comportamento de brincar pode se confundir com uma briga. Sinais de brincadeira dizem aos outros que eles não têm com o que se preocupar, que nada daquilo é sério. Por exemplo, os cães podem “fazer reverência” (agachar-se nos membros dianteiros e manter o traseiro no alto) para ajudar a separar brincadeira de conflito. Mas, assim que um cão se comporta mal e acidentalmente morde o outro, a brincadeira cessa de repente. Uma nova reverência será exigida como “pedido de desculpas”, a fim de que a vítima ignore a ofensa e retome o jogo.
O riso serve ao mesmo propósito: contextualiza o comportamento do outro. Uma chimpanzé empurra a outra com firmeza para o chão e põe os dentes no pescoço dela, deixando-a sem escapatória, mas, como ambas emitem um fluxo constante de risos roucos, elas ficam totalmente relaxadas. Sabem que aquilo é só diversão. Uma vez que os sinais de brincadeira ajudam a interpretar o comportamento do outro, eles são conhecidos como metacomunicação: comunicam algo sobre a comunicação. Da mesma forma, se me aproximo de um colega e dou um tapa no ombro dele com uma risada, ele perceberá o gesto de forma bem diferente do que faria se eu desse o tapa sem um som ou sem qualquer expressão no meu rosto. Meu riso transmite um metassinal a respeito da mão que o atingiu. Rir reformula o que dizemos ou fazemos, e tira o peso de comentários potencialmente ofensivos, e é por isso que o usamos o tempo todo, mesmo quando nada particularmente divertido está acontecendo.
O riso emite sinais não somente para os companheiros de brincadeira, mas também para o mundo exterior. Quando os outros veem ou ouvem o riso, sabem que está tudo bem. Os chimpanzés são espertos o suficiente para utilizar as risadas dessa maneira. Certa vez analisamos centenas de jogos de luta entre jovens chimpanzés para ver em quais momentos eles riam. Estávamos particularmente interessados em jovens com grande diferença de idade, já que os jogos deles costumavam ser brutos demais para os mais novos. Assim que isso acontecia, a mãe do mais novo entrava em cena, às vezes batendo na cabeça do companheiro de brincadeira. A culpa era sempre do mais velho! Descobrimos que, quando os jovens brincam com bebês, eles riem muito mais quando a mãe do bebê os observa do que quando estão sozinhos. Sob os olhos de uma mãe protetora, o riso projeta um clima alegre, como se dissesse: “Veja como estamos nos divertindo!”.
Se um grupo de pessoas ri e você não faz parte dele, você se sentirá excluído. O riso muitas vezes enfatiza o grupo de pertencimento à custa dos outros grupos. É uma forma tão poderosa de deboche e provocação que alguns propuseram que a hostilidade está em sua raiz. Essas teorias falam em “humor excludente” dirigido a pessoas de fora do grupo ou de raça diferente, e retratam o riso como um ato maligno. O filósofo inglês quinhentista Thomas Hobbes, por exemplo, considerava o riso uma expressão de superioridade, como se todo o propósito do homem ao brincar fosse zombar dos outros. Que vida miserável esse homem deve ter tido!
O riso é muito mais típico das relações afetuosas entre amigos, namorados, cônjuges, pais e filhos etc. Onde estariam os casamentos sem a cola essencial do humor? Eu sou de uma família grande e lembro com carinho das risadas em torno da mesa de jantar, e elas podiam ficar tão fortes que eu me sentia como se estivesse morrendo. Eu tinha de sair da sala para recuperar o fôlego e a compostura. O primeiro riso em nossas vidas ocorre sempre no período da criação, como acontece nos outros primatas. A mãe gorila faz cócegas na barriga de seu bebê com o dedo médio já alguns dias após o nascimento, produzindo a primeira risada. Em nossa própria espécie, mães e bebês têm muitas interações, nas quais prestam atenção a cada mudança na expressão e na voz um do outro, com muitos sorrisos e risos. Esse é o contexto original, totalmente desprovido de malícia.
A estimulação física continua fazendo parte disso, e deve ter uma longa história evolutiva, porque as cócegas também estão ligadas a sons semelhantes a risadas entre os ratos. O falecido neurocientista estoniano-americano Jaak Panksepp fez mais do que qualquer outra pessoa para tornar as emoções animais um tema aceitável de discussão. Panksepp foi inicialmente ridicularizado pela ideia de ratos risonhos. Esses roedores continuam desprezados e subestimados, mas eu, que já os tive como animais de estimação, não tenho dúvidas de que são animais complexos que estabelecem laços e brincam. Panksepp notou que os ratos gostam que dedos humanos lhes façam cócegas, tanto que voltam para pedir mais. Quando retiramos a mão e a levamos a outro lugar, eles a seguem, buscando estímulo enquanto emitem rajadas de pios de 50 kHz que estão acima do alcance da audição humana.
Um apreciador de ratos anônimo tentou isso em casa:

Decidi fazer uma pequena experiência com Pinky, o jovem rato de estimação do meu filho. Dentro de uma semana, Pinky ficou completamente condicionado a brincar comigo e, de vez em quando, até emite um guincho agudo que posso ouvir. Assim que entro no quarto, ele começa a roer as barras de sua gaiola e pula como um canguru até eu fazer cócegas nele. Ele ataca minha mão, mordisca, lambe, rola de costas para expor a barriga a fim de que eu faça cócegas (é o seu lugar preferido), e dá chutes de coelho quando luto com ele.

Panksepp concluiu que, para os ratos, receber cócegas é uma experiência gratificante (daí eles buscarem a mão) que requer o estado de ânimo certo. Se os animais estiverem ansiosos ou assustados, por cheiro de gato ou luzes brilhantes, por exemplo, nem cócegas fartas provocarão riso. O entusiasmo deles depende também de experiência e familiaridade anteriores, porque os ratos se aproximam com mais avidez de uma mão que lhes fez cócegas, enquanto emitem um pio agudo, do que de uma mão que só os acariciou. Os ratos fazem pequenos movimentos divertidos, conhecidos como “pulinhos de alegria”, que são típicos de todos os mamíferos que brincam, como cabras, cães, gatos, cavalos, primatas e assim por diante. As vacas brincalhonas de Darwin logo vêm à mente. Embora os animais possuam todos os tipos de sinais de jogo, a única constante é um salto aleatório abrupto. Eles dançam em sua direção com as costas arqueadas (gatos) ou giram em torno de seu eixo e pulam no sofá proibido (cachorros) para mostrar como estão prontos para uma perseguição. O pulinho de alegria é tão reconhecível que é facilmente entendido entre as espécies. Em cativeiro, um filhote de rinoceronte pode brincar com um cachorro, ou um cão com uma lontra, ou um potro com uma cabra, e na selva observaram-se chimpanzés jovens lutando com babuínos, e corvos e lobos se provocando. O jogo tem sua própria linguagem universal.
Podemos usar o riso para desarmar uma situação constrangedora ou tensa. Isso é menos comum em outras espécies, mas não está excluído. Entre os chimpanzés, vi machos esfriarem um conflito em potencial. Três machos adultos, com todos os pelos eriçados, haviam acabado de realizar impressionantes exibições de ataque. É uma situação muito tensa, potencialmente perigosa, na qual os rivais testam os nervos um do outro. Eles balançam de galho em galho, desalojam pedras pesadas, arremessam coisas e batem em superfícies ressonantes. Mas, quando esses três machos se afastaram da cena, de repente um deles literalmente puxou a perna de outro. Este macho resistiu e tentou libertar o pé, sem parar de rir. Então o terceiro entrou na jogada, e em pouco tempo três grandes machos galopavam, batiam nas laterais do corpo um no outro e soltavam gargalhadas roucas, enquanto os pelos voltavam ao lugar. A tensão fora quebrada.
Aristóteles achava que o riso era o que diferenciava os seres humanos dos animais, e muitos psicólogos ainda duvidam que algum animal ria de alegria ou porque alguma coisa é engraçada. Sabe-se muito bem, no entanto, que os símios adoram comédias pastelão, provavelmente por causa de todos os contratempos físicos. Quando uma pessoa de quem gostam caminha na direção deles e escorrega ou cai, sua primeira reação é de tensão preocupada, mas se a pessoa fica bem eles riem com aparente alívio, como fazemos em circunstâncias semelhantes. Já descrevi o riso de Mama quando descobriu que havia sido enganada por um ser humano com máscara de pantera. Reações similares podem ser vistas em bonobos. Há muito tempo, o recinto dos bonobos no Zoológico de San Diego tinha um fosso profundo e seco para separá-los do público. No lado dos bonobos, uma corrente de plástico pendia no fosso para que os macacos descessem e voltassem sempre que quisessem. Mas, quando o macho alfa Vernon descia, o adolescente macho Kalind às vezes puxava rapidamente a corrente para cima. Vernon ficava preso, enquanto Kalind olhava para ele com uma grande cara de riso e batia na lateral do fosso. Ele estava zombando do chefe. A única outra bonobo adulta presente normalmente corria para a cena a fim de resgatar o companheiro largando a corrente de volta, e ficava de guarda até que ele saísse.
Outra risada divertida foi filmada por pesquisadores de campo japoneses na África Ocidental. Um chimpanzé selvagem de nove anos de idade estava esmagando coquinhos com pedras, usando uma técnica comum de martelo e bigorna. Um por um, ele punha os coquinhos na superfície plana de uma pedra grande, enquanto segurava uma pedra pequena na outra mão, depois batia com ela até que os coquinhos quebrassem. Na floresta não é fácil encontrar a combinação certa de pedras para essa tarefa. A mãe do macho olhou para suas ferramentas perfeitas antes de se aproximar e começar a catá-lo. Isso costuma ser um convite para retribuir a catação, então, quando ela terminou, ficou ali esperando que ele girasse e a catasse. Ao fazer isso, ele deixou de cuidar de suas pedras, e em poucos segundos a mãe se apossou delas. Parecia intencional, como se a aproximação e o breve catar tivessem sido uma forma de distraí-lo. No exato momento em que ela pegou as ferramentas dele, foi possível ouvi-la e vê-la rir suavemente consigo mesma, feliz porque a pequena maquinação funcionara.
Essa é uma evidência anedótica, claro, mas esses incidentes sugerem que o riso dos símios pode ser mais do que apenas um sinal de brincadeira. Às vezes, parece se aproximar do significado mais amplo de regozijo, vínculo e ruptura de tensão que conhecemos de nossa própria espécie.

Frans de Waal, in O último abraço da matriarca

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