domingo, 14 de agosto de 2022

2 | Stampede Trail


Jack London é rei. Alexander Supertramp Maio de 1992

GRAFITE ENTALHADO NUM PEDAÇO DE MADEIRA ENCONTRADO NO LOCAL DA MORTE DE CHRIS MCCANDLESS

A floresta escura de abetos erguia-se carrancuda de ambos os lados do rio congelado. As árvores tinham sido despidas de sua cobertura branca de gelo por um vento recente e pareciam inclinar-se umas para as outras, negras e agourentas, na luz evanescente. Um vasto silêncio reinava sobre a terra. A própria terra era uma desolação, sem vida, sem movimento, tão solitária e fria que seu espírito não era nem mesmo o da tristeza. Havia um laivo de riso nela, mas de um riso mais terrível que qualquer tristeza - um riso que era tão sombrio quanto o sorriso da Esfinge, um riso tão frio quanto o gelo e compartilhando a severidade da infalibilidade. Era a imperiosa e incomunicável sabedoria da eternidade rindo da futilidade da vida e do esforço de viver: Era a Natureza, a selvagem, a de coração gélido, a Natureza das Terras do Norte.
Jack London – Caninos Brancos

Na margem norte da cadeia do Alasca, logo antes que as escarpas volumosas do McKinley e seus satélites se rendam à baixa planície de Kantishna, uma série de elevações menores, conhecidas como cadeia Exterior, espalha-se pelo terreno plano como um cobertor amarfanhado numa cama desarrumada. Entre as cristas pétreas das duas escarpaduras mais externas da cadeia Exterior corre uma depressão no sentido leste-oeste, com cerca de oito quilômetros de largura, alcatifada por um amálgama pantanoso de musgos e juncos, moitas de amieiros e veios de abetos esqueléticos. Serpenteando pelas terras baixas onduladas e emaranhadas encontra-se a Stampede Trail, rota que Chris McCandless seguiu ao se afastar da civilização.
A trilha, aberta na década de 30 por um lendário mineiro do Alasca chamado de Earl Pilgrim [Conde Peregrino], levava a uma mina de antimônio, que ele reivindicou, junto ao córrego Stampede, acima da bifurcação Águas Claras do rio Toklat. Em 1961, a Yutan Construction, uma empresa de Fairbanks, foi contratada pelo novo estado do Alasca (situação a que o território fora elevado dois anos antes) para melhorar a trilha, transformando-a em estrada pela qual os caminhões pudessem retirar o minério durante o ano inteiro. Para abrigar os operários durante as obras, a Yutan comprou três ônibus velhos, dotou-os de beliches e um fogão simples feito de tonel e arrastou-os até o local com um Caterpillar D-9.
O projeto foi suspenso em 1963; cerca de oitenta quilômetros de estrada chegaram a ser construídos, mas nunca se ergueram as pontes sobre os diversos rios que atravessava; pouco depois, ela tornou-se intransitável pelo degelo da Permafrost e por enchentes sazonais. A empresa rebocou de volta para a estrada dois dos ônibus. O terceiro foi deixado a meio caminho da trilha para servir de abrigo aos caçadores de animais e peles. Nas três décadas decorridas desde que a construção parou, boa parte do leito da estrada foi destruído por enxurradas, macega e lagos de castores, mas o ônibus continua lá.
Um International Harvester de primeira linha da década de 40, o veículo está abandonado a quarenta quilômetros a oeste de Healy, enferrujando de modo desigual entre as ervas à margem da trilha, logo depois da fronteira do Parque Nacional Denali. O motor já não existe. Várias janelas estão rachadas ou foram arrancadas e garrafas quebradas de uísque espalham-se pelo chão. A pintura verde e branca está muito oxidada. Letras castigadas pelo tempo indicam que a velha máquina pertenceu ao Sistema de Trânsito da Cidade de Fairbanks: ônibus 142. Hoje em dia não é incomum que o veículo passe seis ou sete meses sem receber um visitante humano, mas no começo de setembro de 1992 aconteceu de seis pessoas em três grupos diferentes visitarem, na mesma tarde, o ônibus abandonado.
Em 1980, o Parque Nacional Denali foi ampliado para incluir os montes Kantishna e o extremo norte da cadeia Exterior, mas uma parte de terras baixas dentro da nova extensão do parque foi deixada de fora: um longo braço de terra conhecido como Wolf Townships [Distritos dos Lobos], que abrange a primeira metade da Stampede Trail. Esse trecho de onze por 32 quilômetros está cercado por três lados de terreno protegido do parque e, por isso, é rico em lobos, ursos, caribus, alces e outros animais de caça, um segredo que é bem guardado pelos caçadores locais. No outono, assim que abre a temporada de caça ao alce, um punhado de caçadores costuma visitar o velho ônibus, estacionado ao lado do rio Sushana, no extremo oeste do trecho que não pertence ao parque, a três quilômetros do seu limite.
Ken Thompson, dono de uma oficina de funilaria de Anchorage; Gordon Samel, seu empregado; e seu amigo Ferdie Swanson, operário de construção, partiram para o ônibus no dia 6 de setembro de 1992, atrás de alces. Não é um lugar fácil de chegar. Uns quinze quilômetros depois do fim da estrada melhorada, a Stampede Trail cruza o rio Teklanika, uma corrente forte e gelada cujas águas ficam opacas com resíduos das geleiras. A trilha desce até a margem do rio logo acima de uma garganta estreita, pela qual o Teklanika jorra sua água branca. A perspectiva de vadear essa torrente leitosa desencoraja a maioria das pessoas a ir adiante.
Mas Thompson, Samel e Swanson são alasquianos contumazes, com especial predileção por dirigir veículos motorizados onde eles não foram feitos para andar. Ao chegar ao Teklanika, exploraram as margens até localizar uma seção larga, trançada com canais relativamente rasos, e então entraram de frente na água.
Eu entrei primeiro”, conta Thompson. “O rio tinha provavelmente vinte metros de largura e era muito rápido. Minha máquina é um Dodge 824 por 4 com calço de molas e pneus de 38 polegadas e a água chegava ao capô. Teve uma hora em que achei que não ia conseguir atravessar. Gordon tem um guincho com capacidade de três toneladas e meia na frente de seu carro e fiz com que ele andasse logo atrás de mim para que pudesse me puxar se eu sumisse de vista.”
Thompson chegou à margem oposta sem incidentes, seguido por Samel e Swanson, em seus respectivos veículos. Na carroceria das duas picapes estavam veículos leves para qualquer tipo de terreno: um de três rodas, o outro de quatro. Eles estacionaram os carrões numa faixa de cascalho, descarregaram os veículos leves e continuaram na direção do ônibus nas máquinas mais manobráveis.
Poucos metros adiante do rio, a trilha desaparecia numa série de lagos de castores onde a água batia no peito. Sem hesitar, os três alasquianos dinamitaram os diques de galhos e drenaram os lagos. Foram então adiante, subindo o leito de um riacho pedregoso através de moitas de amieiros. Era final da tarde quando chegaram finalmente ao ônibus e, segundo Thompson, encontraram “a quinze metros de distância, um cara e uma garota de Anchorage com cara de quem viu assombração”.
Nenhum dos dois entrara no ônibus, mas tinham chegado perto o suficiente para notar “um mau cheiro de verdade que vinha de dentro”. Uma bandeira de sinalização improvisada – um aquecedor de perna de tricô vermelho, do tipo usado por dançarinos – estava amarrada na ponta de um galho de amieiro na porta de trás do veículo. A porta estava entreaberta e grudada nela havia um bilhete inquietante. Escrito em letra de forma numa página arrancada de um romance de Nicolai Gogol, dizia:

S.O.S. PRECISO DE SUA AJUDA. ESTOU FERIDO, QUASE MORTO E FRACO DEMAIS PARA SAIR DAQUI. ESTOU SOZINHO, ISTO NÃO É PIADA. EM NOME DE DEUS, POR FAVOR FIQUE PARA ME SALVAR. ESTOU CATANDO FRUTAS POR PERTO E DEVO VOLTAR ESTA TARDE. OBRIGADO. CHRIS MCCANDLESS. AGOSTO

O casal de Anchorage ficara muito perturbado com as implicações do bilhete e o forte cheiro de decomposição para examinar o interior do ônibus; então Samel encheu-se de coragem e foi dar uma olhada. Uma espiada pela janela revelou um rifle Remington, uma caixa de plástico de cartuchos, oito ou nove livros, uns jeans rasgados, utensílios de cozinha e uma mochila cara. No fundo do veículo, num beliche barato, havia um saco de dormir que parecia conter algo ou alguém, embora, como diz Samel, fosse “difícil ter certeza absoluta”.
Subi num toco, continua Samel, enfiei a mão por uma janela de trás e sacudi o saco. Havia realmente algo dentro dele, mas, o que quer que fosse, pesava muito pouco. Foi só quando dei a volta pelo outro lado e vi uma cabeça para fora do saco que tive certeza do que era.” Chris McCandless estava morto havia duas semanas e meia.
Samel, um homem de opiniões fortes, decidiu que o corpo deveria ser evacuado imediatamente. Porém, não havia espaço em sua pequena máquina nem na de Thompson para transportar o morto, nem na do casal de Anchorage. Um pouco depois, uma sexta pessoa apareceu no local, um caçador de Healy chamado Butch Killian. Como estava dirigindo um Argo – um off road anfíbio de oito rodas – Samel sugeriu que Killian levasse os despojos, mas ele se recusou, insistindo em que aquilo era tarefa da Força Pública.
Killian, mineiro de carvão que à noite é paramédico de emergência dos Bombeiros Voluntários de Healy, tinha um rádio no Argo. De onde estavam, não conseguiu contatar ninguém, mas oito quilômetros abaixo, na direção da rodovia, pouco antes de escurecer, conseguiu falar com o operador de rádio da usina elétrica de Healy: “Aqui é Butch. É melhor você chamar os soldados. Há um homem no ônibus do Sushana. Parece que está morto há algum tempo”.
Às oito e meia da manhã seguinte, um helicóptero da polícia desceu ruidosamente ao lado do ônibus, numa saraivada de poeira e folhas de choupo. Os soldados fizeram um rápido exame do veículo e das imediações buscando sinais de crime e depois partiram. Com eles, levaram os restos de McCandless, uma câmera com cinco rolos de filme batidos, o bilhete de SOS e um diário – escrito sobre as duas últimas páginas de um guia de campo de plantas comestíveis – que registrava as semanas finais do rapaz em 113 notas concisas e enigmáticas.
O corpo foi levado para Anchorage, onde se realizou uma autópsia no Laboratório Científico de Detecção de Crimes. Os restos estavam tão decompostos que era impossível determinar exatamente a data da morte, mas o legista não encontrou sinais de grandes ferimentos internos nem ossos quebrados. Não restava praticamente nada de gordura subcutânea no cadáver e os músculos tinham definhado bastante nos dias ou semanas anteriores à morte. No momento da autópsia, os restos de McCandless pesavam trinta quilos e quatrocentos gramas. A inanição foi aventada como a causa mais provável da morte.
A assinatura de McCandless estava no final do bilhete de 50S, e entre as fotos reveladas havia muitos auto-retratos. Mas como não havia nenhum documento de identidade, as autoridades não sabiam quem era ele, de onde vinha, nem por que estava ali.

Jon Krakauer, in Na Natureza Selvagem

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