quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

D. Maria

Sinhá e Seu Antônio Justino vinham ensinar-me o catecismo. Depois a sala se povoava, D. Maria nos impunha o dever sonolento. Distraía-me espiando o teto, o voo das moscas, um pedaço do corredor, as janelas, a casa de azulejos, cabeças de transeuntes. Perto, no quartel da polícia, José da Luz cantava. Uma réstia descia a parede, avançava no tijolo, subia outra parede, alcançava o traço que indicava duas horas. Os garotos soltavam os livros, fechavam com rumor as caixinhas, ganhavam a rua numa algazarra, iam jogar pião nas calçadas.
Admirava-me das expansões ruidosas, censurava-as e invejava-as. Conservar-me-ia na aula por gosto. Os meus temores ali se dispersavam, entendia-me bem com aquela gente: o homem preguiçoso, de chinelos, fumante, bocejador; a solteirona que me desbastava com paciência e me orientava os dedos teimosos; a velha amorável, bondade verdadeira, semelhante às figuras celestes do flós-santório.
D. Maria não era triste nem alegre, não lisonjeava nem magoava o próximo. Nunca se ria, mas da boca entreaberta, dos olhos doces, um sorriso permanente se derramava, rejuvenescia a cara redonda. Os acontecimentos surgiam-lhe numa claridade tênue, que alterava, purificava as desgraças. E se notícias de violência ou paixão toldavam essa luz, assustava-se, apertava as mãos, uma nuvem cobria-lhe o sorriso. Não compreendia as violências e as paixões. Se o marido e a filha morressem, sofreria — e resignar-se-ia, confiante nas promessas de Cristo. De fato já se haviam realizado essas promessas. “Bem-aventurados os que têm sede de justiça”, zumbiam os meninos cochilando no catecismo. D. Maria não tinha sede de justiça, não tinha nenhuma espécie de sede, mas era bem-aventurada: a sua alma simples desejava pouco e se avizinhava do reino de Deus. Não irradiava demasiado calor. Também não esfriava. Justificava a comparação de certo pregador desajeitado: “Nossa Senhora é como uma perua que abre as asas quando chove, acolhe os peruzinhos.” De Nossa Senhora conhecíamos, em litografias, o vestido azul, o êxtase, a auréola. D. Maria representava para nós essa grande ave maternal — e, ninhada heterogênea, perdíamos, na tepidez e no aconchego, os diferentes instintos de bichos nascidos de ovos diferentes.
Nessa paz misericordiosa os meus desgostos ordinários se entorpeceram, uma estranha confiança me atirava à santa de cabelos brancos, aliviava-me o coração. Narrei-lhe tolices. D. Maria escutou-me. Assim amparado, elevei-me um pouco. Os garranchos a tinta continuaram horrorosos, apesar dos esforços de Sinhá, mas o folheto de capa amarela foi vencido rapidamente. Tudo ali era fácil e desenxabido: combinações já vistas na carta de A B C, frases que se articulavam de um fôlego. E ausência de conselhos absurdos, as monstruosidades que se arrumavam na página odiosa, triturada, rasgada com satisfação.
Lendo o bilhete em que se pedia um segundo livro, meu pai manifestou surpresa com espalhafato. Houve uma aragem de otimismo, chegaram-me retalhos de felicidade. Ofereceram-me um carretel de linha, mandaram-me comprar uma folha de papel vermelho na loja de Seu Filipe Benício, obtive uma tesoura, grude, pedaços de tábua, e fabriquei no alpendre um papagaio que não voou. No jantar deram-me toicinho. E exibiram-me a preciosidade que exteriorizava o meu progresso: volume feio, com um retrato barbudo e antipático. Ericei-me, pressenti que não sairia boa coisa dali.
Realmente, encrenquei, para bem dizer caí num longo sono, de que a perseverança da mestra não me arrancou. Eu nunca revelara nenhum gênero de aptidão. Xingado, às vezes tolerado, em raros momentos elogiado sem motivo, propriamente estúpido não era; mas tornei-me estúpido, creio que me tornei quase idiota. Os sentidos embotaram-se, o espírito opaco tomou uma dureza de pedra. Completamente inerte.
Depois, muito depois, avancei uns passos na sombra. Recuei, desnorteei-me. Andei sempre em ziguezagues. Certamente não foi o segundo livro a causa única do meu infortúnio. Houve outras, sem dúvida. Julgo, porém, que o maior culpado foi ele.
Graciliano Ramos, in Infância

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