Sinhá
e Seu Antônio Justino vinham ensinar-me o catecismo. Depois a sala
se povoava, D. Maria nos impunha o dever sonolento. Distraía-me
espiando o teto, o voo das moscas, um pedaço do corredor, as
janelas, a casa de azulejos, cabeças de transeuntes. Perto, no
quartel da polícia, José da Luz cantava. Uma réstia descia a
parede, avançava no tijolo, subia outra parede, alcançava o traço
que indicava duas horas. Os garotos soltavam os livros, fechavam com
rumor as caixinhas, ganhavam a rua numa algazarra, iam jogar pião
nas calçadas.
Admirava-me
das expansões ruidosas, censurava-as e invejava-as. Conservar-me-ia
na aula por gosto. Os meus temores ali se dispersavam, entendia-me
bem com aquela gente: o homem preguiçoso, de chinelos, fumante,
bocejador; a solteirona que me desbastava com paciência e me
orientava os dedos teimosos; a velha amorável, bondade verdadeira,
semelhante às figuras celestes do flós-santório.
D.
Maria não era triste nem alegre, não lisonjeava nem magoava o
próximo. Nunca se ria, mas da boca entreaberta, dos olhos doces, um
sorriso permanente se derramava, rejuvenescia a cara redonda. Os
acontecimentos surgiam-lhe numa claridade tênue, que alterava,
purificava as desgraças. E se notícias de violência ou paixão
toldavam essa luz, assustava-se, apertava as mãos, uma nuvem
cobria-lhe o sorriso. Não compreendia as violências e as paixões.
Se o marido e a filha morressem, sofreria — e resignar-se-ia,
confiante nas promessas de Cristo. De fato já se haviam realizado
essas promessas. “Bem-aventurados os que têm sede de justiça”,
zumbiam os meninos cochilando no catecismo. D. Maria não tinha sede
de justiça, não tinha nenhuma espécie de sede, mas era
bem-aventurada: a sua alma simples desejava pouco e se avizinhava do
reino de Deus. Não irradiava demasiado calor. Também não esfriava.
Justificava a comparação de certo pregador desajeitado: “Nossa
Senhora é como uma perua que abre as asas quando chove, acolhe os
peruzinhos.” De Nossa Senhora conhecíamos, em litografias, o
vestido azul, o êxtase, a auréola. D. Maria representava para nós
essa grande ave maternal — e, ninhada heterogênea, perdíamos, na
tepidez e no aconchego, os diferentes instintos de bichos nascidos de
ovos diferentes.
Nessa
paz misericordiosa os meus desgostos ordinários se entorpeceram, uma
estranha confiança me atirava à santa de cabelos brancos,
aliviava-me o coração. Narrei-lhe tolices. D. Maria escutou-me.
Assim amparado, elevei-me um pouco. Os garranchos a tinta continuaram
horrorosos, apesar dos esforços de Sinhá, mas o folheto de capa
amarela foi vencido rapidamente. Tudo ali era fácil e desenxabido:
combinações já vistas na carta de A B C, frases que se articulavam
de um fôlego. E ausência de conselhos absurdos, as monstruosidades
que se arrumavam na página odiosa, triturada, rasgada com
satisfação.
Lendo
o bilhete em que se pedia um segundo livro, meu pai manifestou
surpresa com espalhafato. Houve uma aragem de otimismo, chegaram-me
retalhos de felicidade. Ofereceram-me um carretel de linha,
mandaram-me comprar uma folha de papel vermelho na loja de Seu Filipe
Benício, obtive uma tesoura, grude, pedaços de tábua, e fabriquei
no alpendre um papagaio que não voou. No jantar deram-me toicinho. E
exibiram-me a preciosidade que exteriorizava o meu progresso: volume
feio, com um retrato barbudo e antipático. Ericei-me, pressenti que
não sairia boa coisa dali.
Realmente,
encrenquei, para bem dizer caí num longo sono, de que a perseverança
da mestra não me arrancou. Eu nunca revelara nenhum gênero de
aptidão. Xingado, às vezes tolerado, em raros momentos elogiado sem
motivo, propriamente estúpido não era; mas tornei-me estúpido,
creio que me tornei quase idiota. Os sentidos embotaram-se, o
espírito opaco tomou uma dureza de pedra. Completamente inerte.
Depois,
muito depois, avancei uns passos na sombra. Recuei, desnorteei-me.
Andei sempre em ziguezagues. Certamente não foi o segundo livro a
causa única do meu infortúnio. Houve outras, sem dúvida. Julgo,
porém, que o maior culpado foi ele.
Graciliano
Ramos, in Infância
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