sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
A crise do mundo: falta de amor
“Sou otimista com relação ao homem. Não penso em Hitler sem me lembrar também de Mozart. Acho que o homem é um animal agressivo, não há dúvida, mas a diferença entre ele e o lobo é que a criatura humana pensa, é ao mesmo tempo sujeito e objeto, tem a capacidade de ver o seu lado negativo e deplorá-lo. Não ignora que tem um futuro. Tem também a consciência de sua finitude. É – salvo as aberrações – capaz de compaixão, de contrição e de amor. E a crise do mundo moderno não será principalmente a falta de amor?”
Érico Veríssimo, in Incidente em Antares
Uma prece
O
sol caía atrás das colinas dentadas, quebradas no ocidente. O
conteúdo da panela fervia penosamente sobre a fogueira. A mãe
entrou na tenda e voltou com o avental cheio de batatas, deixando-as
cair na água fervente.
— Peço
a Deus pra poder lavar logo um pouquinho de roupa. A gente nunca
andou tão suja como agora. Nem as batatas a gente lava mais antes de
cozinhar. Por que isso, hem? Até parece que todos nós perdemos a
coragem.
Os
homens vinham chegando, os olhos cheios de sono, e tinham o rosto
vermelho e inchado, já que não estavam acostumados a dormir de dia.
— Que
foi que houve? — perguntou o pai.
— Vamo
embora — disse Tom. — O polícia diss’pra gente sair daqui. É
bom até, só assim a gente acaba logo com essa viagem. Quanto mais
cedo se sai, mais cedo se chega. Só falta uns quinhentos
quilômetros.
— Eu
pensei que a gente ia descansar um pouco — disse o pai.
— É,
mas não pode ser. A gente tem que ir já, pai — disse Tom. — O
Noah não vem. Ele foi embora, rio abaixo.
— Não
vem? Que diabo ele tem? — E depois estacou bruscamente. — A culpa
é minha — disse abatido. — Aquele rapaz... É culpa minha.
— Que
nada!
— Não
quero mais falar sobre isso — disse o pai. — Não posso falar, a
culpa é minha.
— Bem,
a gente tem que ir de qualquer jeito.
Wilson
interveio agora.
— Nós
não podemos ir, pessoal — disse. — A Sairy não pode mais; ela
está esgotada. Precisa descansar. Se tiver que atravessar o deserto
neste estado, ela morre.
Silenciaram
todos. Depois Tom disse:
— Um
polícia teve aqui e diss’que bota a gente na cadeia se a gente
tiver aqui amanhã ainda.
Wilson
sacudiu a cabeça. Seus olhos estavam vidrados de preocupação, seu
rosto empalideceu sob a tez queimada de sol.
— Então,
ele que nos bote na cadeia. A Sairy não pode viajar deste jeito. Ela
tem que descansar pra ganhar forças.
— É
melhor todo mundo ficar e esperar — disse o pai.
— Não
— disse Wilson. — Vocês todos têm sido muito bons com a gente;
não posso permitir que fiquem. Vocês têm que continuar a viagem,
tratar de arrumar trabalho. Não posso permitir que fiquem.
— Mas
vocês já não têm mais nada! — disse o pai com excitação.
Wilson
sorriu:
— Antes
também não tínhamos nada, quando vocês nos encontraram. Vocês é
que não devem se incomodar com isso. Continuem a viagem, senão eu
perco as estribeiras e brigo já-já com vocês.
A
mãe arrastou o pai até o interior da tenda, e falou baixinho com
ele. Wilson voltou-se para Casy:
— A
Sairy pede pro senhor ir ver ela.
— Pois
não — disse o pregador.
Foi
até a pequena tenda cinza que pertencia aos Wilson, afastou os lados
e entrou. Estava escuro e quente ali dentro. O colchão estava
estendido na terra, e ao redor dele espalhavam-se os pertences do
casal, tal como haviam sido descarregados pela manhã. Sairy estava
deitada no colchão, os olhos muito abertos e brilhantes. Casy parou
e olhou-a, a grande cabeça curvada e os músculos tesos do pescoço
avultando-se dos lados. Tirou o chapéu e ficou a segurá-lo na mão.
— Meu
marido já disse que a gente não podia continuar a viagem?
— Já,
sim senhora.
— Eu
queria que pudéssemos ir também. Sabia que não iria viver o
bastante para chegar até onde pretendíamos, mas queria que ao menos
ele chegasse. Mas ele não quer. Ele não sabe; pensa que eu vou
ficar boa. É que ele não sabe.
— O
sr. Wilson disse que não quer ir.
— Sim,
ele é teimoso. Pedi pro senhor vir aqui pra rezar por mim.
— Mas
eu não sou mais um pregador — disse ele em voz baixa. — Minhas
preces não adiantam.
Ela
umedeceu os lábios.
— Eu
vi o senhor fazer uma prece quando o avô morreu.
— Mas
aquilo não era uma prece.
— Era,
sim. Eu ouvi.
— Não
era prece de um pregador.
— Mas
foi uma bonita prece. Queria que o senhor dissesse uma assim por mim.
— Não
sei o que dizer.
Ela
cerrou os olhos por um instante e logo tornou a abri-los.
— Então
diga para si mesmo. Não precisa dizer alto. Serve assim mesmo.
— Eu
não tenho mais Deus.
— Tem,
sim, eu sei que tem. Não importa o senhor saber ou não o que Ele é,
mas tem sim.
O
pregador curvou a cabeça. Ela o olhou com apreensão. E quando ele
tornou a erguer a cabeça, ela parecia aliviada.
— Isso
foi bom — disse ela. — Era o que eu queria. Alguém perto de mim,
rezando.
Ele
sacudiu a cabeça, como se quisesse despertar de um sonho.
— Não
compreendo... não entendo isso tudo — disse.
E
ela replicou:
— Sim,
o senhor sabe. Não é verdade?
— Sei,
eu sei mas não entendo. Eu... bem, daqui a uns dias a senhora com
certeza estará boa e poderá continuar a viagem.
Ela
moveu a cabeça vagarosamente.
— Eu
não passo de um monte de sofrimentos, coberto de pele. Sei o que é,
mas não quero dizer a meu marido. Ele ia ficar muito triste. Não
adiantava mesmo dizer. Que é que ia fazer? Talvez de noite, quando
ele estiver dormindo... quando acordar, talvez não seja tão ruim
assim.
— A
senhora quer que eu fique aqui com a senhora?
— Não
— disse ela. — Não. Quando eu era criança, gostava muito de
cantar. O povo dizia que eu cantava tão bem como Jenny Lind. E todo
mundo vinha me ouvir cantar. E quando me ouviam, ficavam bem juntos
de mim. E eu me sentia mais próxima deles do que nunca. E me sentia
muito grata. Não acontece muitas vezes a gente ser tão feliz,
sentir os outros tão próximos da gente... como daquela vez que eles
me cercavam todos. Pensava até em cantar um dia num palco, mas nunca
o fiz. Assim, nada se meteu entre mim e eles. Queria sentir mais uma
vez que tinha alguém perto de mim. Cantar ou rezar, é a mesma
coisa. Só gostaria que o senhor pudesse me ouvir cantar.
Ele
a olhou bem nos olhos.
— Bom,
até logo — disse.
Novamente,
ela sacudiu com vagar a cabeça, apertando os lábios. E o pregador
deixou a tenda obscura e viu-se de novo sob a luz ofuscante.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
O locutor esportivo
O
locutor esportivo mais festejado em 1929 foi Anselmo Fioravanti, que
não entendia de futebol e por isso inventava.
Sua
estreia ao microfone gerou uma tempestade de protestos. Os ouvintes
exigiam sua dispensa, mas o diretor da estação considerou que
muitos outros se pronunciaram encantados com Anselmo, classificado
como humorista de primeira água. Foi mantido, e sua atuação
despertou sempre o maior sucesso. Jogo narrado por ele era muito mais
fascinante do que a verdadeira partida.
Anselmo
creditava o gol ao time cujo arco fora vazado. Trocava os nomes dos
jogadores, invertia posições e fazia com que o clube derrotado
empatasse ou ganhasse, conforme a inspiração do momento. Na
verdade, ele não mentia. Apenas, ignorava as regras mais comezinhas
do esporte e contava o que lhe parecia estar certo.
Torcedores
e agremiações o tinham em alta conta, porque ele mantinha aceso o
interesse pelo futebol. Os vencedores de fato não se magoavam com a
informação contrária, pois a vitória era inquestionável. E os
derrotados consolavam-se com o triunfo imaginário que ele
generosamente lhes concedia.
De
tanto assistir a jogos, um dia ele narrou corretamente um lance.
Houve pênalti e Anselmo anunciou pênalti. Foi a sua desgraça.
Nunca mais ninguém lhe prestou ouvidos, e Anselmo terminou os dias
como gari em Vila Isabel.
Carlos
Drummond de Andrade, in Contos plausíveis
Seu destino está nas mãos do “sistema”
Antes
da invenção da escrita, as histórias estavam confinadas aos
limites da capacidade do cérebro humano. Não era possível inventar
histórias excessivamente complicadas das quais as pessoas não
conseguiam se lembrar. A escrita, porém, subitamente possibilitou a
criação de histórias longas e intricadas, que eram armazenadas em
tabuletas e em papiros, e não em cabeças humanas. Nenhum egípcio
antigo se lembrava de todas as terras do faraó, seus impostos e seus
dízimos, jamais Elvis Presley leu todos os contratos assinados em
seu nome; nenhuma alma viva conhece bem todas as leis e todos os
regulamentos da União Europeia; e nenhum banqueiro ou agente da CIA
consegue rastrear cada dólar que existe no mundo. Mas todas essas
minúcias estão escritas em algum lugar, e uma reunião de
documentos relevantes pode definir a identidade e o poder do faraó,
de Elvis, da União Europeia e do dólar.
Assim,
a escrita facultou aos humanos que organizassem sociedades inteiras
num modelo algorítmico. Deparamos com o termo “algoritmo” quando
tentamos compreender o que são emoções e como o cérebro funciona
e o definimos como uma série metódica de passos que pode ser
utilizada para a realização de cálculos, a resolução de
problemas e a tomada de decisões. Em sociedades iletradas as pessoas
fazem todos os cálculos e tomam todas as decisões de cabeça. Em
sociedades letradas, organizam-se em redes, de modo que cada pessoa é
apenas um pequeno passo num imenso algoritmo, e é o algoritmo como
um todo que toma as decisões importantes. Essa é a essência da
burocracia.
Pense
num hospital moderno. Quando você chega, alguém da recepção lhe
apresenta um formulário-padrão e faz um conjunto predeterminado de
perguntas. As respostas são encaminhadas a uma enfermeira, que as
compara com o regulamento do hospital para decidir que testes
preliminares cabem no caso. Ela mede sua pressão e frequência
sanguíneas e tira uma amostra de seu sangue. O médico em serviço
examina os resultados iniciais e segue um protocolo estrito para
determinar em que enfermaria você será admitido. Ali, você é
submetido a outros exames mais minuciosos, como uma radiografia ou
uma ressonância magnética, regidas por grossos manuais de
procedimentos médicos. Especialistas analisam os resultados de
acordo com bases conhecidas de dados estatísticos para decidir que
medicamentos prescrever ou que exames realizar em seguida.
Essa
estrutura algorítmica faz com que não seja realmente importante
quem serão os profissionais em serviço. O tipo de personalidade
deles, suas opiniões políticas e seu humor ocasional são
irrelevantes. Enquanto seguirem regulamentos e protocolos, eles terão
uma boa probabilidade de curar você. Segundo o algoritmo ideal, seu
destino está nas mãos do “sistema”, e não nas de mortais de
carne e osso que por acaso ocupam este ou aquele posto.
O
que vale para hospitais vale também para exércitos, prisões,
escolas, corporações — e antigos reinos. Claro que o Egito antigo
era muito menos sofisticado tecnologicamente do que um hospital
moderno, entretanto o princípio algorítmico era o mesmo. Também no
Egito antigo a maior parte das decisões era tomada não por uma
única e sábia pessoa, mas por uma rede de funcionários conectados
por inscrições em papiro e em pedra. Agindo em nome do deus vivo
que era o faraó, a rede reestruturou a sociedade humana e reformatou
o mundo natural. Por exemplo, os faraós Sesóstris III e seu filho
Amenemés III, que governaram o Egito de 1878 a.C. a 1814 a.C.,
abriram um enorme canal ligando o Nilo aos pântanos do vale Fayum.
Um intricado sistema de represas, reservatórios e canais
subsidiários desviou as águas do Nilo para Fayum, criando um imenso
lago artificial com 50 bilhões de metros cúbicos de água.
Comparando, o lago Mead, o maior reservatório construído pelo homem
nos Estados Unidos (formado pela represa Hoover), contém no máximo
35 bilhões de metros cúbicos de água.
O
projeto de engenharia de Fayum deu ao faraó o poder de regular o
Nilo, impedir inundações destruidoras e fornecer uma água preciosa
como alívio em tempos de seca. Além disso, transformou o vale de
Fayum, de um pântano infestado de crocodilos e cercado por um árido
deserto, no celeiro do Egito. Na margem do novo lago artificial foi
construída uma nova cidade chamada Shedet. Os gregos a chamavam de
Crocodilópolis — a cidade dos crocodilos. Era dominada pelo templo
do deus crocodilo Sobek, que era identificado com o faraó (estátuas
contemporâneas ocasionalmente mostram o faraó exibindo uma cabeça
de crocodilo). O templo abrigava um crocodilo sagrado chamado
Petsuchos, que se acreditava ser a encarnação viva de Sobek. Assim
como o deus vivo faraó, o deus vivo Petsuchos era alvo dos cuidados
afetuosos de sacerdotes em serviço, que proviam prodigamente o
sortudo réptil com comida e até brinquedos e o vestiam com mantos
de ouro e coroas incrustadas de pedras preciosas. Afinal, Petsuchos
era a marca dos sacerdotes, e a autoridade e a subsistência destes
dependiam dele. Quando Petsuchos morreu, foi escolhido de pronto um
novo crocodilo para ocupar seu lugar, enquanto o réptil morto era
cuidadosamente embalsamado e mumificado.
Na
época de Sesóstris III e Amenemés III, os egípcios não tinham
nem tratores nem dinamite. Nem mesmo instrumentos de ferro, cavalos
de tração ou rodas (o uso da roda não era comum no Egito até 1500
a.C.). Ferramentas de bronze eram consideradas o suprassumo da
tecnologia, mas eram tão caras e raras que em geral os trabalhos de
construção eram realizados com ferramentas de pedra e madeira,
operadas pela força de músculos humanos. Muita gente alega que os
grandes projetos de construção do Egito antigo — todas as
represas e reservatórios e pirâmides — foram concretizados por
alienígenas do espaço exterior. De outro modo, como poderia uma
cultura carente até mesmo de rodas e de ferro realizar tais
milagres?
A
verdade é muito diferente. Os egípcios construíram o lago Fayum e
as pirâmides graças não à ajuda extraterrena, mas a aptidões
organizacionais soberbas. Contando com milhares de burocratas
letrados, o faraó recrutou dezenas de milhares de trabalhadores e
forneceu comida suficiente para mantê-los trabalhando anos sem fim.
Quando dezenas de milhares de trabalhadores cooperam durante várias
décadas, eles podem construir um lago artificial ou uma pirâmide
mesmo com instrumentos de madeira.
O
próprio faraó dificilmente terá erguido um só dedo, obviamente.
Não era ele quem recolhia os impostos, ele não desenhou nenhum
projeto arquitetônico e certamente não pôs as mãos numa pá. Mas
os egípcios acreditavam que somente orações dirigidas ao deus vivo
faraó e a seu divino patrono Sobek poderiam salvar o vale do Nilo de
inundações e secas devastadoras. Eles tinham razão. O faraó e
Sobek eram entidades imaginárias que nada faziam para elevar ou
baixar o nível das águas do Nilo, mas milhões de pessoas
acreditavam no faraó e em Sobek e cooperaram para construir represas
e escavar canais, o que fez com que tanto as inundações como as
secas se tornassem raras. Comparados com os deuses sumérios, e sem
mencionar os espíritos da Idade da Pedra, os deuses do Egito antigo
eram entidades verdadeiramente poderosas que fundaram cidades,
ergueram exércitos e controlaram a vida de milhões de humanos,
vacas e crocodilos.
Pode
parecer estranho creditar a entidades imaginárias a construção ou
o controle de coisas reais. Mas costumamos dizer que os Estados
Unidos construíram a primeira bomba nuclear, que a China construiu a
Represa das Três Gargantas, ou que o Google está construindo um
automóvel autônomo. Por que então não dizer que o faraó
construiu um reservatório e que Sobek escavou um canal?
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
quinta-feira, 30 de janeiro de 2020
Autopsicografia
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
A quinta história
Esta
história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome
possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”.
Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma
delas mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e
uma noites me dessem.
A
primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: queixei-me de
baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a receita de como
matá-las. Que misturasse em partes iguais açúcar, farinha e gesso.
A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de dentro
delas. Assim fiz. Morreram.
A
outra história é a primeira mesmo e chama-se “O Assassinato”.
Começa assim: queixei-me de baratas. Uma senhora ouviu-me. Segue-se
a receita. E então entra o assassinato. A verdade é que só em
abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram:
pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o
nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram
minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar
ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago
rancor me tomara, um senso de ultraje. De dia as baratas eram
invisíveis e ninguém acreditaria no mal secreto que roía casa tão
tranquila. Mas se elas, como os males secretos, dormiam de dia, ali
estava eu a preparar-lhes o veneno da noite. Meticulosa, ardente, eu
aviava o elixir da longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal
secreto me guiavam. Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar
cada barata que existe. Baratas sobem pelos canos enquanto a gente,
cansada, sonha. E eis que a receita estava pronta, tão branca. Como
para baratas espertas como eu, espalhei habilmente o pó até que
este mais parecia fazer parte da natureza. De minha cama, no silêncio
do apartamento, eu as imaginava subindo uma a uma até a área de
serviço onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal.
Acordei horas depois em sobressalto de atraso. Já era de madrugada.
Atravessei a cozinha. No chão da área lá estavam elas, duras,
grandes. Durante a noite eu matara. Em nosso nome, amanhecia. No
morro um galo cantou.
A
terceira história que ora se inicia é a das “Estátuas”. Começa
dizendo que eu me queixara de baratas. Depois vem a mesma senhora.
Vai indo até o ponto em que, de madrugada, acordo e ainda sonolenta
atravesso a cozinha. Mais sonolenta que eu está a área na sua
perspectiva de ladrilhos. E na escuridão da aurora, um arroxeado que
distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de
estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de
dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um
gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da
comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia.
Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o
gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e
elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente
intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si
mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com
tal, tal olhar de censura magoada. Outras — subitamente assaltadas
pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um
molde interno que se petrificava! — essas de súbito se
cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te. Elas
que, usando o nome de amor em vão, na noite de verão cantavam.
Enquanto aquela ali, a de antena marrom suja de branco, terá
adivinhado tarde demais que se mumificara exatamente por não ter
sabido usar as coisas com a graça gratuita do em vão: “é que
olhei demais para dentro de mim! é que olhei demais para dentro de.”
— de minha fria altura de gente olho a derrocada de um mundo.
Amanhece. Uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa. Da
história anterior canta o galo. A quarta narrativa inaugura nova era
no lar. Começa como se sabe: queixei-me de baratas. Vai até o
momento em que vejo os monumentos de gesso. Mortas, sim. Mas olho
para os canos, por onde esta mesma noite renovar-se-á uma população
lenta e viva em fila-indiana. Eu iria então renovar todas as noites
o açúcar letal? como quem já não dorme sem a avidez de um rito. E
todas as madrugadas me conduziria sonâmbula até o pavilhão? no
vício de ir ao encontro das estátuas que minha noite suada erguia.
Estremeci de mau prazer à visão daquela vida dupla de feiticeira. E
estremeci também ao aviso do gesso que seca: o vício de viver que
rebentaria meu molde interno. Áspero instante de escolha entre dois
caminhos que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer
escolha seria a do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje
ostento secretamente no coração uma placa de virtude: “Esta casa
foi dedetizada”.
A
quinta história chama-se “Leibnitz e a Transcendência do Amor na
Polinésia”. Começa assim: queixei-me de baratas.
Clarice
Lispector, in A legião estrangeira
Nas éras de 96
Mas,
mire e veja o senhor! nas éras de 96, quando os serranos cismaram e
avançaram, tomaram conta de São Francisco, sem prazo nem pena. Mas,
nestes derradeiros anos, quando Andalécio e Antônio Dó forcejaram
por entrar lá, quase com homens mil e meio-mil, a cavalo, o povo de
São Francisco soube, se reuniram, e deram fogo de defesa! diz-que
durou combate por tempo de três horas, tinham armado tranquias, na
boca das ruas ― com tapigos, montes de areia e pedra, e árvores
cortadas, de través ― brigaram como boa população! Daí, aqueles
retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda,
conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral e uns soldados,
cercados numas duas ou três casas e um quintal, guerrearam noites e
dias. A ver, por vingar, porque antes o major Amaral tinha prendido o
Andalécio, cortado os bigodes dele. Andalécio ― o que, de nome
real! Indalécio Gomes Pereira ― homem de grandes bigodes. Sei de
quem ouviu, se recordava sempre com tremores! de quando, no tiroteio
de inteira noite, Andalécio comandava e esbarrava, para gritar
feroz! ― Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se
corta!... Tudo gelava, de só se escutar. Aí, quem trouxe socôrro,
para salvar o Major, foi o delegado Doutor Cantuária Guimarães,
vindo às pressas de Januária, com punhadão de outros jagunços, de
fazendeiros da política do Governo. Assim que salvaram, mandaram
desenterrar, para contar bem, mais de sessenta mortos, uns quatorze
juntos numa cova só! Essas coisas já não aconteceram mais no meu
tempo, pois por aí eu já estava retirado para ser criador, e
lavrador de algodão e cana. Mas o mais foi ainda atual agora,
recentemente, quase, isto é; foi logo de se emendar depois do
barulhão em Carinhanha ― mortandades: quando se espirrou sangue
por toda banda, o senhor sabe: Carinhanha ébonitinha... ―
uma verdade que barranqueiro canta, remador. Carinhanha é que sempre
foi de um homem de valor e poder: o coronel João Duque ― o pai da
coragem. Antônio Dó eu conheci, certa vez, naVargem Bonita, tinha
uma feirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras, formaram grupo
calados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah, tempo de
jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?
Atinei
mal, no começo, com quem era que mandava em nós todos. O
Hermógenes. Mas, perto duns cinquenta ― nesse meio o Acauã,
Simião, Luís Pajeú, Jesualdo e o Fafafa ― obedeciam a João
Goanhá, eram dele. E tinha um grupo de brabos do Ricardão. Onde era
que estava o Ricardão? Reunindo mais braços-de-armas, beira da
Bahia. Se esperava também a vinda de Sô Candelário, com os seus.
Se esperava o chefe grande, acima de todos ― Joca Ramiro ― falado
aquela hora em Palmas. Mas eu achava aquilo tudo dando confuso. Titão
Passos, cabo-de-turma com poucos homens à mão, era nãostante muito
respeitado. E o sistema diversiava demais do regime com Zé Bebelo.
Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu
poder explicar ao senhor. Assim ― sendo uma sabedoria sutil, mas
mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança
um ajuste calado e certo, com semêlho, mal comparando, com o governo
de bando de bichos ― caititú, boi, boiada, exemplo. E, de coisas,
faziam todo segredo. Um dia, foi ordem! ajuntar todos os animais, de
sela e de carga, iam ser levados para amoitamento e pasto, entre
serras, no Ribeirão PoçoTriste, num varjal. Para mim, até o
endereço que diziam, do lugar, devia de ser mentira. Mas tive de
entregar meu cavalo, completo no contragôsto. Me senti, a pé, como
sem segurança nenhuma. E tem as pequenas coisas que aperreiam!
enquanto estava com meu animal, eu tinha a capoteira, a bolsa da
sela, os alforjes; podia guardar meus trecos. De noite, dependurava a
sela num galho de árvore, botava por debaixo dela o dobro com as
roupas, dormia ali perto, em paz. Agora, eu ficava num descômodo.
Carregar os trens não podia ― chegava o peso das armas, e das
balas e cartuchame. Perguntei a um, onde era que tudo se depositava.
― Eh, berêu... Bota em algum lugar... Joga fora... Oxe, tu carrega
ouro nesses dobros?... Quê que se importavam? Por tudo, eram
fogueiras de se cozinhar, fumaça de alecrim, panela em gancho de
mariquita, e cheiro bom de carne no espeto, torrada se assando, e
batatas e mandiocas, sempre quentes no soborralho. A farinha e
rapadura! quantidades. As mantas de carne-ceará. Ao tanto que a
carne-de-sol não faltasse, mesmo amiúde ainda saíam alguns e
retornavam tocando uma rês, que repartiam. Muitos misturavam a
jacuba pingando no coité um dedo de aguardente, eu nunca tinha
avistado ninguém provar jacuba assim feita. Os usares! A ver, como o
Fafafa abria uma cova quadrada no chão, ajuntava ali brasas grandes,
direto no brasal mal-assasse pedação de carne escorrendo sangue,
pouco e pouco revirava com a ponta do facão, só pelo chiar. Disso,
definitivo não gostei. A saudade minha maior era de uma comidinha
guisada! um frango com quiabo e abóbora-d água e caldo, um refogado
de carurú com ofa de angú. Senti padecida falta do São Gregório ―
bem que a minha vidinha lá era mestra. Diadorim notou meus males. Me
disse consolo: ― Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora, estamos
acuados em buraco... Assistir com Diadorim, e ouvir uma palavrinha
dele, me abastava aninhado.
Mas,
mesmo, achei que ali convinhável não era se ficar muito tempo
juntos, apartados dos outros. Cismei que maldavam, desconfiassem de
ser feio pegadio. Aquele povo estava sempre misturado, todo o mundo.
Tudo era falado a todos, do comum: às mostras, às vistas. Diferente
melhor, foi quando estivemos com Medeiro Vaz: o maior número lá era
de pessoal dos gerais ― gente mais calada em si e sozinha,
moradores das grandes distâncias. Mas, por fim, um se acostuma; isto
é, eu me acostumei. Sem receio de ser tirado de meu dinheiro: que eu
empacotava ainda boa quantia, que Zé Bebelo sempre me pagou no
pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei. Aí, quis que
soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver: ―
Tatarana, põe o dez no onze... ― me pediam, por festar. De
duzentas braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num
aquele alvo só ― as todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com
que me aperreavam, os coscuvilhos. ― Se alguém falou mal de mim,
não me importo. Mas não quero que me venham me contar! Quem vier
contar, e der notícias é esse mesmo que não presta: e leva o puto
nome-da-mãe, e de que é filho!... ― eu informei. O senhor sabe:
nome-da-mãe, e o depois, quer dizer ― meu pinguelo. Sobre o fato,
para de mim não desaprenderem, não se esquecerem, eu pegava o rifle
― tive rifle de Winchester, até, de quatorze tiros ― e dava gala
de entremez. ― Corta aquele risco Tatarana! ― me aprovavam. Se eu
cortasse? Nunca errei. Para rebater, reproduzia tudo a revólver. ―
Vem um cismo de fio de cabelo no ar, que eu acerto. Sobrefiz. Social
eu andava com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas sempre.
Ao que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado.
Surgidamente,
aí, principiou um desejo que tive ― que era o de destruir alguém,
a certa pessoa. O senhor pode rir! seu riso tem siso. Eu sei. Eu
quero é que o senhor repense as minhas tolas palavras. E, olhe! tudo
quanto há, é aviso. Matar a aranha em teia. Se não, por que era
que já me vinha a ideia desejável! que joliz havia de ser era se
meter um balaço no baixo da testa do Hermógenes?
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
Tia explicada ou não
Uns
mais outros menos, meus quatro irmãos se dedicam à filosofia. Leem
livros, discutem entre si, e são admirados a distância pelos outros
da família, fiel ao princípio de não se intrometer nas
preferências alheias e inclusive favorecê-las na medida do
possível. Estes rapazes, que me merecem um grande respeito,
discutiram mais de uma vez o problema do medo de minha tia, chegando
a conclusões sombrias, mas talvez razoáveis. Como costuma acontecer
em casos semelhantes, minha tia era a menos informada dessas
assembleias, mas desde essa época a preocupação da família se
acentuou ainda mais. Há anos acompanhamos a tia em suas titubeantes
expedições da sala ao pátio, do quarto ao banheiro, da cozinha à
despensa. Nunca achamos fora de propósito que ela se deitasse de
lado e durante toda a noite conservasse a mais absoluta imobilidade,
os dias pares do lado direito, e os ímpares do lado esquerdo. Nas
cadeiras da sala de jantar e do pátio, a tia se instalava muito
ereta; não aceitaria por nada deste mundo a comodidade de uma
cadeira de balanço ou de um sofá Morris.
Na noite do Sputnik a família jogou-se no chão do pátio para
observar o satélite, mas a tia ficou sentada e no dia seguinte teve
um bruto torcicolo. Pouco a pouco nós fomos nos habituando e hoje
estamos resignados. Nossos primos irmãos nos ajudam e fazem
referência ao assunto com olhares inteligentes e dizem coisas tais
como: “Ela tem razão.” Mas por quê? Nós não sabemos e eles
não querem explicar. Por mim, por exemplo, acho muito cômodo ficar
de costas. O corpo todo se apoia no colchão ou nos ladrilhos do
pátio, a gente sente os calcanhares, as panturrilhas, as coxas, as
nádegas, as espáduas, os braços e a nuca, que dividem o peso do
corpo e o distribuem por assim dizer no chão, aproximam-no tão bem
e tão naturalmente dessa superfície que nos atrai com voracidade e
parece querer engolir-nos. É curioso que, para mim, ficar de costas
seja a posição mais natural e às vezes desconfio que minha tia lhe
tem horror por isso mesmo. Eu a acho perfeita e penso que no fundo é
a mais confortável. Sim, disse bem: no fundo, bem no fundo, de
costas. Até me dá um pouco de medo, algo que não consigo explicar.
Como eu gostaria de ser igual a ela, e como não consigo.
Júlio
Cortázar, in Histórias de Cronópios e de Famas
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
Cautela!
Há
dois sinais de envelhecimento. O primeiro é desprezar os jovens. O
outro é quando a gente começa a adulá-los.
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
D. Maria
Sinhá
e Seu Antônio Justino vinham ensinar-me o catecismo. Depois a sala
se povoava, D. Maria nos impunha o dever sonolento. Distraía-me
espiando o teto, o voo das moscas, um pedaço do corredor, as
janelas, a casa de azulejos, cabeças de transeuntes. Perto, no
quartel da polícia, José da Luz cantava. Uma réstia descia a
parede, avançava no tijolo, subia outra parede, alcançava o traço
que indicava duas horas. Os garotos soltavam os livros, fechavam com
rumor as caixinhas, ganhavam a rua numa algazarra, iam jogar pião
nas calçadas.
Admirava-me
das expansões ruidosas, censurava-as e invejava-as. Conservar-me-ia
na aula por gosto. Os meus temores ali se dispersavam, entendia-me
bem com aquela gente: o homem preguiçoso, de chinelos, fumante,
bocejador; a solteirona que me desbastava com paciência e me
orientava os dedos teimosos; a velha amorável, bondade verdadeira,
semelhante às figuras celestes do flós-santório.
D.
Maria não era triste nem alegre, não lisonjeava nem magoava o
próximo. Nunca se ria, mas da boca entreaberta, dos olhos doces, um
sorriso permanente se derramava, rejuvenescia a cara redonda. Os
acontecimentos surgiam-lhe numa claridade tênue, que alterava,
purificava as desgraças. E se notícias de violência ou paixão
toldavam essa luz, assustava-se, apertava as mãos, uma nuvem
cobria-lhe o sorriso. Não compreendia as violências e as paixões.
Se o marido e a filha morressem, sofreria — e resignar-se-ia,
confiante nas promessas de Cristo. De fato já se haviam realizado
essas promessas. “Bem-aventurados os que têm sede de justiça”,
zumbiam os meninos cochilando no catecismo. D. Maria não tinha sede
de justiça, não tinha nenhuma espécie de sede, mas era
bem-aventurada: a sua alma simples desejava pouco e se avizinhava do
reino de Deus. Não irradiava demasiado calor. Também não esfriava.
Justificava a comparação de certo pregador desajeitado: “Nossa
Senhora é como uma perua que abre as asas quando chove, acolhe os
peruzinhos.” De Nossa Senhora conhecíamos, em litografias, o
vestido azul, o êxtase, a auréola. D. Maria representava para nós
essa grande ave maternal — e, ninhada heterogênea, perdíamos, na
tepidez e no aconchego, os diferentes instintos de bichos nascidos de
ovos diferentes.
Nessa
paz misericordiosa os meus desgostos ordinários se entorpeceram, uma
estranha confiança me atirava à santa de cabelos brancos,
aliviava-me o coração. Narrei-lhe tolices. D. Maria escutou-me.
Assim amparado, elevei-me um pouco. Os garranchos a tinta continuaram
horrorosos, apesar dos esforços de Sinhá, mas o folheto de capa
amarela foi vencido rapidamente. Tudo ali era fácil e desenxabido:
combinações já vistas na carta de A B C, frases que se articulavam
de um fôlego. E ausência de conselhos absurdos, as monstruosidades
que se arrumavam na página odiosa, triturada, rasgada com
satisfação.
Lendo
o bilhete em que se pedia um segundo livro, meu pai manifestou
surpresa com espalhafato. Houve uma aragem de otimismo, chegaram-me
retalhos de felicidade. Ofereceram-me um carretel de linha,
mandaram-me comprar uma folha de papel vermelho na loja de Seu Filipe
Benício, obtive uma tesoura, grude, pedaços de tábua, e fabriquei
no alpendre um papagaio que não voou. No jantar deram-me toicinho. E
exibiram-me a preciosidade que exteriorizava o meu progresso: volume
feio, com um retrato barbudo e antipático. Ericei-me, pressenti que
não sairia boa coisa dali.
Realmente,
encrenquei, para bem dizer caí num longo sono, de que a perseverança
da mestra não me arrancou. Eu nunca revelara nenhum gênero de
aptidão. Xingado, às vezes tolerado, em raros momentos elogiado sem
motivo, propriamente estúpido não era; mas tornei-me estúpido,
creio que me tornei quase idiota. Os sentidos embotaram-se, o
espírito opaco tomou uma dureza de pedra. Completamente inerte.
Depois,
muito depois, avancei uns passos na sombra. Recuei, desnorteei-me.
Andei sempre em ziguezagues. Certamente não foi o segundo livro a
causa única do meu infortúnio. Houve outras, sem dúvida. Julgo,
porém, que o maior culpado foi ele.
Graciliano
Ramos, in Infância
Reencarnação
Uma
amiga querida, ex-aluna, kardecista, me disse com um tom carinhoso
que eu ficaria melhor se abandonasse minha incredulidade e
acreditasse na reencarnação. Com a reencarnação tudo se
explicaria. O universo é lógico, tudo se encaixa, parece bordado, a
gente vê o avesso, mas tem o direito que a gente não vê, tudo que
parece ser desarmonia do lado de cá é harmonia do lado de lá. A
certeza disso apazigua a alma. A gente sofre com resignação. O
final feliz está sempre garantido.
Aí
tive de esclarecer o equívoco sobre a minha religião.
“Pois
saiba você que eu acredito muito na reencarnação. Faz muito tempo
anunciei a minha conversão num artigo de nome esquisito:
‘oãçanracneeR’. Reencarnação ao contrário: não de trás
para adiante, mas de diante para trás. O futuro não me interessa.
Eu nunca o vivi, por isso não posso amá-lo. Não quero ir para o
céu: o tempo infinito deve ser de um tédio insuportável. E o mais
terrível é não ter saída. O céu me dá claustrofobia. Além do
que não quero evoluir. Muitas coisas não podem e não devem
evoluir: canto de sabiá, vermelho de sol poente, cheiro de café
fresquinho, os poemas da Cecília Meireles, ipês floridos, a sonata
Appassionata de Beethoven, uma jabuticaba madura...”
O
que seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? Uma
jabuticabeira florida e perfumada e, depois, coberta de esferas
negras brilhantes e túrgidas, aquele “toc” que a jabuticaba faz
quando a gente morde – esse objeto é perfeito, divino, sem passado
e sem futuro, presente puro destinado à eternidade. Não posso
imaginar que alguma evolução lhe possa ser acrescentada.
O
que eu quero não é evoluir. O que eu quero é viver de novo o
passado que vivi, com muito mais intensidade, sem os sentimentos de
culpa com que minha religião aprisionou o meu corpo, as minhas
ideias e os meus sentimentos... Tenho tristeza pelos pecados que não
cometi... Eram pecados tão inocentes... Estou até desconfiado de
que se Deus está me castigando, ele está me castigando porque eu
não pequei o tanto que ele queria que eu pecasse. Tentei ser mais
espiritual que o próprio Deus e ele ficou bravo comigo... Não
acreditei na advertência de Lutero, escrevendo a Melanchton: “Deus
não salva falsos pecadores. Seja um pecador e peque fortemente, mas
creia e se alegre em Cristo mais fortemente ainda...”. Meu pecado
foi pecar com timidez... Tive medo de gozar a vida... Assim, quando
já são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu Pai-Nosso
herético – ou erótico: “O prazer nosso de cada dia dá-nos
hoje...”.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
O misterioso homem-macaco
Eu
ia sozinho cantando:
Tatu
Peba
Tatu
Pe-reba
Tatu
bola
Tatu
en-rola
Eu
ia sozinho mais o cão. Segurava uma 28 de chumbo e nas costas uma
Winchester 22, também pendurado o bornal com os cartuchos dos dois
calibres, a garrafa com café adoçado e pão de milho para mim e o
Divino, bom veadeiro, mas também de muita serventia para outras
caças, prestimoso que era.
De
vez em quando puxava o facão da bainha presa na cinta para abrir
caminho na mata densa, fechada. Mata escura, sombreada pelas copas de
muitas árvores tapadoras, de raro deixando entrever uma nesga de céu
muito azul sem nuvens.
Já
ia por volta das dez horas e eu ainda não tinha caçado nada.
Calorão da mata, a língua do Divino sempre de fora, também eu
suava, camisa molhada grudada no corpo. Mais de uma vez tive de
atorar cipó com o facão para beber a água de dentro dele e dar
para o cão, tanta a sede de nós dois. Meu rosto preto daquelas
abelhinhas miúdas, pretas que nem mosca. Ao cão não incomodavam
por causa do pêlo, mas em mim, que não usava barba naquele tempo,
me cobriam a cara sugando meu suor pegajoso, tirando dele alimento
para fazer seu mel azedo. Não adiantava espantar as bichinhas, se
não picavam, também não arredavam dali, máscara preta cobrindo
minha cara e fazendo aumentar o calor sentido.
Depois
de muito andar chego numa clareira, que refrigério! Me sento num
toco e vou tirando a garrafa do bornal, quando ouço uns guinchos
ardidos. Era um bando de macacos que, lá no alto, faziam a travessia
de uma peroba para um ipê vizinho. Coisa até interessante de se
ver, iam caminhando pelo galho pelado da peroba bem até a pontinha,
e dali um de cada vez dava um salto, braços levantados, até o ipê.
Pendurado pelo rabo num galho mais alto do ipê, um deles apanhava o
companheiro no ar e, balançando-o, atirava-o são e salvo num galhão
grosso do ipê, de donde seguiam caminho. Se um errasse o salto, ou
se o outro não o agarrasse em tempo, ele caía e ia se esborrachar
no chão lá embaixo. Bicho danado de engenhoso, o macaco, nisso até
se parece com gente.
Não
sou chegado a carne de macaco, acho muito seca, musculosa, sabor
azedo, mas como eu não tinha comido nada até aquela hora, catei a
Winchester e me levantei já apontando para o alto. Divino nem
reparou na cena, entretido que estava com o seu descanso. Cachorro é
bicho mais preocupado com as coisas da terra, o que se passa lá em
cima não lhe interessa, senão já estaria latindo feito um
condenado. Já o macaco, lá no alto, sempre se preocupa com aquilo
que se passa no chão.
Quando
apontei a arma quase todos já tinham passado, sobrava só um
retardatário no galho da peroba. Aquele outro que estava pendurado
pelo rabo no ipê, quando me viu, num átimo pulou para o meio das
folhagens e sumiu da minha vista. Mirei então no retardatário, sem
o companheiro que fugira não tinha como pular para o ipê. No
comprido galho onde estava não tinha ramagem para se esconder, e o
tempo era pouco para ele correr até um lugar mais coberto: eu
atirava antes. O que fez ele quando se viu perdido? Se meteu a gritar
e pular de desespero. Não morreu ali na hora porque não atirei
logo, me distraí, rindo que estava de suas macaquices.
Quando
o bicho se tocou de que eu ia mesmo atirar, pegou das costas um
macaquinho bem pequenininho e o levantou nos braços para me mostrar.
Vi logo que era uma fêmea com sua cria recém-nascida. Gritou, se
ajoelhou e se pôs a chorar — macaco é quase como gente —, uma
mãe me pedindo para eu não matar seu filho.
A
gente faz muita maldade na vida, e na hora não percebe. Eu, ali, fiz
uma que fui pagar bem caro depois, caro demais. Mas na ocasião não
pensei em nada, e dei com o dedo no gatilho da Winchester, Bang. O
que voou de pássaro com o barulho! Tiro certeiro: a macaca despencou
lá de cima — queda demorada de tão alta — e veio se estatelar
no chão da clareira. Só então Divino se deu conta e correu latindo
para a caça estendida, morta. Corri junto, queria ver. Cheguei
antes, e foi bom porque salvei a presa que o cão ia comer. Coisas de
mãe que só Deus explica: não é que mesmo morta a macaca deu um
jeito de proteger a cria?! Ela caiu segurando o filho e, quando
bateram no chão, o corpo dela amorteceu a queda. Morreu bem
mortinha, mas salvou o filho.
Quando
percebi que o cão, nervoso, rosnando, ia abocanhar o filhote, dei um
pontapé no focinho, Passa, Divino!, e protegi o bichinho com as
minhas mãos. O cão perdeu o filho mas ganhou a mãe, e aí abriu a
bocarra e, numa sentada, devorou o cadáver morto da macaca, só
deixou pele peluda e osso grande, o resto mandou para as tripas e
ainda ficou lambendo o sangue do chão.
O
macaquinho tremia e chorava nas minhas mãos. Magrinho e miudinho,
pensei, mas vai me servir de janta. Coloquei o bichinho dentro do
bornal e com o calorzinho ele parou de tremer, aos poucos se acalmou,
acho que até dormiu quieto, esquecido da morte da mãe. E eu peguei
o caminho de casa.
Na
volta perdi o Divino. Caminhou uns tempos ao meu lado, normal, depois
parou e devolveu tudo que tinha comido, vômito verde, fedido. Aí
passou a caminhar inquieto, parando a toda hora para se mijar, sem
levantar a pata, que nem uma cadela. Todo nervoso, começou a latir e
a correr em roda tentando morder o próprio rabo. De repente, deu uma
guinada e disparou ganindo, e sumiu no mato. Chamei, chamei, mas ele
não voltou; ainda pensei em correr atrás dele, mas a mata era muito
fechada e desisti. Nessa hora o macaquinho pôs a cabecinha para fora
do bornal e espiou, olhinhos bem abertos, a mim me pareceu que ele
até estava dando risada. Percebi então que a queda não o tinha
afetado.
Chegado
ao rancho, contei a caçada pra minha mulher e mostrei o macaquinho.
Seu malvado, ela me repreendeu. Isso não é coisa de cristão fazer.
Achou bonito o bichinho: Tadinho, deve estar com fome, o pequeno
órfão!. E se tomou de dores pelo macaquinho. Foi tirar leite da
cabra, e de um vidrinho com um chumaço de pano no gargalo aprontou
uma mamadeira. O danadinho se achou! Era até bonito de ver aquele
toquinho feioso, agarrado aos peitões da minha mulher, tomando seu
leitinho adoçado com rapadura, chupando a mamadeira.
E
como mamava, o desgraçadinho! Não havia leite que chegasse. Não
fosse, um dia depois, o cabritinho ter morrido de picada de cobra,
não sei se a cabra ia ter leite suficiente para o sustento dos dois.
Mamava tanto que dali a uns dias já estava forte e grandinho. Não
sei se foi pelo leite de cabra, mais forte do que o leite da macaca
sua mãe, ou se foi pelo fortume do açúcar de rapadura, só sei que
lhe caiu quase todo pêlo, deixando à vista sua pele enrugadinha,
parda, mosqueada. E daí ficou ainda mais parecido com gente humana.
Minha mulher andava com ele para cima e para baixo, se tomou de
amores pelo bichinho. Não largava dele nem para cozinhar, enquanto
segurava o danadinho com uma das mãos, mexia nas panelas com a
outra. Para cuidar da criação e trabalhar na roça, levava o
macaquinho atado nas costas. Ele bem que gostava, ficava o tempo todo
agarrado à minha mulher, como se ela fosse a mãe dele, a falecida.
Dormia na nossa cama, os dois abraçados como mãe e filho.
Tinha
um pintão enorme, cabeça de prego, e para esconder essa vergonha
minha mulher até fez umas fraldas, que trocava sempre que molhadas.
Era muito dengue para uma criaturinha da mata, mas eu não ligava.
Nossa filha já andava com doze anos, viçosa, bonita, carregava as
tristezas próprias da idade, vivia ensimesmada, já não era
companhia para a mãe. Nosso filho, Pedro, naquele tempo andava
buscando ganhar a vida na cidade e quase nunca vinha nos visitar.
Mulher é bicho diferente, tem suas coisas, suas manias, e desde que
não incomode os outros o melhor é deixar. O carinho dela pelo
macaquinho não perturbava ninguém, nem a mim nem à nossa filha. Se
isso trazia alegria para ela, se diminuía sua solitude naquele
rancho perdido no meio do mato, por que se incomodar, se existem
tantas outras coisas para a gente se preocupar nesta vida que Deus
nos deu? Não é mesmo?
Assim
foi indo até aquela noite da tempestade. Foi logo depois da janta,
já muito escuro começou um vento forte, assobiador, e despencou uma
chuvarada forte como nunca se viu antes, um verdadeiro dilúvio. Um
frio úmido começou tão de repente que tive que me enrolar num
cobertor. Era um relâmpago atrás do outro. A mulher queimou as
palmas bentas e rezava assustada para Santa Bárbara. A menina tinha
pavor de raio, se abraçou a mim fechando os olhos contra o meu
peito, e assim ficou. Só o macaquinho parecia não se incomodar com
o temporal, dormia o sono dos justos bem grudadinho na minha mulher.
Foi
a noite do cão. O medo não deixava ninguém dormir, nem sei como as
águas não levaram embora o meu rancho, as horas foram passando e
nada da chuva querer diminuir. Até que se deu o acontecido: na
madrugada, nós três ainda acordados, assustados, molhados até os
ossos pela chuva que caía pelos buracos do teto, e não é que de
repente o macaquinho acorda, abre os olhinhos, se levanta, caminhando
vai até o fogão, risca um fósforo e acende a lamparina? Na hora
até que a gente não estranhou esse seu ato. Afinal, macaco é bicho
esperto, achamos que o que ele fez não tinha sido nada mais do que
imitar um gesto que tantas vezes nos viu fazer. O de causar espanto
era ver a chama da lamparina, que, naquela ventania toda, se mantinha
reta, firme, bem luminosa. O macaquinho veio se chegando perto de nós
trazendo a lamparina acesa, nos olhos, bem nos olhos, e falou com um
vozeirão grosso:
— Eu
me chamo João da Silva!
— Cruz
credo, Ave Maria, te esconjuro! Já vi muito animal inteligente, mas
nunca dantes nem eu, nem ninguém, viu bicho falar, ainda mais
macaco. Foi um susto só: a menina começou a chorar de medo, o
queixo da mulher caiu lá embaixo, os olhos arregalados, nem sei se
de espanto ou terror. — Eu me chamo João da Silva!
Dito
isso, tirou o pinto para fora da fralda e, rindo de gargalhar, mijou
quase ao pé da gente no chão de terra batida, mijou tão forte que
abriu um buracão.
No
exato momento da mijada, caiu um raio tão forte, tão estrondoso que
alumiou o mundo todo. Tão forte que a noite clareou como dia e
derrubou o flamboyant que meu avô plantara na frente do rancho,
queimando num fogo que nem a chuva conseguiu apagar, aquilo que
talvez fosse a única beleza daquela terra.
Eu
me chamo João da Silva... foi assim que tudo começou. Foi nessa
noite amaldiçoada que ele se revelou, que se fez homem aquele macaco
amaldiçoado que em maldita hora eu fui trazer para dentro da minha
casa. Esse macaco que fez o padre enlouquecer no dia do seu batizado.
Que na escola onde foi aprender as primeiras letras atazanou tanto a
professorinha que ela, coitada, abortou. Esse macaco que sempre
tratei como filho e que abusou da inocência da minha filha, sua
enteada, e fez mal para ela, matando minha mulher de desgosto. Que,
com suas artimanhas diabólicas, fez meu filho Pedro pagar por ele,
até hoje cumprindo pena na cadeia por um crime que o macaco cometeu.
Que de tanto me judiar, me transformou no velho aleijado que hoje eu
sou. Tanta sacanagem, tanta maldade, tanta coisa ruim esse João da
Silva fez, e ainda faz em suas andanças pelo mundo, que se eu fosse
contar levava a vida inteira e ainda não chegava ao fim. Não gosto
nem de lembrar dos crimes hediondos que esse ser maligno cometeu.
Mas, se você não tiver medo de ouvir e, para se precaver, quiser
saber de toda a verdade sobre esse homem-macaco, um dia eu me armo de
coragem e te conto tudo.
Valêncio
Xavier, in Os cem melhores contos brasileiros do século
terça-feira, 28 de janeiro de 2020
Conclusões de Aninha
Estavam ali parados. Marido e
mulher.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
“A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.”
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.
Esperavam o carro. E foi que veio aquela da roça
tímida, humilde, sofrida.
Contou que o fogo, lá longe, tinha queimado seu rancho,
e tudo que tinha dentro.
Estava ali no comércio pedindo um auxílio para levantar
novo rancho e comprar suas pobrezinhas.
O homem ouviu. Abriu a carteira tirou uma cédula,
entregou sem palavra.
A mulher ouviu. Perguntou, indagou, especulou, aconselhou,
se comoveu e disse que Nossa Senhora havia de ajudar
E não abriu a bolsa.
Qual dos dois ajudou mais?
Donde se infere que o homem ajuda sem participar
e a mulher participa sem ajudar.
Da mesma forma aquela sentença:
“A quem te pedir um peixe, dá uma vara de pescar.”
Pensando bem, não só a vara de pescar, também a linhada,
o anzol, a chumbada, a isca, apontar um poço piscoso
e ensinar a paciência do pescador.
Você faria isso, Leitor?
Antes que tudo isso se fizesse
o desvalido não morreria de fome?
Conclusão:
Na prática, a teoria é outra.
Cora
Coralina
A conversão política de Neruda
Aqueles
homens encerrados em muros de silêncio, sobre a terra solitária e
sob o solitário céu, tiveram sempre uma curiosidade política
vital. Queriam saber o que se passava, tanto na Iugoslávia como na
China. Preocupavam-lhes as dificuldades e as mudanças nos países
socialistas, o resultado das grandes greves italianas, os rumores de
guerras e o despontar de revoluções nos lugares mais distantes.
Em
centenas de reuniões, muito longe uma da outra, escutava um pedido
constante: que lesse meus poemas. Muitas vezes pediam pelos títulos.
Naturalmente nunca soube se todos entendiam ou não entendiam alguns
ou muitos dos meus versos. Era difícil determiná-lo naquela
atmosfera de mutismo absoluto, de sagrado respeito com que me
escutavam. Mas que importância tem isso? Eu, que sou um dos tolos
mais instruídos, jamais pude entender vários versos de Hölderlin e
de Mallarmé. E diga-se de passagem que os li com o mesmo sagrado
respeito.
A
comida, quando queria ter ares de festa, era guisado de galinha, ave
rara no pampa. A carne que mais comparecia nos pratos era algo para
mim difícil de levá-lo à boca: o guisado de cobaias ou
porquinhos-da-índia. As circunstâncias faziam um prato favorito
deste animalzinho, nascido para morrer nos laboratórios.
As
camas que me eram destinadas invariavelmente, nas inumeráveis casas
onde dormia, tinham duas características conventuais: lençóis
brancos como a neve e duros à custa de goma, capazes de ficar em pé
sozinhos, e uma dureza de cama equiparável à da terra do deserto,
sem colchão mas apenas com umas tábuas tão lisas quanto
implacáveis.
Assim
dormia como um bem-aventurado. Sem nenhum esforço compartilhava o
sono com a inumerável legião de meus companheiros. O dia era sempre
seco e incandescente como uma brasa mas a noite do deserto estendia
seu frescor sob uma taça primorosamente estrelada.
Minha
poesia e minha vida têm transcorrido como um rio americano, como uma
torrente de águas do Chile, nascidas na profundidade secreta das
montanhas austrais, dirigindo sem cessar até uma saída marinha o
movimento de suas correntes. Minha poesia não rejeitou nada do que
pôde trazer em seu caudal; aceitou a paixão, desenvolveu o mistério
e abriu caminho entre os corações do povo.
Coube
a mim sofrer e lutar, amar e cantar; couberam-me na partilha do mundo
o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e o do sangue. Que mais
quer um poeta? E todas as alternativas, desde o pranto até os
beijos, desde a solidão até o povo, perduram em minha poesia, atuam
nela porque vivi para minha poesia e minha poesia sustentou minhas
lutas. E se muitos prêmios alcancei, prêmios fugazes como mariposas
de pólen fugitivo, alcancei um prêmio maior, um prêmio que muitos
desdenham mas que é na realidade inatingível para muitos. Cheguei
através de uma dura lição de estética e de busca, através dos
labirintos da palavra escrita, a ser poeta de meu povo. Meu prêmio é
esse, não os livros e os poemas traduzidos ou os livros escritos
para descrever ou dissecar minhas palavras. Meu prêmio é esse
momento grave de minha vida quando no fundo da mina de carvão de
Lota, sob o sol a pino da salitreira abrasada, do socavão a pique
subiu um homem como se ascendesse do inferno, com a cara transformada
pelo trabalho terrível, com os olhos avermelhados pelo pó e,
estendendo-me a mão calejada, essa mão que leva o mapa do pampa em
suas calosidades e em suas rugas, disse-me com olhos brilhantes:
“Conhecia-te há muito tempo, irmão.” Esse é o laurel de minha
poesia, o agulheiro no pampa terrível, de onde sai um trabalhador a
quem o vento e a noite e as estrelas do Chile têm dito muitas vezes:
“Não estás só; há um poeta que pensa em teu sofrimento.”
Ingressei
no Partido Comunista do Chile no dia 15 de julho de 1945.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
Os dois Ulisses
O
Ulisses de Homero e o Ulisses de Dante se encontram no Ulisses de
James Joyce. Encontram-se, mas não se fundem, transformam-se em dois
personagens: Leopold Bloom, o Ulisses de Homero segundo Joyce, cuja
aventura é uma volta para casa, e Stephen Dedalus, o Ulisses de
Dante segundo Joyce, cujo exílio é uma aventura sem volta.
No
texto de Ulysses, Joyce descreve Dedalus como um “partidor
centrifugal” e Bloom como um “ficador centripedal”. Na odisséia
de um dia só que compartilham, os dois andam pelas margens da
sociedade de Dublin como dois exilados na sua própria terra. Mas
Bloom é um cidadão atrás de uma reintegração com sua sociedade e
seu lar, Stephen é um poeta atrás de uma missão poética, a de
criar a consciência da sua raça, como confessou em outro livro,
quanto mais longe de Dublin melhor.
Bloom,
como o Ulisses de Homero, reencontra sua casa e sua Penélope no fim.
O fim de Dedalus é desconhecido, mas seu destino provável é um
desastre, como o do Ulisses que Dante viu no Inferno. Mas, dos dois,
o único que poderia escrever Ulysses seria Dedalus. Pelo
menos o “Ulysses” de Joyce.
Os
Ulisses se dividem entre os que partem e os que ficam, ou entre os
que voltam e os que seguem no exílio. O velho do Restelo, de Camões,
não entende os que partem, e buscam o mundo quando já têm
Portugal. Os que querem, inexplicavelmente, trocar a paz pela
descoberta, a família pela aventura, a sabedoria pelo conhecimento.
Enfim, o Tejo pelo mar. A origem do nome “Lisboa”, por sinal
(divagação tipo nada a ver), é “cidade de Ulisses”.
Joyce
escolheu ser um “partidor”. O centro da sua ficção
“centrifugal” foi sempre Dublin, mas uma Dublin vista de longe,
reconstruída na memória como metáfora — como a Florença que
expulsou Dante, e que ele continuou a habitar em pensamento e verso
pelo resto da vida. Ou até voltar, velho, quando a reintegração é
apenas uma fatalidade física, tipo todo morto volta para casa, não
uma escolha consciente, ou literária.
De
longe, Dedalus e Dante podem transformar a cidade que abandonaram em
mito e poesia, cantar sua universalidade e lamentar sua corrupção
sem serem distraídos pela realidade. De mais longe ainda, em
Finnegans Wake, sua biografia cifrada da humanidade, Joyce
pode usar Dublin como a metáfora definitiva, uma metáfora de tudo.
De longe, pedra e gente viram linguagem e qualquer cidade vira
literatura.
Todas
as grandes narrativas religiosas têm uma cidade no seu centro,
tornada mítica pela distância. As pedras de Jerusalém são nada
comparadas com a Jerusalém do livro, com a promessa e com a
lamentação da promessa perdida, na linguagem poética do exílio.
Meca é o centro de outro sistema simbólico, ou de outra literatura
sobre uma integridade perdida e desejada, construída não em cima de
uma pedra, mas em cima de uma distância. Os dois Ulisses
representam, no fim, duas formas de distância do nosso centro, do
que nos reintegra ou do que nos revela. A casa ou a descoberta, a
sabedoria ou o conhecimento. Eles são dois tipos de exilados, o que
volta, como o Ulisses de Homero, ou o que segue, como o Ulisses de
Dante. O Ulisses bipartido de Joyce volta e segue.
Leopold
Bloom (que Joyce fez judeu) tem a sua Jerusalém à mão, não
precisa mais do que voltar para o número 7 da Eccles Street e os
braços bem fornidos de Molly para sair do exílio. Stephen Dedalus
prefere continuar a aventura. Partirá de Dublin, escreverá Ulysses
e Finnegans Wake e se não “fabricar a consciência ainda
irrealizada da sua raça na forja da sua alma”, como era sua
intenção, pelo menos causará algum efeito na linguagem da sua
espécie. Reduzindo tudo, que remédio, às dimensões da nossa alma
portuguesa, ele deixará o Tejo e escolherá o mar. Escolherá a
distância.
Ficar,
de certa maneira, é renunciar ao conhecimento, talvez a forma mais
perfeita de sabedoria. Nenhuma revelação, nenhuma epifania, nenhuma
literatura, apenas uma entrega à sua cidade e às suas
circunstâncias e às inevitabilidades da casa. No fim, na morte,
todos os Ulisses voltam, não importa de que exílio.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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