quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Reencarnação

Uma amiga querida, ex-aluna, kardecista, me disse com um tom carinhoso que eu ficaria melhor se abandonasse minha incredulidade e acreditasse na reencarnação. Com a reencarnação tudo se explicaria. O universo é lógico, tudo se encaixa, parece bordado, a gente vê o avesso, mas tem o direito que a gente não vê, tudo que parece ser desarmonia do lado de cá é harmonia do lado de lá. A certeza disso apazigua a alma. A gente sofre com resignação. O final feliz está sempre garantido.
Aí tive de esclarecer o equívoco sobre a minha religião.
Pois saiba você que eu acredito muito na reencarnação. Faz muito tempo anunciei a minha conversão num artigo de nome esquisito: ‘oãçanracneeR’. Reencarnação ao contrário: não de trás para adiante, mas de diante para trás. O futuro não me interessa. Eu nunca o vivi, por isso não posso amá-lo. Não quero ir para o céu: o tempo infinito deve ser de um tédio insuportável. E o mais terrível é não ter saída. O céu me dá claustrofobia. Além do que não quero evoluir. Muitas coisas não podem e não devem evoluir: canto de sabiá, vermelho de sol poente, cheiro de café fresquinho, os poemas da Cecília Meireles, ipês floridos, a sonata Appassionata de Beethoven, uma jabuticaba madura...”
O que seria uma jabuticaba evoluída? Uma jabuticaba cúbica? Uma jabuticabeira florida e perfumada e, depois, coberta de esferas negras brilhantes e túrgidas, aquele “toc” que a jabuticaba faz quando a gente morde – esse objeto é perfeito, divino, sem passado e sem futuro, presente puro destinado à eternidade. Não posso imaginar que alguma evolução lhe possa ser acrescentada.
O que eu quero não é evoluir. O que eu quero é viver de novo o passado que vivi, com muito mais intensidade, sem os sentimentos de culpa com que minha religião aprisionou o meu corpo, as minhas ideias e os meus sentimentos... Tenho tristeza pelos pecados que não cometi... Eram pecados tão inocentes... Estou até desconfiado de que se Deus está me castigando, ele está me castigando porque eu não pequei o tanto que ele queria que eu pecasse. Tentei ser mais espiritual que o próprio Deus e ele ficou bravo comigo... Não acreditei na advertência de Lutero, escrevendo a Melanchton: “Deus não salva falsos pecadores. Seja um pecador e peque fortemente, mas creia e se alegre em Cristo mais fortemente ainda...”. Meu pecado foi pecar com timidez... Tive medo de gozar a vida... Assim, quando já são poucas as jabuticabas na minha tigela, rezo o meu Pai-Nosso herético – ou erótico: “O prazer nosso de cada dia dá-nos hoje...”.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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