terça-feira, 28 de janeiro de 2020

A conversão política de Neruda

Aqueles homens encerrados em muros de silêncio, sobre a terra solitária e sob o solitário céu, tiveram sempre uma curiosidade política vital. Queriam saber o que se passava, tanto na Iugoslávia como na China. Preocupavam-lhes as dificuldades e as mudanças nos países socialistas, o resultado das grandes greves italianas, os rumores de guerras e o despontar de revoluções nos lugares mais distantes.
Em centenas de reuniões, muito longe uma da outra, escutava um pedido constante: que lesse meus poemas. Muitas vezes pediam pelos títulos. Naturalmente nunca soube se todos entendiam ou não entendiam alguns ou muitos dos meus versos. Era difícil determiná-lo naquela atmosfera de mutismo absoluto, de sagrado respeito com que me escutavam. Mas que importância tem isso? Eu, que sou um dos tolos mais instruídos, jamais pude entender vários versos de Hölderlin e de Mallarmé. E diga-se de passagem que os li com o mesmo sagrado respeito.
A comida, quando queria ter ares de festa, era guisado de galinha, ave rara no pampa. A carne que mais comparecia nos pratos era algo para mim difícil de levá-lo à boca: o guisado de cobaias ou porquinhos-da-índia. As circunstâncias faziam um prato favorito deste animalzinho, nascido para morrer nos laboratórios.
As camas que me eram destinadas invariavelmente, nas inumeráveis casas onde dormia, tinham duas características conventuais: lençóis brancos como a neve e duros à custa de goma, capazes de ficar em pé sozinhos, e uma dureza de cama equiparável à da terra do deserto, sem colchão mas apenas com umas tábuas tão lisas quanto implacáveis.
Assim dormia como um bem-aventurado. Sem nenhum esforço compartilhava o sono com a inumerável legião de meus companheiros. O dia era sempre seco e incandescente como uma brasa mas a noite do deserto estendia seu frescor sob uma taça primorosamente estrelada.

Minha poesia e minha vida têm transcorrido como um rio americano, como uma torrente de águas do Chile, nascidas na profundidade secreta das montanhas austrais, dirigindo sem cessar até uma saída marinha o movimento de suas correntes. Minha poesia não rejeitou nada do que pôde trazer em seu caudal; aceitou a paixão, desenvolveu o mistério e abriu caminho entre os corações do povo.
Coube a mim sofrer e lutar, amar e cantar; couberam-me na partilha do mundo o triunfo e a derrota, provei o gosto do pão e o do sangue. Que mais quer um poeta? E todas as alternativas, desde o pranto até os beijos, desde a solidão até o povo, perduram em minha poesia, atuam nela porque vivi para minha poesia e minha poesia sustentou minhas lutas. E se muitos prêmios alcancei, prêmios fugazes como mariposas de pólen fugitivo, alcancei um prêmio maior, um prêmio que muitos desdenham mas que é na realidade inatingível para muitos. Cheguei através de uma dura lição de estética e de busca, através dos labirintos da palavra escrita, a ser poeta de meu povo. Meu prêmio é esse, não os livros e os poemas traduzidos ou os livros escritos para descrever ou dissecar minhas palavras. Meu prêmio é esse momento grave de minha vida quando no fundo da mina de carvão de Lota, sob o sol a pino da salitreira abrasada, do socavão a pique subiu um homem como se ascendesse do inferno, com a cara transformada pelo trabalho terrível, com os olhos avermelhados pelo pó e, estendendo-me a mão calejada, essa mão que leva o mapa do pampa em suas calosidades e em suas rugas, disse-me com olhos brilhantes: “Conhecia-te há muito tempo, irmão.” Esse é o laurel de minha poesia, o agulheiro no pampa terrível, de onde sai um trabalhador a quem o vento e a noite e as estrelas do Chile têm dito muitas vezes: “Não estás só; há um poeta que pensa em teu sofrimento.”
Ingressei no Partido Comunista do Chile no dia 15 de julho de 1945.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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