Eu
ia sozinho cantando:
Tatu
Peba
Tatu
Pe-reba
Tatu
bola
Tatu
en-rola
Eu
ia sozinho mais o cão. Segurava uma 28 de chumbo e nas costas uma
Winchester 22, também pendurado o bornal com os cartuchos dos dois
calibres, a garrafa com café adoçado e pão de milho para mim e o
Divino, bom veadeiro, mas também de muita serventia para outras
caças, prestimoso que era.
De
vez em quando puxava o facão da bainha presa na cinta para abrir
caminho na mata densa, fechada. Mata escura, sombreada pelas copas de
muitas árvores tapadoras, de raro deixando entrever uma nesga de céu
muito azul sem nuvens.
Já
ia por volta das dez horas e eu ainda não tinha caçado nada.
Calorão da mata, a língua do Divino sempre de fora, também eu
suava, camisa molhada grudada no corpo. Mais de uma vez tive de
atorar cipó com o facão para beber a água de dentro dele e dar
para o cão, tanta a sede de nós dois. Meu rosto preto daquelas
abelhinhas miúdas, pretas que nem mosca. Ao cão não incomodavam
por causa do pêlo, mas em mim, que não usava barba naquele tempo,
me cobriam a cara sugando meu suor pegajoso, tirando dele alimento
para fazer seu mel azedo. Não adiantava espantar as bichinhas, se
não picavam, também não arredavam dali, máscara preta cobrindo
minha cara e fazendo aumentar o calor sentido.
Depois
de muito andar chego numa clareira, que refrigério! Me sento num
toco e vou tirando a garrafa do bornal, quando ouço uns guinchos
ardidos. Era um bando de macacos que, lá no alto, faziam a travessia
de uma peroba para um ipê vizinho. Coisa até interessante de se
ver, iam caminhando pelo galho pelado da peroba bem até a pontinha,
e dali um de cada vez dava um salto, braços levantados, até o ipê.
Pendurado pelo rabo num galho mais alto do ipê, um deles apanhava o
companheiro no ar e, balançando-o, atirava-o são e salvo num galhão
grosso do ipê, de donde seguiam caminho. Se um errasse o salto, ou
se o outro não o agarrasse em tempo, ele caía e ia se esborrachar
no chão lá embaixo. Bicho danado de engenhoso, o macaco, nisso até
se parece com gente.
Não
sou chegado a carne de macaco, acho muito seca, musculosa, sabor
azedo, mas como eu não tinha comido nada até aquela hora, catei a
Winchester e me levantei já apontando para o alto. Divino nem
reparou na cena, entretido que estava com o seu descanso. Cachorro é
bicho mais preocupado com as coisas da terra, o que se passa lá em
cima não lhe interessa, senão já estaria latindo feito um
condenado. Já o macaco, lá no alto, sempre se preocupa com aquilo
que se passa no chão.
Quando
apontei a arma quase todos já tinham passado, sobrava só um
retardatário no galho da peroba. Aquele outro que estava pendurado
pelo rabo no ipê, quando me viu, num átimo pulou para o meio das
folhagens e sumiu da minha vista. Mirei então no retardatário, sem
o companheiro que fugira não tinha como pular para o ipê. No
comprido galho onde estava não tinha ramagem para se esconder, e o
tempo era pouco para ele correr até um lugar mais coberto: eu
atirava antes. O que fez ele quando se viu perdido? Se meteu a gritar
e pular de desespero. Não morreu ali na hora porque não atirei
logo, me distraí, rindo que estava de suas macaquices.
Quando
o bicho se tocou de que eu ia mesmo atirar, pegou das costas um
macaquinho bem pequenininho e o levantou nos braços para me mostrar.
Vi logo que era uma fêmea com sua cria recém-nascida. Gritou, se
ajoelhou e se pôs a chorar — macaco é quase como gente —, uma
mãe me pedindo para eu não matar seu filho.
A
gente faz muita maldade na vida, e na hora não percebe. Eu, ali, fiz
uma que fui pagar bem caro depois, caro demais. Mas na ocasião não
pensei em nada, e dei com o dedo no gatilho da Winchester, Bang. O
que voou de pássaro com o barulho! Tiro certeiro: a macaca despencou
lá de cima — queda demorada de tão alta — e veio se estatelar
no chão da clareira. Só então Divino se deu conta e correu latindo
para a caça estendida, morta. Corri junto, queria ver. Cheguei
antes, e foi bom porque salvei a presa que o cão ia comer. Coisas de
mãe que só Deus explica: não é que mesmo morta a macaca deu um
jeito de proteger a cria?! Ela caiu segurando o filho e, quando
bateram no chão, o corpo dela amorteceu a queda. Morreu bem
mortinha, mas salvou o filho.
Quando
percebi que o cão, nervoso, rosnando, ia abocanhar o filhote, dei um
pontapé no focinho, Passa, Divino!, e protegi o bichinho com as
minhas mãos. O cão perdeu o filho mas ganhou a mãe, e aí abriu a
bocarra e, numa sentada, devorou o cadáver morto da macaca, só
deixou pele peluda e osso grande, o resto mandou para as tripas e
ainda ficou lambendo o sangue do chão.
O
macaquinho tremia e chorava nas minhas mãos. Magrinho e miudinho,
pensei, mas vai me servir de janta. Coloquei o bichinho dentro do
bornal e com o calorzinho ele parou de tremer, aos poucos se acalmou,
acho que até dormiu quieto, esquecido da morte da mãe. E eu peguei
o caminho de casa.
Na
volta perdi o Divino. Caminhou uns tempos ao meu lado, normal, depois
parou e devolveu tudo que tinha comido, vômito verde, fedido. Aí
passou a caminhar inquieto, parando a toda hora para se mijar, sem
levantar a pata, que nem uma cadela. Todo nervoso, começou a latir e
a correr em roda tentando morder o próprio rabo. De repente, deu uma
guinada e disparou ganindo, e sumiu no mato. Chamei, chamei, mas ele
não voltou; ainda pensei em correr atrás dele, mas a mata era muito
fechada e desisti. Nessa hora o macaquinho pôs a cabecinha para fora
do bornal e espiou, olhinhos bem abertos, a mim me pareceu que ele
até estava dando risada. Percebi então que a queda não o tinha
afetado.
Chegado
ao rancho, contei a caçada pra minha mulher e mostrei o macaquinho.
Seu malvado, ela me repreendeu. Isso não é coisa de cristão fazer.
Achou bonito o bichinho: Tadinho, deve estar com fome, o pequeno
órfão!. E se tomou de dores pelo macaquinho. Foi tirar leite da
cabra, e de um vidrinho com um chumaço de pano no gargalo aprontou
uma mamadeira. O danadinho se achou! Era até bonito de ver aquele
toquinho feioso, agarrado aos peitões da minha mulher, tomando seu
leitinho adoçado com rapadura, chupando a mamadeira.
E
como mamava, o desgraçadinho! Não havia leite que chegasse. Não
fosse, um dia depois, o cabritinho ter morrido de picada de cobra,
não sei se a cabra ia ter leite suficiente para o sustento dos dois.
Mamava tanto que dali a uns dias já estava forte e grandinho. Não
sei se foi pelo leite de cabra, mais forte do que o leite da macaca
sua mãe, ou se foi pelo fortume do açúcar de rapadura, só sei que
lhe caiu quase todo pêlo, deixando à vista sua pele enrugadinha,
parda, mosqueada. E daí ficou ainda mais parecido com gente humana.
Minha mulher andava com ele para cima e para baixo, se tomou de
amores pelo bichinho. Não largava dele nem para cozinhar, enquanto
segurava o danadinho com uma das mãos, mexia nas panelas com a
outra. Para cuidar da criação e trabalhar na roça, levava o
macaquinho atado nas costas. Ele bem que gostava, ficava o tempo todo
agarrado à minha mulher, como se ela fosse a mãe dele, a falecida.
Dormia na nossa cama, os dois abraçados como mãe e filho.
Tinha
um pintão enorme, cabeça de prego, e para esconder essa vergonha
minha mulher até fez umas fraldas, que trocava sempre que molhadas.
Era muito dengue para uma criaturinha da mata, mas eu não ligava.
Nossa filha já andava com doze anos, viçosa, bonita, carregava as
tristezas próprias da idade, vivia ensimesmada, já não era
companhia para a mãe. Nosso filho, Pedro, naquele tempo andava
buscando ganhar a vida na cidade e quase nunca vinha nos visitar.
Mulher é bicho diferente, tem suas coisas, suas manias, e desde que
não incomode os outros o melhor é deixar. O carinho dela pelo
macaquinho não perturbava ninguém, nem a mim nem à nossa filha. Se
isso trazia alegria para ela, se diminuía sua solitude naquele
rancho perdido no meio do mato, por que se incomodar, se existem
tantas outras coisas para a gente se preocupar nesta vida que Deus
nos deu? Não é mesmo?
Assim
foi indo até aquela noite da tempestade. Foi logo depois da janta,
já muito escuro começou um vento forte, assobiador, e despencou uma
chuvarada forte como nunca se viu antes, um verdadeiro dilúvio. Um
frio úmido começou tão de repente que tive que me enrolar num
cobertor. Era um relâmpago atrás do outro. A mulher queimou as
palmas bentas e rezava assustada para Santa Bárbara. A menina tinha
pavor de raio, se abraçou a mim fechando os olhos contra o meu
peito, e assim ficou. Só o macaquinho parecia não se incomodar com
o temporal, dormia o sono dos justos bem grudadinho na minha mulher.
Foi
a noite do cão. O medo não deixava ninguém dormir, nem sei como as
águas não levaram embora o meu rancho, as horas foram passando e
nada da chuva querer diminuir. Até que se deu o acontecido: na
madrugada, nós três ainda acordados, assustados, molhados até os
ossos pela chuva que caía pelos buracos do teto, e não é que de
repente o macaquinho acorda, abre os olhinhos, se levanta, caminhando
vai até o fogão, risca um fósforo e acende a lamparina? Na hora
até que a gente não estranhou esse seu ato. Afinal, macaco é bicho
esperto, achamos que o que ele fez não tinha sido nada mais do que
imitar um gesto que tantas vezes nos viu fazer. O de causar espanto
era ver a chama da lamparina, que, naquela ventania toda, se mantinha
reta, firme, bem luminosa. O macaquinho veio se chegando perto de nós
trazendo a lamparina acesa, nos olhos, bem nos olhos, e falou com um
vozeirão grosso:
— Eu
me chamo João da Silva!
— Cruz
credo, Ave Maria, te esconjuro! Já vi muito animal inteligente, mas
nunca dantes nem eu, nem ninguém, viu bicho falar, ainda mais
macaco. Foi um susto só: a menina começou a chorar de medo, o
queixo da mulher caiu lá embaixo, os olhos arregalados, nem sei se
de espanto ou terror. — Eu me chamo João da Silva!
Dito
isso, tirou o pinto para fora da fralda e, rindo de gargalhar, mijou
quase ao pé da gente no chão de terra batida, mijou tão forte que
abriu um buracão.
No
exato momento da mijada, caiu um raio tão forte, tão estrondoso que
alumiou o mundo todo. Tão forte que a noite clareou como dia e
derrubou o flamboyant que meu avô plantara na frente do rancho,
queimando num fogo que nem a chuva conseguiu apagar, aquilo que
talvez fosse a única beleza daquela terra.
Eu
me chamo João da Silva... foi assim que tudo começou. Foi nessa
noite amaldiçoada que ele se revelou, que se fez homem aquele macaco
amaldiçoado que em maldita hora eu fui trazer para dentro da minha
casa. Esse macaco que fez o padre enlouquecer no dia do seu batizado.
Que na escola onde foi aprender as primeiras letras atazanou tanto a
professorinha que ela, coitada, abortou. Esse macaco que sempre
tratei como filho e que abusou da inocência da minha filha, sua
enteada, e fez mal para ela, matando minha mulher de desgosto. Que,
com suas artimanhas diabólicas, fez meu filho Pedro pagar por ele,
até hoje cumprindo pena na cadeia por um crime que o macaco cometeu.
Que de tanto me judiar, me transformou no velho aleijado que hoje eu
sou. Tanta sacanagem, tanta maldade, tanta coisa ruim esse João da
Silva fez, e ainda faz em suas andanças pelo mundo, que se eu fosse
contar levava a vida inteira e ainda não chegava ao fim. Não gosto
nem de lembrar dos crimes hediondos que esse ser maligno cometeu.
Mas, se você não tiver medo de ouvir e, para se precaver, quiser
saber de toda a verdade sobre esse homem-macaco, um dia eu me armo de
coragem e te conto tudo.
Valêncio
Xavier, in Os cem melhores contos brasileiros do século
Nenhum comentário:
Postar um comentário