O
Ulisses de Homero e o Ulisses de Dante se encontram no Ulisses de
James Joyce. Encontram-se, mas não se fundem, transformam-se em dois
personagens: Leopold Bloom, o Ulisses de Homero segundo Joyce, cuja
aventura é uma volta para casa, e Stephen Dedalus, o Ulisses de
Dante segundo Joyce, cujo exílio é uma aventura sem volta.
No
texto de Ulysses, Joyce descreve Dedalus como um “partidor
centrifugal” e Bloom como um “ficador centripedal”. Na odisséia
de um dia só que compartilham, os dois andam pelas margens da
sociedade de Dublin como dois exilados na sua própria terra. Mas
Bloom é um cidadão atrás de uma reintegração com sua sociedade e
seu lar, Stephen é um poeta atrás de uma missão poética, a de
criar a consciência da sua raça, como confessou em outro livro,
quanto mais longe de Dublin melhor.
Bloom,
como o Ulisses de Homero, reencontra sua casa e sua Penélope no fim.
O fim de Dedalus é desconhecido, mas seu destino provável é um
desastre, como o do Ulisses que Dante viu no Inferno. Mas, dos dois,
o único que poderia escrever Ulysses seria Dedalus. Pelo
menos o “Ulysses” de Joyce.
Os
Ulisses se dividem entre os que partem e os que ficam, ou entre os
que voltam e os que seguem no exílio. O velho do Restelo, de Camões,
não entende os que partem, e buscam o mundo quando já têm
Portugal. Os que querem, inexplicavelmente, trocar a paz pela
descoberta, a família pela aventura, a sabedoria pelo conhecimento.
Enfim, o Tejo pelo mar. A origem do nome “Lisboa”, por sinal
(divagação tipo nada a ver), é “cidade de Ulisses”.
Joyce
escolheu ser um “partidor”. O centro da sua ficção
“centrifugal” foi sempre Dublin, mas uma Dublin vista de longe,
reconstruída na memória como metáfora — como a Florença que
expulsou Dante, e que ele continuou a habitar em pensamento e verso
pelo resto da vida. Ou até voltar, velho, quando a reintegração é
apenas uma fatalidade física, tipo todo morto volta para casa, não
uma escolha consciente, ou literária.
De
longe, Dedalus e Dante podem transformar a cidade que abandonaram em
mito e poesia, cantar sua universalidade e lamentar sua corrupção
sem serem distraídos pela realidade. De mais longe ainda, em
Finnegans Wake, sua biografia cifrada da humanidade, Joyce
pode usar Dublin como a metáfora definitiva, uma metáfora de tudo.
De longe, pedra e gente viram linguagem e qualquer cidade vira
literatura.
Todas
as grandes narrativas religiosas têm uma cidade no seu centro,
tornada mítica pela distância. As pedras de Jerusalém são nada
comparadas com a Jerusalém do livro, com a promessa e com a
lamentação da promessa perdida, na linguagem poética do exílio.
Meca é o centro de outro sistema simbólico, ou de outra literatura
sobre uma integridade perdida e desejada, construída não em cima de
uma pedra, mas em cima de uma distância. Os dois Ulisses
representam, no fim, duas formas de distância do nosso centro, do
que nos reintegra ou do que nos revela. A casa ou a descoberta, a
sabedoria ou o conhecimento. Eles são dois tipos de exilados, o que
volta, como o Ulisses de Homero, ou o que segue, como o Ulisses de
Dante. O Ulisses bipartido de Joyce volta e segue.
Leopold
Bloom (que Joyce fez judeu) tem a sua Jerusalém à mão, não
precisa mais do que voltar para o número 7 da Eccles Street e os
braços bem fornidos de Molly para sair do exílio. Stephen Dedalus
prefere continuar a aventura. Partirá de Dublin, escreverá Ulysses
e Finnegans Wake e se não “fabricar a consciência ainda
irrealizada da sua raça na forja da sua alma”, como era sua
intenção, pelo menos causará algum efeito na linguagem da sua
espécie. Reduzindo tudo, que remédio, às dimensões da nossa alma
portuguesa, ele deixará o Tejo e escolherá o mar. Escolherá a
distância.
Ficar,
de certa maneira, é renunciar ao conhecimento, talvez a forma mais
perfeita de sabedoria. Nenhuma revelação, nenhuma epifania, nenhuma
literatura, apenas uma entrega à sua cidade e às suas
circunstâncias e às inevitabilidades da casa. No fim, na morte,
todos os Ulisses voltam, não importa de que exílio.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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