sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Seu destino está nas mãos do “sistema”

Antes da invenção da escrita, as histórias estavam confinadas aos limites da capacidade do cérebro humano. Não era possível inventar histórias excessivamente complicadas das quais as pessoas não conseguiam se lembrar. A escrita, porém, subitamente possibilitou a criação de histórias longas e intricadas, que eram armazenadas em tabuletas e em papiros, e não em cabeças humanas. Nenhum egípcio antigo se lembrava de todas as terras do faraó, seus impostos e seus dízimos, jamais Elvis Presley leu todos os contratos assinados em seu nome; nenhuma alma viva conhece bem todas as leis e todos os regulamentos da União Europeia; e nenhum banqueiro ou agente da CIA consegue rastrear cada dólar que existe no mundo. Mas todas essas minúcias estão escritas em algum lugar, e uma reunião de documentos relevantes pode definir a identidade e o poder do faraó, de Elvis, da União Europeia e do dólar.
Assim, a escrita facultou aos humanos que organizassem sociedades inteiras num modelo algorítmico. Deparamos com o termo “algoritmo” quando tentamos compreender o que são emoções e como o cérebro funciona e o definimos como uma série metódica de passos que pode ser utilizada para a realização de cálculos, a resolução de problemas e a tomada de decisões. Em sociedades iletradas as pessoas fazem todos os cálculos e tomam todas as decisões de cabeça. Em sociedades letradas, organizam-se em redes, de modo que cada pessoa é apenas um pequeno passo num imenso algoritmo, e é o algoritmo como um todo que toma as decisões importantes. Essa é a essência da burocracia.
Pense num hospital moderno. Quando você chega, alguém da recepção lhe apresenta um formulário-padrão e faz um conjunto predeterminado de perguntas. As respostas são encaminhadas a uma enfermeira, que as compara com o regulamento do hospital para decidir que testes preliminares cabem no caso. Ela mede sua pressão e frequência sanguíneas e tira uma amostra de seu sangue. O médico em serviço examina os resultados iniciais e segue um protocolo estrito para determinar em que enfermaria você será admitido. Ali, você é submetido a outros exames mais minuciosos, como uma radiografia ou uma ressonância magnética, regidas por grossos manuais de procedimentos médicos. Especialistas analisam os resultados de acordo com bases conhecidas de dados estatísticos para decidir que medicamentos prescrever ou que exames realizar em seguida.
Essa estrutura algorítmica faz com que não seja realmente importante quem serão os profissionais em serviço. O tipo de personalidade deles, suas opiniões políticas e seu humor ocasional são irrelevantes. Enquanto seguirem regulamentos e protocolos, eles terão uma boa probabilidade de curar você. Segundo o algoritmo ideal, seu destino está nas mãos do “sistema”, e não nas de mortais de carne e osso que por acaso ocupam este ou aquele posto.
O que vale para hospitais vale também para exércitos, prisões, escolas, corporações — e antigos reinos. Claro que o Egito antigo era muito menos sofisticado tecnologicamente do que um hospital moderno, entretanto o princípio algorítmico era o mesmo. Também no Egito antigo a maior parte das decisões era tomada não por uma única e sábia pessoa, mas por uma rede de funcionários conectados por inscrições em papiro e em pedra. Agindo em nome do deus vivo que era o faraó, a rede reestruturou a sociedade humana e reformatou o mundo natural. Por exemplo, os faraós Sesóstris III e seu filho Amenemés III, que governaram o Egito de 1878 a.C. a 1814 a.C., abriram um enorme canal ligando o Nilo aos pântanos do vale Fayum. Um intricado sistema de represas, reservatórios e canais subsidiários desviou as águas do Nilo para Fayum, criando um imenso lago artificial com 50 bilhões de metros cúbicos de água. Comparando, o lago Mead, o maior reservatório construído pelo homem nos Estados Unidos (formado pela represa Hoover), contém no máximo 35 bilhões de metros cúbicos de água.
O projeto de engenharia de Fayum deu ao faraó o poder de regular o Nilo, impedir inundações destruidoras e fornecer uma água preciosa como alívio em tempos de seca. Além disso, transformou o vale de Fayum, de um pântano infestado de crocodilos e cercado por um árido deserto, no celeiro do Egito. Na margem do novo lago artificial foi construída uma nova cidade chamada Shedet. Os gregos a chamavam de Crocodilópolis — a cidade dos crocodilos. Era dominada pelo templo do deus crocodilo Sobek, que era identificado com o faraó (estátuas contemporâneas ocasionalmente mostram o faraó exibindo uma cabeça de crocodilo). O templo abrigava um crocodilo sagrado chamado Petsuchos, que se acreditava ser a encarnação viva de Sobek. Assim como o deus vivo faraó, o deus vivo Petsuchos era alvo dos cuidados afetuosos de sacerdotes em serviço, que proviam prodigamente o sortudo réptil com comida e até brinquedos e o vestiam com mantos de ouro e coroas incrustadas de pedras preciosas. Afinal, Petsuchos era a marca dos sacerdotes, e a autoridade e a subsistência destes dependiam dele. Quando Petsuchos morreu, foi escolhido de pronto um novo crocodilo para ocupar seu lugar, enquanto o réptil morto era cuidadosamente embalsamado e mumificado.
Na época de Sesóstris III e Amenemés III, os egípcios não tinham nem tratores nem dinamite. Nem mesmo instrumentos de ferro, cavalos de tração ou rodas (o uso da roda não era comum no Egito até 1500 a.C.). Ferramentas de bronze eram consideradas o suprassumo da tecnologia, mas eram tão caras e raras que em geral os trabalhos de construção eram realizados com ferramentas de pedra e madeira, operadas pela força de músculos humanos. Muita gente alega que os grandes projetos de construção do Egito antigo — todas as represas e reservatórios e pirâmides — foram concretizados por alienígenas do espaço exterior. De outro modo, como poderia uma cultura carente até mesmo de rodas e de ferro realizar tais milagres?
A verdade é muito diferente. Os egípcios construíram o lago Fayum e as pirâmides graças não à ajuda extraterrena, mas a aptidões organizacionais soberbas. Contando com milhares de burocratas letrados, o faraó recrutou dezenas de milhares de trabalhadores e forneceu comida suficiente para mantê-los trabalhando anos sem fim. Quando dezenas de milhares de trabalhadores cooperam durante várias décadas, eles podem construir um lago artificial ou uma pirâmide mesmo com instrumentos de madeira.
O próprio faraó dificilmente terá erguido um só dedo, obviamente. Não era ele quem recolhia os impostos, ele não desenhou nenhum projeto arquitetônico e certamente não pôs as mãos numa pá. Mas os egípcios acreditavam que somente orações dirigidas ao deus vivo faraó e a seu divino patrono Sobek poderiam salvar o vale do Nilo de inundações e secas devastadoras. Eles tinham razão. O faraó e Sobek eram entidades imaginárias que nada faziam para elevar ou baixar o nível das águas do Nilo, mas milhões de pessoas acreditavam no faraó e em Sobek e cooperaram para construir represas e escavar canais, o que fez com que tanto as inundações como as secas se tornassem raras. Comparados com os deuses sumérios, e sem mencionar os espíritos da Idade da Pedra, os deuses do Egito antigo eram entidades verdadeiramente poderosas que fundaram cidades, ergueram exércitos e controlaram a vida de milhões de humanos, vacas e crocodilos.
Pode parecer estranho creditar a entidades imaginárias a construção ou o controle de coisas reais. Mas costumamos dizer que os Estados Unidos construíram a primeira bomba nuclear, que a China construiu a Represa das Três Gargantas, ou que o Google está construindo um automóvel autônomo. Por que então não dizer que o faraó construiu um reservatório e que Sobek escavou um canal?
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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