O
sol caía atrás das colinas dentadas, quebradas no ocidente. O
conteúdo da panela fervia penosamente sobre a fogueira. A mãe
entrou na tenda e voltou com o avental cheio de batatas, deixando-as
cair na água fervente.
— Peço
a Deus pra poder lavar logo um pouquinho de roupa. A gente nunca
andou tão suja como agora. Nem as batatas a gente lava mais antes de
cozinhar. Por que isso, hem? Até parece que todos nós perdemos a
coragem.
Os
homens vinham chegando, os olhos cheios de sono, e tinham o rosto
vermelho e inchado, já que não estavam acostumados a dormir de dia.
— Que
foi que houve? — perguntou o pai.
— Vamo
embora — disse Tom. — O polícia diss’pra gente sair daqui. É
bom até, só assim a gente acaba logo com essa viagem. Quanto mais
cedo se sai, mais cedo se chega. Só falta uns quinhentos
quilômetros.
— Eu
pensei que a gente ia descansar um pouco — disse o pai.
— É,
mas não pode ser. A gente tem que ir já, pai — disse Tom. — O
Noah não vem. Ele foi embora, rio abaixo.
— Não
vem? Que diabo ele tem? — E depois estacou bruscamente. — A culpa
é minha — disse abatido. — Aquele rapaz... É culpa minha.
— Que
nada!
— Não
quero mais falar sobre isso — disse o pai. — Não posso falar, a
culpa é minha.
— Bem,
a gente tem que ir de qualquer jeito.
Wilson
interveio agora.
— Nós
não podemos ir, pessoal — disse. — A Sairy não pode mais; ela
está esgotada. Precisa descansar. Se tiver que atravessar o deserto
neste estado, ela morre.
Silenciaram
todos. Depois Tom disse:
— Um
polícia teve aqui e diss’que bota a gente na cadeia se a gente
tiver aqui amanhã ainda.
Wilson
sacudiu a cabeça. Seus olhos estavam vidrados de preocupação, seu
rosto empalideceu sob a tez queimada de sol.
— Então,
ele que nos bote na cadeia. A Sairy não pode viajar deste jeito. Ela
tem que descansar pra ganhar forças.
— É
melhor todo mundo ficar e esperar — disse o pai.
— Não
— disse Wilson. — Vocês todos têm sido muito bons com a gente;
não posso permitir que fiquem. Vocês têm que continuar a viagem,
tratar de arrumar trabalho. Não posso permitir que fiquem.
— Mas
vocês já não têm mais nada! — disse o pai com excitação.
Wilson
sorriu:
— Antes
também não tínhamos nada, quando vocês nos encontraram. Vocês é
que não devem se incomodar com isso. Continuem a viagem, senão eu
perco as estribeiras e brigo já-já com vocês.
A
mãe arrastou o pai até o interior da tenda, e falou baixinho com
ele. Wilson voltou-se para Casy:
— A
Sairy pede pro senhor ir ver ela.
— Pois
não — disse o pregador.
Foi
até a pequena tenda cinza que pertencia aos Wilson, afastou os lados
e entrou. Estava escuro e quente ali dentro. O colchão estava
estendido na terra, e ao redor dele espalhavam-se os pertences do
casal, tal como haviam sido descarregados pela manhã. Sairy estava
deitada no colchão, os olhos muito abertos e brilhantes. Casy parou
e olhou-a, a grande cabeça curvada e os músculos tesos do pescoço
avultando-se dos lados. Tirou o chapéu e ficou a segurá-lo na mão.
— Meu
marido já disse que a gente não podia continuar a viagem?
— Já,
sim senhora.
— Eu
queria que pudéssemos ir também. Sabia que não iria viver o
bastante para chegar até onde pretendíamos, mas queria que ao menos
ele chegasse. Mas ele não quer. Ele não sabe; pensa que eu vou
ficar boa. É que ele não sabe.
— O
sr. Wilson disse que não quer ir.
— Sim,
ele é teimoso. Pedi pro senhor vir aqui pra rezar por mim.
— Mas
eu não sou mais um pregador — disse ele em voz baixa. — Minhas
preces não adiantam.
Ela
umedeceu os lábios.
— Eu
vi o senhor fazer uma prece quando o avô morreu.
— Mas
aquilo não era uma prece.
— Era,
sim. Eu ouvi.
— Não
era prece de um pregador.
— Mas
foi uma bonita prece. Queria que o senhor dissesse uma assim por mim.
— Não
sei o que dizer.
Ela
cerrou os olhos por um instante e logo tornou a abri-los.
— Então
diga para si mesmo. Não precisa dizer alto. Serve assim mesmo.
— Eu
não tenho mais Deus.
— Tem,
sim, eu sei que tem. Não importa o senhor saber ou não o que Ele é,
mas tem sim.
O
pregador curvou a cabeça. Ela o olhou com apreensão. E quando ele
tornou a erguer a cabeça, ela parecia aliviada.
— Isso
foi bom — disse ela. — Era o que eu queria. Alguém perto de mim,
rezando.
Ele
sacudiu a cabeça, como se quisesse despertar de um sonho.
— Não
compreendo... não entendo isso tudo — disse.
E
ela replicou:
— Sim,
o senhor sabe. Não é verdade?
— Sei,
eu sei mas não entendo. Eu... bem, daqui a uns dias a senhora com
certeza estará boa e poderá continuar a viagem.
Ela
moveu a cabeça vagarosamente.
— Eu
não passo de um monte de sofrimentos, coberto de pele. Sei o que é,
mas não quero dizer a meu marido. Ele ia ficar muito triste. Não
adiantava mesmo dizer. Que é que ia fazer? Talvez de noite, quando
ele estiver dormindo... quando acordar, talvez não seja tão ruim
assim.
— A
senhora quer que eu fique aqui com a senhora?
— Não
— disse ela. — Não. Quando eu era criança, gostava muito de
cantar. O povo dizia que eu cantava tão bem como Jenny Lind. E todo
mundo vinha me ouvir cantar. E quando me ouviam, ficavam bem juntos
de mim. E eu me sentia mais próxima deles do que nunca. E me sentia
muito grata. Não acontece muitas vezes a gente ser tão feliz,
sentir os outros tão próximos da gente... como daquela vez que eles
me cercavam todos. Pensava até em cantar um dia num palco, mas nunca
o fiz. Assim, nada se meteu entre mim e eles. Queria sentir mais uma
vez que tinha alguém perto de mim. Cantar ou rezar, é a mesma
coisa. Só gostaria que o senhor pudesse me ouvir cantar.
Ele
a olhou bem nos olhos.
— Bom,
até logo — disse.
Novamente,
ela sacudiu com vagar a cabeça, apertando os lábios. E o pregador
deixou a tenda obscura e viu-se de novo sob a luz ofuscante.
John
Steinbeck, in As vinhas da ira
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