Uma
amiga querida, ex-aluna, kardecista, me disse com um tom carinhoso
que eu ficaria melhor se abandonasse minha incredulidade e
acreditasse na reencarnação. Com a reencarnação tudo se
explicaria. O universo é lógico, tudo se encaixa, parece bordado, a
gente vê o avesso, mas tem o direito que a gente não vê, tudo que
parece ser desarmonia do lado de cá é harmonia do lado de lá. A
certeza disso apazigua a alma. A gente sofre com resignação. O
final feliz está sempre garantido.
Aí
tive de esclarecer o equívoco sobre a minha religião.
“Pois
saiba você que eu acredito muito na reencarnação. Faz muito tempo
anunciei a minha conversão num artigo de nome esquisito:
‘oãçanracneeR’. Reencarnação ao contrário: não de trás
para adiante, mas de diante para trás. O futuro não me interessa.
Eu nunca o vivi, por isso não posso amá-lo. Não quero ir para o
céu: o tempo infinito deve ser de um tédio insuportável. E o mais
terrível é não ter saída. O céu me dá claustrofobia. Além do
que não quero evoluir. Muitas coisas não podem e não devem
evoluir: canto de sabiá, vermelho de sol poente, cheiro de café
fresquinho, os poemas da Cecília Meireles, ipês floridos, a sonata
Appassionata de Beethoven, uma jabuticaba madura...”
O
que seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? Uma
jabuticabeira florida e perfumada e, depois, coberta de esferas
negras brilhantes e túrgidas, aquele “toc” que a jabuticaba faz
quando a gente morde – esse objeto é perfeito, divino, sem passado
e sem futuro, presente puro destinado à eternidade. Não posso
imaginar que alguma evolução lhe possa ser acrescentada.
O
que eu quero não é evoluir. O que eu quero é viver de novo o
passado que vivi, com muito mais intensidade, sem os sentimentos de
culpa com que minha religião aprisionou o meu corpo, as minhas
ideias e os meus sentimentos... Tenho tristeza pelos pecados que não
cometi... Eram pecados tão inocentes... Estou até desconfiado de
que se Deus está me castigando, ele está me castigando porque eu
não pequei o tanto que ele queria que eu pecasse. Tentei ser mais
espiritual que o próprio Deus e ele ficou bravo comigo... Não
acreditei na advertência de Lutero, escrevendo a Melanchton: “Deus
não salva falsos pecadores. Seja um pecador e peque fortemente, mas
creia e se alegre em Cristo mais fortemente ainda...”. Meu pecado
foi pecar com timidez... Tive medo de gozar a vida... Assim, quando
já são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu Pai-Nosso
herético – ou erótico: “O prazer nosso de cada dia dá-nos
hoje...”.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
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