quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Nas éras de 96


Mas, mire e veja o senhor! nas éras de 96, quando os serranos cismaram e avançaram, tomaram conta de São Francisco, sem prazo nem pena. Mas, nestes derradeiros anos, quando Andalécio e Antônio Dó forcejaram por entrar lá, quase com homens mil e meio-mil, a cavalo, o povo de São Francisco soube, se reuniram, e deram fogo de defesa! diz-que durou combate por tempo de três horas, tinham armado tranquias, na boca das ruas ― com tapigos, montes de areia e pedra, e árvores cortadas, de través ― brigaram como boa população! Daí, aqueles retornaram, arremeteram mesmo, senhores da cidade quase toda, conforme guerrearam contra o Major Alcides Amaral e uns soldados, cercados numas duas ou três casas e um quintal, guerrearam noites e dias. A ver, por vingar, porque antes o major Amaral tinha prendido o Andalécio, cortado os bigodes dele. Andalécio ― o que, de nome real! Indalécio Gomes Pereira ― homem de grandes bigodes. Sei de quem ouviu, se recordava sempre com tremores! de quando, no tiroteio de inteira noite, Andalécio comandava e esbarrava, para gritar feroz! ― Sai pra fora, cão! Vem ver! Bigode de homem não se corta!... Tudo gelava, de só se escutar. Aí, quem trouxe socôrro, para salvar o Major, foi o delegado Doutor Cantuária Guimarães, vindo às pressas de Januária, com punhadão de outros jagunços, de fazendeiros da política do Governo. Assim que salvaram, mandaram desenterrar, para contar bem, mais de sessenta mortos, uns quatorze juntos numa cova só! Essas coisas já não aconteceram mais no meu tempo, pois por aí eu já estava retirado para ser criador, e lavrador de algodão e cana. Mas o mais foi ainda atual agora, recentemente, quase, isto é; foi logo de se emendar depois do barulhão em Carinhanha ― mortandades: quando se espirrou sangue por toda banda, o senhor sabe: Carinhanha ébonitinha... ― uma verdade que barranqueiro canta, remador. Carinhanha é que sempre foi de um homem de valor e poder: o coronel João Duque ― o pai da coragem. Antônio Dó eu conheci, certa vez, naVargem Bonita, tinha uma feirinha lá, ele se chegou, com uns seus cabras, formaram grupo calados, arredados. Andalécio foi meu bom amigo. Ah, tempo de jagunço tinha mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?
Atinei mal, no começo, com quem era que mandava em nós todos. O Hermógenes. Mas, perto duns cinquenta ― nesse meio o Acauã, Simião, Luís Pajeú, Jesualdo e o Fafafa ― obedeciam a João Goanhá, eram dele. E tinha um grupo de brabos do Ricardão. Onde era que estava o Ricardão? Reunindo mais braços-de-armas, beira da Bahia. Se esperava também a vinda de Sô Candelário, com os seus. Se esperava o chefe grande, acima de todos ― Joca Ramiro ― falado aquela hora em Palmas. Mas eu achava aquilo tudo dando confuso. Titão Passos, cabo-de-turma com poucos homens à mão, era nãostante muito respeitado. E o sistema diversiava demais do regime com Zé Bebelo. Olhe: jagunço se rege por um modo encoberto, muito custoso de eu poder explicar ao senhor. Assim ― sendo uma sabedoria sutil, mas mesmo sem juízo nenhum falável; o quando no meio deles se trança um ajuste calado e certo, com semêlho, mal comparando, com o governo de bando de bichos ― caititú, boi, boiada, exemplo. E, de coisas, faziam todo segredo. Um dia, foi ordem! ajuntar todos os animais, de sela e de carga, iam ser levados para amoitamento e pasto, entre serras, no Ribeirão PoçoTriste, num varjal. Para mim, até o endereço que diziam, do lugar, devia de ser mentira. Mas tive de entregar meu cavalo, completo no contragôsto. Me senti, a pé, como sem segurança nenhuma. E tem as pequenas coisas que aperreiam! enquanto estava com meu animal, eu tinha a capoteira, a bolsa da sela, os alforjes; podia guardar meus trecos. De noite, dependurava a sela num galho de árvore, botava por debaixo dela o dobro com as roupas, dormia ali perto, em paz. Agora, eu ficava num descômodo. Carregar os trens não podia ― chegava o peso das armas, e das balas e cartuchame. Perguntei a um, onde era que tudo se depositava. ― Eh, berêu... Bota em algum lugar... Joga fora... Oxe, tu carrega ouro nesses dobros?... Quê que se importavam? Por tudo, eram fogueiras de se cozinhar, fumaça de alecrim, panela em gancho de mariquita, e cheiro bom de carne no espeto, torrada se assando, e batatas e mandiocas, sempre quentes no soborralho. A farinha e rapadura! quantidades. As mantas de carne-ceará. Ao tanto que a carne-de-sol não faltasse, mesmo amiúde ainda saíam alguns e retornavam tocando uma rês, que repartiam. Muitos misturavam a jacuba pingando no coité um dedo de aguardente, eu nunca tinha avistado ninguém provar jacuba assim feita. Os usares! A ver, como o Fafafa abria uma cova quadrada no chão, ajuntava ali brasas grandes, direto no brasal mal-assasse pedação de carne escorrendo sangue, pouco e pouco revirava com a ponta do facão, só pelo chiar. Disso, definitivo não gostei. A saudade minha maior era de uma comidinha guisada! um frango com quiabo e abóbora-d água e caldo, um refogado de carurú com ofa de angú. Senti padecida falta do São Gregório ― bem que a minha vidinha lá era mestra. Diadorim notou meus males. Me disse consolo: ― Riobaldo, tem tempos melhores. Por ora, estamos acuados em buraco... Assistir com Diadorim, e ouvir uma palavrinha dele, me abastava aninhado.
Mas, mesmo, achei que ali convinhável não era se ficar muito tempo juntos, apartados dos outros. Cismei que maldavam, desconfiassem de ser feio pegadio. Aquele povo estava sempre misturado, todo o mundo. Tudo era falado a todos, do comum: às mostras, às vistas. Diferente melhor, foi quando estivemos com Medeiro Vaz: o maior número lá era de pessoal dos gerais ― gente mais calada em si e sozinha, moradores das grandes distâncias. Mas, por fim, um se acostuma; isto é, eu me acostumei. Sem receio de ser tirado de meu dinheiro: que eu empacotava ainda boa quantia, que Zé Bebelo sempre me pagou no pontual, e gastar eu não tinha onde. Recontei. Aí, quis que soubessem logo como era que eu atirava. Até gostavam de ver: ― Tatarana, põe o dez no onze... ― me pediam, por festar. De duzentas braças, bala no olho de um castiçal eu acertava. Num aquele alvo só ― as todas, todas! Assim então esbarrei aquilo com que me aperreavam, os coscuvilhos. ― Se alguém falou mal de mim, não me importo. Mas não quero que me venham me contar! Quem vier contar, e der notícias é esse mesmo que não presta: e leva o puto nome-da-mãe, e de que é filho!... ― eu informei. O senhor sabe: nome-da-mãe, e o depois, quer dizer ― meu pinguelo. Sobre o fato, para de mim não desaprenderem, não se esquecerem, eu pegava o rifle ― tive rifle de Winchester, até, de quatorze tiros ― e dava gala de entremez. ― Corta aquele risco Tatarana! ― me aprovavam. Se eu cortasse? Nunca errei. Para rebater, reproduzia tudo a revólver. ― Vem um cismo de fio de cabelo no ar, que eu acerto. Sobrefiz. Social eu andava com minhas cartucheiras triplas, só que atochadas sempre. Ao que, me gabavam e louvavam, então eu esbarrava sossegado.
Surgidamente, aí, principiou um desejo que tive ― que era o de destruir alguém, a certa pessoa. O senhor pode rir! seu riso tem siso. Eu sei. Eu quero é que o senhor repense as minhas tolas palavras. E, olhe! tudo quanto há, é aviso. Matar a aranha em teia. Se não, por que era que já me vinha a ideia desejável! que joliz havia de ser era se meter um balaço no baixo da testa do Hermógenes?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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