domingo, 30 de janeiro de 2022

Pavese e os sacrifícios humanos

Cesare Pavese

Todo romance de Pavese gira ao redor de um tema oculto, de uma coisa não dita que é a verdadeira coisa que ele quer dizer e que só se pode dizer silenciando-a. Estreitamente se tece em torno uma trama de sinais visíveis, de palavras pronunciadas: cada um desses sinais tem por sua vez uma face secreta (um significado polivalente ou incomunicável) que conta mais do que aquela evidente, mas o seu verdadeiro significado está na relação que os une à coisa não dita.
La luna e i faló [A lua e as fogueiras] é o romance de Pavese mais denso de signos emblemáticos, de motivos autobiográficos, de enunciações sentenciosas. Até demais: como se do modo pavesiano característico de narrar, reticente e elítico, se desprendesse de repente aquela prodigalidade de comunicação e de representação que permite ao conto transformar-se em romance. Mas a verdadeira ambição de Pavese não estava nesse sucesso romanesco: tudo aquilo que ele nos diz converge numa única direção, imagens e analogias gravitam sobre uma preocupação obsessiva: os sacrifícios humanos.
Não era um interesse momentâneo. Relacionar a etnologia e a mitologia greco-romana à sua autobiografia existencial e à sua construção literária fora o programa constante de Pavese. Na base de sua dedicação aos estudos dos etnólogos permanecem as sugestões de uma leitura juvenil: The golden bough [O ramo de ouro] de Frazer, uma obra que já fora fundamental para Freud, para Lawrence, para Eliot. The golden bough é uma espécie de volta ao mundo em busca da origem dos sacrifícios humanos e das festas do fogo. Temas que retornarão nas evocações mitológicas dos Dialoghi con Leucò [Diálogos com Leucò], cujas páginas sobre os ritos agrícolas e as mortes rituais preparam La luna e i faló. Com esse romance a exploração de Pavese se conclui: escrito entre setembro e novembro de 1949, foi publicado em abril de 1950, quatro meses antes que o autor acabasse com a vida, depois de ter lembrado numa carta os sacrifícios humanos dos astecas.
Em La luna e i faló, a personagem que diz “eu” retorna aos vinhedos da terra natal depois de ter feito fortuna nos Estados Unidos; o que busca não é somente a lembrança ou a reinserção numa sociedade ou a revanche sobre a miséria da juventude; procura o porquê de uma aldeia ser uma aldeia, o segredo que une lugares, nomes e gerações. Não por acaso é um “eu” sem nome: é um enjeitado de hospital, foi educado por agricultores pobres como mão de obra com salário ínfimo; e se tornou homem emigrando para os Estados Unidos, onde o presente tem menos raízes, onde cada um está de passagem e não tem de prestar contas de seu nome. Agora, de volta ao mundo imóvel de seus campos, quer conhecer a última substância daquelas imagens que são a única realidade de si mesmo.
O pesado fundo fatalista de Pavese é ideológico só como ponto de chegada. A zona cheia de colinas do Baixo Piemonte onde ele nasceu (“a Langa”) é famosa não só pelos vinhos e trufas, mas também pelas crises de desespero que golpeiam endemicamente as famílias camponesas. Pode-se dizer que não há semana em que os jornais de Turim não noticiem que um agricultor se enforcou ou se jogou no poço, ou então (como no episódio que está no centro desse romance) pôs fogo na casa, dentro da qual estavam ele mesmo, os animais e a família.
Certamente não é só na etnologia que Pavese procura a chave desse desespero autodestrutivo: o fundo social dos vales de pequena propriedade atrasada acha-se aqui representado nas várias classes com o desejo de completitude de um romance naturalista (isto é, de um tipo de literatura que Pavese sentia tão oposta à sua a ponto de considerar-se em condições de girar ao redor dela e anexar-lhe os territórios). A juventude do enjeitado é a de um servitore di campagna, uma expressão cujo significado poucos italianos conhecem, exceto — esperemos que por pouco tempo mais — os habitantes de algumas zonas pobres do Piemonte: um grau abaixo do assalariado, o rapaz que trabalha para uma família de pequenos agricultores ou meeiros e só recebe a comida e o direito de dormir no celeiro ou na estrebaria, mais uma paga mínima anual ou em cada estação.
Mas identificar-se com uma experiência tão diferente da sua é para Pavese apenas uma das tantas metáforas de seu tema lírico dominante: sentir-se excluído. Os capítulos mais belos do livro relatam dois dias de festa: um deles vivido pelo jovem desesperado que ficou em casa porque não tem sapatos, e o outro, pelo rapaz que deve guiar a charrete das filhas do patrão. A carga existencial que se celebra e se desafoga na festa, a humilhação social que busca a revanche, animam essas páginas em que se baseiam os vários planos de conhecimento sobre os quais Pavese desenvolve a sua pesquisa.
Uma necessidade de conhecimento arrastara o protagonista de volta à terra natal; e poderíamos distinguir pelo menos três planos sobre os quais a pesquisa se desenvolve: plano da memória, plano da história, plano da etnologia. Fato característico da posição pavesiana é que sobre os dois últimos planos (histórico-político e etnológico) é uma única personagem que funciona como Virgílio para aquele que narra. O carpinteiro Nuto, tocador de clarinete na banda cívica, é o marxista da aldeia, aquele que conhece as injustiças do mundo e sabe que o mundo pode mudar, mas também aquele que continua a acreditar nas fases da lua como condição para as várias operações agrícolas e nas fogueiras de São João que “despertam a terra”. A história revolucionária e a anti-história mítico-ritual têm nesse livro a mesma voz. Uma voz que é apenas um resmungo entre os dentes: Nuto é uma daquelas figuras impossíveis de se imaginar mais fechada e taciturna. É a situação antípoda de qualquer profissão de fé declarada; o romance consiste todo nos esforços do protagonista para arrancar quatro palavras da boca de Nuto. Mas é só assim que Pavese fala verdadeiramente.
O tom de Pavese quando se refere à política é sempre um tanto brusco e tranchant, sacudindo os ombros, como quando tudo já foi entendido e não vale a pena desperdiçar outras palavras. Ao contrário, não havia nada de entendido. O ponto de sutura entre o seu “comunismo” e a recuperação de um passado pré-histórico e atemporal do homem está longe de ser esclarecido. Pavese tinha plena consciência de que trabalhava com os materiais mais comprometidos com a cultura reacionária de nosso século: sabia que, se existe uma coisa com a qual não se pode brincar, isso é o fogo.
O homem que regressa à aldeia depois da guerra registra impressões, segue um fio invisível de analogias. As marcas da história (os cadáveres de guerrilheiros e de fascistas que de vez em quando o rio ainda traz até o vale) e os vestígios do rito (as fogueiras de pilriteiro acesas todos os verões no alto dos morros) perderam significado na memória lábil dos contemporâneos.
Que fim levou Santina, a bela e imprudente filha dos patrões? Era de fato uma espiã dos fascistas ou estava de acordo com os guerrilheiros? Ninguém pode dizê-lo com certeza, pois aquele que a conduzia era um abandonado qualquer no sorvedouro da guerra. E é inútil procurar o seu túmulo: depois de tê-la fuzilado, os guerrilheiros a envolveram em ramos secos de videira e puseram fogo no cadáver. “Ao meio-dia, era pura cinza. No ano seguinte, lá estava ainda a marca, feito a cama de uma fogueira.”

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

Nenhum comentário:

Postar um comentário