sábado, 29 de janeiro de 2022

Pé calçado, pé descalço...

No grupo, as classes sociais estavam claramente definidas. Eram definidas pelos sapatos.
Havia, primeiro, os meninos que iam sem sapato. Isso queria dizer que os pais eram tão pobres que não tinham dinheiro para comprar sapatos. Dentre todos os pés descalços, os mais famosos eram os pés do Estelino, que se pareciam com nadadeiras, pé de pato. Os meninos eram malvados. Não perdoavam. Na rua, terminada a escola, gritavam: “Estelino pé de pato...” . O Estelino respondia: “Pé de pato, pé de pinto, vá peidar lá pros esquinto...” (“os quintos dos infernos”). Não era o sentido que importava. O que importava era a rima. Eram sempre os meninos que iam sem sapato.
Havia depois os ricos, que iam calçados. Eu era rico. Ia com os dois pés calçados. Mas sem meia. Não se usava.
E havia a “classe média”. Os da classe média eram aqueles que iam com um pé calçado e outro descalço. Isso mais acontecia com irmãos: um ia com o pé direito calçado e o esquerdo descalço. O outro ia com o pé esquerdo calçado e o direito descalço. Dessa forma, a função de proteção e higiene dos sapatos ficava anulada. Mas sua função era outra. Os pais que assim mandavam os filhos à escola estavam dizendo: “Somos pobres, mas não tanto...” .
Eu achava aquilo o máximo. Tinha inveja deles. Implorei à minha mãe que me deixasse ir com um pé calçado e o outro descalço. Ela não deixou. Não me entendeu. Não compreendeu que, naquele meu desejo, já se delineavam as minhas futuras lealdades políticas.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Nenhum comentário:

Postar um comentário