sábado, 29 de janeiro de 2022

Rio de sangue | 12

Estela saiu desvairada pelo caminho que deixava a casa dos marimbus, como se corresse de um incêndio. Seus filhos choravam e foram amparados por Santa e a filha, que andavam pela mesma estrada carregando trouxas de roupa e peixes. O grito da mulher havia sido tão desesperador que mobilizou boa parte dos moradores das cercanias. Estava vestida com uma camisola branca feita de um tecido delicado e quase transparente. Era possível ver os mamilos de seus seios jovens, rijos, por trás do tecido, movimentando-se agitados ao sabor dos nervos abalados. Ninguém conseguia entender o que ela dizia e o choro das crianças havia se tornado mais nítido porque chamavam pela mãe. Chamavam para que retornasse ao seu lugar, que os amparasse. Os homens replicaram para as mulheres e a notícia correu de casa em casa e pela estrada, com a velocidade das más notícias. Salomão estava morto.
Salu se deslocou da curta distância de sua casa até a casa de Bibiana para relatar o que havia lhe chegado. A filha, que estava corrigindo os cadernos, continuou de cabeça baixa, mas depois retirou os óculos e pediu à mãe que sentasse. “A senhora está nervosa? Descanse um pouco, minha mãe”, serviu uma xícara de café e levou para a sala. “Ele tinha muitos inimigos, minha mãe”, disse retornando aos cadernos e baixando a cabeça novamente, “mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer”.
A mãe bebeu um gole do café, “tinha tanto lugar para acontecer, porque logo nesta fazenda, se ele tinha outras fazendas e vivia aqui e acolá?”. “Essas coisas não escolhem lugar, não, minha mãe, acontecem onde têm que acontecer.” Bibiana parecia falar no tom de voz conformado de uma viúva que ainda não havia completado seu primeiro ano de luto. “É bom que ela sinta na pele o que eu ainda sinto”, disse, sem olhar para a mãe.
O que é isso, Bibiana? Foi essa a educação que eu e seu pai lhe demos? Não se deseja mal a ninguém, por pior que possa lhe parecer.”
Deveriam ter queimado a casa com a mulher e as crianças dentro. Assim não haveria herdeiros para tentar retirar a gente daqui...”
Salu levantou de súbito e derrubou a cadeira na agitação. Bibiana ergueu a cabeça para olhar a mãe. Ainda teve tempo para dizer que poderia deixar a cadeira no chão, que ela mesma colocaria no lugar. A mãe, velha, que tanta dificuldade passou durante a vida, se sentiu indignada com a violência do desejo de sua filha. Desferiu um tapa no seu rosto. Aquela era a segunda vez que batia numa de suas filhas. Recordou da primeira vez, da surra em Belonísia por causa do beijo que Bibiana disse ter visto. Agora ela levava a mão à face que ardia do golpe. Seus olhos de imediato se encheram de lágrimas.
Não pensei nunca precisar fazer isso em você depois de velha, Bibiana, depois de você ter me dado netos. Mas não criei filhos para andarem pela terra fazendo o mal a ninguém. Não se deseja a morte de ninguém. Já não basta o que se abateu sobre esta casa? Você quer mais castigo sobre a gente?” Salu se dirigiu para a porta, enxugando com as costas das mãos as lágrimas que acabavam de deixar seus olhos. “Estou cansada, Bibiana. Essa não foi a vida que desejei, e temo pelos meus netos. Que mundo vamos deixar para eles?”, perguntou, enquanto ultrapassava o batente da porta.
Bibiana ficou de pé, mas não levantou a cadeira caída. Quando a mãe estava suficientemente longe, desabou num choro que só havia se permitido na noite em que o filho disse que cuidaria dela. Suas mãos doíam, feridas, e as deixou se agitarem no ar como se aquele movimento pudesse aliviar seu padecimento. Nem a notícia de que o homem que acreditava ser o mentor do crime contra Severo estava morto a deixou aliviada. A ausência que sentia parecia se dilatar à medida que o tempo passava. Continuava a abrir uma cova profunda em sua dor. A certeza mais difícil de constatar era que nada, nem mesmo a posse da terra, o traria de volta.
Belonísia, que havia saído antes de o sol nascer, retornou ao meio-dia. Trazia aipim, batata-doce e uma abóbora grande. Colocou tudo em cima da mesa da cozinha. Domingas, o marido e Zezé estavam na sala, sentados ao lado da mãe. Quando ouviu Salu dizer o que tinha ocorrido com Salomão, ficou parada por um tempo, mostrando-se surpresa com a notícia. Levantou o queixo para o irmão, interrogou com os movimentos dos lábios e das mãos, queria saber cada detalhe. Salomão havia aparecido quase degolado, caído numa vereda no meio da mata, mas não muito distante da margem do rio Santo Antônio. O cavalo que montava foi visto perto da casa de vidro, pastando as plantas que cresciam na beira dos marimbus. Disseram que, quando a mulher saiu e encontrou o cavalo perto de casa, achou estranho. Tião e Isidoro, que haviam saído para pescar, encontraram o corpo nesse lugar, na vereda, ao lado de uma cova grande. O grande mistério, sobre o qual discutiam no momento em que adentrou a casa: a cova. Uns disseram que surgiu do dia para a noite. Outros disseram que ela foi crescendo com o passar do tempo. Mas que não parecia feita por mãos de homem. Como se a terra estivesse cedendo, formando um poço largo e profundo.
Belonísia sentiu falta de Bibiana entre os irmãos e quis saber se ela já sabia. Sim, responderam. Salu estava amargurada pela reação de Bibiana, mas não quis contar a reação que ela teve. Sentia-se envergonhada pelo ódio da filha. Belonísia imaginou como deveria ter sido dolorido para a irmã ter que escutar tudo aquilo, enquanto procurava respostas para a morte do marido. Por isso, decidiu não procurá-la naquele instante.
Quando se afastou para desarrumar a sacola que havia deixado na cozinha, caiu dura e desacordada, como um pássaro abatido em pleno voo. No meio do alvoroço que se formou com o mal-estar súbito, o cunhado e o irmão a carregaram para o quarto de Salu. A mãe começou a rezar enquanto retirava o lenço que recobria o cabelo de Belonísia. Domingas descalçou a bota, e desabotoou a calça e a camisa de manga comprida sujas de terra. Ao despertar, ela não se lembrava de nada. Não se lembrava da morte de Salomão, nem como havia chegado ao quarto da mãe. Não recordava a exaustão do trabalho. Era como se este dia tivesse sumido de seu calendário. Agitou-se querendo levantar da cama. Salu pediu que continuasse deitada, precisava descansar. “Deve ter sido o calor”, disse a mãe, entregando-lhe um copo de água, “Se alimentou antes de sair, Belô?”, insistiu sem obter resposta, tentando descobrir a origem do mal-estar da filha. Belonísia parecia distante e cansada. Bebeu a metade do copo e tornou a deitar com os olhos fixos na palha do teto. Depois caiu num sono profundo e acordou apenas no dia seguinte.
No mesmo dia, vieram duas viaturas da polícia com investigadores. A fazenda ficou sitiada de homens armados colhendo depoimentos de todos os que haviam encontrado Salomão: dos que residiam pela estrada, embora ele tivesse sido encontrado numa área desabitada, de mata fechada. As chuvas dos últimos meses haviam sido regulares, o que contribuiu para que as folhas crescessem e sombreassem os caminhos. Lugares antes cercados de árvores secas e com boa visibilidade se tornaram mata fechada, onde os poucos habituados poderiam se perder com facilidade. As perguntas não cessavam. Queriam saber sobre possíveis ameaças que a vítima ou terceiros tivessem comentado com os subordinados, sobre desafetos entre os trabalhadores e Salomão, sobre movimentos suspeitos, carros, motocicletas, desconhecidos que tivessem passado pelas últimas semanas pela fazenda, que tivessem estudado seus hábitos. Suspeitos que sabiam qual a melhor hora para executar o crime. Os moradores de Água Negra começaram a se sentir desconfortáveis. Duvidavam que dentre eles alguém pudesse ter cometido aquela barbárie.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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