sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Uma prece

O sol caía atrás das colinas dentadas, quebradas no ocidente. O conteúdo da panela fervia penosamente sobre a fogueira. A mãe entrou na tenda e voltou com o avental cheio de batatas, deixando-as cair na água fervente.
Peço a Deus pra poder lavar logo um pouquinho de roupa. A gente nunca andou tão suja como agora. Nem as batatas a gente lava mais antes de cozinhar. Por que isso, hem? Até parece que todos nós perdemos a coragem.
Os homens vinham chegando, os olhos cheios de sono, e tinham o rosto vermelho e inchado, já que não estavam acostumados a dormir de dia.
Que foi que houve? — perguntou o pai.
Vamo embora — disse Tom. — O polícia diss’pra gente sair daqui. É bom até, só assim a gente acaba logo com essa viagem. Quanto mais cedo se sai, mais cedo se chega. Só falta uns quinhentos quilômetros.
Eu pensei que a gente ia descansar um pouco — disse o pai.
É, mas não pode ser. A gente tem que ir já, pai — disse Tom. — O Noah não vem. Ele foi embora, rio abaixo.
Não vem? Que diabo ele tem? — E depois estacou bruscamente. — A culpa é minha — disse abatido. — Aquele rapaz... É culpa minha.
Que nada!
Não quero mais falar sobre isso — disse o pai. — Não posso falar, a culpa é minha.
Bem, a gente tem que ir de qualquer jeito.
Wilson interveio agora.
Nós não podemos ir, pessoal — disse. — A Sairy não pode mais; ela está esgotada. Precisa descansar. Se tiver que atravessar o deserto neste estado, ela morre.
Silenciaram todos. Depois Tom disse:
Um polícia teve aqui e diss’que bota a gente na cadeia se a gente tiver aqui amanhã ainda.
Wilson sacudiu a cabeça. Seus olhos estavam vidrados de preocupação, seu rosto empalideceu sob a tez queimada de sol.
Então, ele que nos bote na cadeia. A Sairy não pode viajar deste jeito. Ela tem que descansar pra ganhar forças.
É melhor todo mundo ficar e esperar — disse o pai.
Não — disse Wilson. — Vocês todos têm sido muito bons com a gente; não posso permitir que fiquem. Vocês têm que continuar a viagem, tratar de arrumar trabalho. Não posso permitir que fiquem.
Mas vocês já não têm mais nada! — disse o pai com excitação.
Wilson sorriu:
Antes também não tínhamos nada, quando vocês nos encontraram. Vocês é que não devem se incomodar com isso. Continuem a viagem, senão eu perco as estribeiras e brigo já-já com vocês.
A mãe arrastou o pai até o interior da tenda, e falou baixinho com ele. Wilson voltou-se para Casy:
A Sairy pede pro senhor ir ver ela.
Pois não — disse o pregador.
Foi até a pequena tenda cinza que pertencia aos Wilson, afastou os lados e entrou. Estava escuro e quente ali dentro. O colchão estava estendido na terra, e ao redor dele espalhavam-se os pertences do casal, tal como haviam sido descarregados pela manhã. Sairy estava deitada no colchão, os olhos muito abertos e brilhantes. Casy parou e olhou-a, a grande cabeça curvada e os músculos tesos do pescoço avultando-se dos lados. Tirou o chapéu e ficou a segurá-lo na mão.
Meu marido já disse que a gente não podia continuar a viagem?
Já, sim senhora.
Eu queria que pudéssemos ir também. Sabia que não iria viver o bastante para chegar até onde pretendíamos, mas queria que ao menos ele chegasse. Mas ele não quer. Ele não sabe; pensa que eu vou ficar boa. É que ele não sabe.
O sr. Wilson disse que não quer ir.
Sim, ele é teimoso. Pedi pro senhor vir aqui pra rezar por mim.
Mas eu não sou mais um pregador — disse ele em voz baixa. — Minhas preces não adiantam.
Ela umedeceu os lábios.
Eu vi o senhor fazer uma prece quando o avô morreu.
Mas aquilo não era uma prece.
Era, sim. Eu ouvi.
Não era prece de um pregador.
Mas foi uma bonita prece. Queria que o senhor dissesse uma assim por mim.
Não sei o que dizer.
Ela cerrou os olhos por um instante e logo tornou a abri-los.
Então diga para si mesmo. Não precisa dizer alto. Serve assim mesmo.
Eu não tenho mais Deus.
Tem, sim, eu sei que tem. Não importa o senhor saber ou não o que Ele é, mas tem sim.
O pregador curvou a cabeça. Ela o olhou com apreensão. E quando ele tornou a erguer a cabeça, ela parecia aliviada.
Isso foi bom — disse ela. — Era o que eu queria. Alguém perto de mim, rezando.
Ele sacudiu a cabeça, como se quisesse despertar de um sonho.
Não compreendo... não entendo isso tudo — disse.
E ela replicou:
Sim, o senhor sabe. Não é verdade?
Sei, eu sei mas não entendo. Eu... bem, daqui a uns dias a senhora com certeza estará boa e poderá continuar a viagem.
Ela moveu a cabeça vagarosamente.
Eu não passo de um monte de sofrimentos, coberto de pele. Sei o que é, mas não quero dizer a meu marido. Ele ia ficar muito triste. Não adiantava mesmo dizer. Que é que ia fazer? Talvez de noite, quando ele estiver dormindo... quando acordar, talvez não seja tão ruim assim.
A senhora quer que eu fique aqui com a senhora?
Não — disse ela. — Não. Quando eu era criança, gostava muito de cantar. O povo dizia que eu cantava tão bem como Jenny Lind. E todo mundo vinha me ouvir cantar. E quando me ouviam, ficavam bem juntos de mim. E eu me sentia mais próxima deles do que nunca. E me sentia muito grata. Não acontece muitas vezes a gente ser tão feliz, sentir os outros tão próximos da gente... como daquela vez que eles me cercavam todos. Pensava até em cantar um dia num palco, mas nunca o fiz. Assim, nada se meteu entre mim e eles. Queria sentir mais uma vez que tinha alguém perto de mim. Cantar ou rezar, é a mesma coisa. Só gostaria que o senhor pudesse me ouvir cantar.
Ele a olhou bem nos olhos.
Bom, até logo — disse.
Novamente, ela sacudiu com vagar a cabeça, apertando os lábios. E o pregador deixou a tenda obscura e viu-se de novo sob a luz ofuscante.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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