domingo, 30 de janeiro de 2022

O álbum branco | 9

Na Faculdade Estadual de São Francisco, naquela manhã, o vento soprava a chuva fria em rajadas sobre os gramados lamacentos e contra as janelas iluminadas das salas vazias. Dias antes tinha havido incêndios, aulas invadidas e um confronto com a Unidade Tática da polícia da cidade. Nas semanas seguintes, o campus ia se tornar o que muitas pessoas ficariam contentes de chamar de “campo de batalha”. A polícia, o gás lacrimogêneo e as prisões ao meio-dia se tornariam rotina na faculdade, e toda noite os combatentes recapitulariam o dia deles na televisão: as ondas de estudantes avançando, a comoção no canto do enquadramento, os cassetetes reluzindo, o instante de câmera trêmula que servia para sugerir a qual preço a filmagem tinha sido obtida; então um corte para a previsão do tempo. No começo houvera o indispensável “problema”, a suspensão de um professor de 22 anos que, por acaso, também era ministro da Educação do Partido dos Panteras Negras, mas esse problema, como a maioria, logo havia deixado de ser o objetivo até mesmo na mente dos participantes mais idiotas. A desordem era o objetivo.
Eu nunca antes tinha estado em um campus nessa situação, perdera até mesmo Berkeley e Columbia, e suponho que fui à Estadual de São Francisco esperando encontrar algo diferente do que encontrei. Em certo sentido, nada trivial, o cenário estava errado. A própria arquitetura das faculdades estaduais da Califórnia tende a negar ideias radicais. Em vez disso, reflete uma visão burocrata de bem-estar progressista, modesta e esperançosa. Enquanto eu andava de um lado para outro do campus naquele dia e nos dias seguintes, todo o dilema da Estadual de São Francisco — a politização gradual, os “problemas” aqui e ali, as “quinze demandas” obrigatórias, a agitação contínua da polícia e dos cidadãos indignados — parecia cada vez mais fora do tom, um caso de enfants terribles e conselho administrativo colaborando inconscientemente em uma fantasia ilusória (Revolução do Campus) e a levando a cabo a tempo do noticiário das seis horas. “Reunião do comitê de porpaganda no Redwood Room”, lia-se em uma anotação rabiscada na porta do refeitório certa manhã; apenas alguém muito desesperado responderia com tanta força um bando de guerrilheiros que não só anunciavam a própria reunião no quadro de avisos do inimigo como pareciam alheios à ortografia, e também ao significado, das palavras que usavam. “Hayakawa Hitler” era como alguns docentes começaram a chamar S.I. Hayakawa, o semanticista que se tornara o terceiro reitor da faculdade em um ano e tinha se exposto a um descontentamento considerável ao tentar manter o campus aberto.
Eichmann”, Kay Boyle gritara para ele em uma manifestação. Com esses poucos e amplos traços estava sendo pintado o outono de 1968 no campus de tons pastel da Estadual de São Francisco.
O lugar simplesmente nunca parecia sério. As manchetes eram sombrias naquele primeiro dia, a faculdade fora fechada “por tempo indeterminado”, tanto Ronald Reagan quanto Jesse Unruh ameaçavam represálias. Ainda assim, a atmosfera dentro do prédio da administração era a de uma comédia musical sobre a vida universitária.
De jeito nenhum a gente vai abrir amanhã”, informavam secretárias àqueles que telefonavam. “Vá esquiar, divirta-se.”
Militantes negros em greve apareciam para conversar com os reitores; radicais brancos em greve fofocavam nos corredores.
Sem entrevistas, sem imprensa”, anunciou um estudante líder da greve ao entrar no escritório do reitor, onde eu estava. No momento seguinte, ele ficou irritado porque ninguém tinha lhe dito que uma equipe de filmagem do Huntley-Brinkley estava no campus.
A gente ainda pode entrar nessa”, disse o reitor com calma.
Todo mundo parecia unido em uma camaradagem um tanto festiva, em um jargão em comum, em um senso compartilhado de momento: o futuro não era mais árduo e indefinido, era imediato e programático, radiante com a perspectiva dos problemas a serem “endereçados”, dos planos a serem “implementados”. Era um consenso que os confrontos podiam representar “uma evolução muito saudável”, que talvez uma paralisação fosse necessária para “algo ser feito”. O clima, como a arquitetura, era o funcional de 1948, um modelo de otimismo pragmático.
Talvez Evelyn Waugh pudesse ter descrito isso do jeito certo: Waugh era bom com cenas de autoilusão elaborada, cenas de pessoas absorvidas por jogos estranhos. Aqui, na Estadual de São Francisco, só os militantes negros podiam ser levados a sério. Para todos os efeitos, eles estavam escolhendo as partidas, ditando as regras e extraindo o que podiam daquilo que, para todos os outros, parecia apenas uma agradável fuga da rotina, da ansiedade institucional, do tédio do calendário acadêmico. Enquanto isso, os administradores podiam falar dos cursos. Enquanto isso, os radicais brancos, que não tinham nada a perder, podiam se ver como guerrilheiros urbanos. Esse jogo na Estadual de São Francisco era bom para todo mundo, e as virtudes peculiares dele nunca ficaram tão claras para mim quanto na tarde em que participei de uma reunião de cinquenta ou sessenta membros da Students for a Democratic Society. Eles tinham convocado uma coletiva de imprensa para mais tarde naquele dia, e agora discutiam “exatamente qual deveria ser o formato da coletiva de imprensa”.
Tem que ser nos nossos termos”, advertiu alguém. “Porque eles vão fazer perguntas bem capciosas, vão fazer perguntas.”
Mande submeterem todas as perguntas por escrito”, sugeriu outra pessoa. “A União dos Estudantes Negros faz isso e é muito bem-sucedida. Eles simplesmente não respondem nada que não queiram responder.”
Boa. Não caiam na armadilha.”
Algo que a gente devia enfatizar nessa coletiva de imprensa é quem controla a mídia.”
Você não acha que é de conhecimento geral que os jornais representam interesses corporativos?”, interrompeu uma pessoa com bom senso entre eles, em dúvida.
Não acho que isso seja compreendido…”
Duas horas e dezenas de votações depois, o grupo havia selecionado quatro membros para dizer à imprensa quem controlava a mídia, tinha decidido comparecer en masse a uma coletiva de imprensa e debatido várias palavras de ordem para a manifestação do dia seguinte.
Vamos ver, primeiro nós temos ‘William Randolph Hearst só conta o que quer’, aí ‘Chega de distorção da imprensa’ — essa é aquela que deu alguma controvérsia política…”
Antes de se dispersarem, eles ouviram um estudante que tinha vindo da Faculdade de San Mateo, uma instituição localizada descendo a península a partir de São Francisco.
Vim aqui hoje com alguns estudantes do Terceiro Mundo para dizer que estamos com vocês, e esperamos que estejam do nosso lado quando a gente tentar fazer uma greve na semana que vem, porque a gente está nessa de verdade, a gente carrega nossos capacetes o tempo todo, não consegue pensar, não consegue ir para aula.”
Ele fez uma pausa. Era um rapaz bonito, entusiasmado pela incumbência dele. Pensei na suave melancolia da vida em San Mateo, que é um dos condados com maior riqueza per capita dos Estados Unidos, e pensei se Wichita Lineman e as pétalas em um galho preto e molhado representavam ou não a falta de propósito da burguesia. Pensei na ilusão de um objetivo a ser alcançado com uma coletiva de imprensa, sendo o único problema das coletivas de imprensa o fato de que a imprensa fazia perguntas.
Vim aqui para dizer que, na Faculdade de San Mateo, estamos vivendo como revolucionários”, falou o garoto então.

Joan Didion, in O álbum branco

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