Na origem da humanidade, o homem não sabia distinguir a si mesmo dos outros que o circundavam. Não havia pronomes, já que não havia diferenciação entre os seres. O homem, assim, pensava, se é que se pode atribuir a ele essa ação tão recente na história da humanidade, que os outros eram extensões ou modificações de si mesmo. Quando alguém não gostava do que via, atacava a si próprio, achando que, com isso, conseguiria extirpar o que lhe desagradava. Da mesma maneira, quando um homem encontrava uma mulher que lhe aprazia, buscava encontrar em seu próprio corpo, coçando-se, mexendo-se, a fonte daquele prazer. Também acontecia com muita frequência, é claro, de os indivíduos tocarem-se uns aos outros, atacarem-se ou conhecerem-se, mas sempre com a sensação de que aqueles encontros não eram nada mais que o corpo de cada um agregado à natureza. Assim, também não havia distinção entre os seres e as manifestações naturais ou cósmicas, como as árvores, o sol e o trovão. Tudo era um só corpo; o que não significava a ausência de disputas e guerras. Aconteceu, entretanto, que um desses seres, habitante de uma caverna de folhelho no interior da atual França, enquanto roía um osso e acompanhava o barulho da chuva, percebeu que o som da chuva batendo nas paredes mais finas da caverna, acompanhado das mordidas compassadas que aplicava às últimas carnes que restavam do osso, produzia uma batida regular que lhe agradava e que ele não se lembrava de ter provado antes. Como que à sua revelia, começou a percutir aquele ritmo e acompanhá-lo com as pontas dos dedos. Assustou-se. Quem estava produzindo aquele som, idêntico ao barulho ritmado que escutava? Olhou para seus dedos e sentiu o ar que saía de sua boca e se deu conta, para seu espanto e medo, de que era o seu corpo mesmo que o fabricava. Experimentou novamente aqueles sons e viu que podia modificá-los, decidindo-se por imitar ou não os sons externos. Essa foi, creem os cientistas, a primeira vez que um ser humano conseguiu compreender precariamente a distinção entre o lado de dentro e o de fora. Dali em diante, aquele homem passou a aplicar aquela temerária e ainda incipiente descoberta a muitas outras coisas. Em segredo, emitia sons imitando vários outros barulhos da natureza, e foi percebendo as diferenças de ruídos que os indivíduos produziam. Ia também acompanhando alguns ritmos com os dedos das mãos, e, logo em seguida, com os dedos dos pés. Deu para assustar seus companheiros, emitindo sons que ecoavam no folhelho e repercutiam nas paredes da caverna. Todos procuravam em si mesmos a origem daqueles barulhos e reagiam desorientados. Numa dessas vezes, o homem riu. Sentiu seu corpo se contraindo, a urina apertando-lhe as entranhas, e um misto de medo e prazer tomou conta dele. Todas essas experiências, que aquele homem, não se sabe por quê, praticava em segredo, levaram-no a, fortuitamente, experimentar riscar, com um pedaço de galho, o folhelho macio da caverna onde costumava dormir. O folhelho respondeu e aceitou o risco de maneira dócil, permitindo que se formasse um traço grosso que, aos olhos do homem, lembrava o voo de um pássaro atravessando o céu, movimento que gostava de passar horas observando. A partir daí, Tortr, que seria seu futuro nome, por ele mesmo criado e adotado, começou a desenhar muitas formas de que gostava, a cantarolar, imitar sons e emitir ruídos cada vez mais numerosos e menos secretos. Assustava os mais velhos com gritos, contagiava as crianças, que por sua vez também o imitavam, e atraía as mulheres, que se aproximavam dele para aprender a rir e sentavam-se para escutá-lo. Foi assim, no meio de uma tarde de brigas e algazarra, que Tortr teve a súbita e dolorida compreensão do que se passava. Aqueles seres que o rodeavam eram como ele, iguais a ele, mas não eram ele. Cada um era um corpo separado, capaz de produzir as mesmas coisas que ele, Tortr, e ainda outras. Correu para o seu canto da caverna de folhelho e foi às pressas procurar aquela outra criatura que o imitava perfeitamente, no interior da caverna. Ele estava ali, esperando por ele, e imitando todos os seus gestos à perfeição. Tortr tentava agarrá-lo, mas, por sua vez, o outro também tentava, e nenhum dos dois conseguia. Tortr reparou em suas mãos, suas pernas, seu rosto, e viu que o homem atrás do folhelho era em tudo idêntico a ele. Uma ideia, e essa foi a primeira ideia a surgir na mente de um homem, passou raspando pela imaginação de Tortr. Aquele homem era ele, ele mesmo. Tortr empalideceu, riu, começou a se mexer compulsivamente e a soltar breves ruídos de alegria e curiosidade. Não dormiu naquela noite e passou a madrugada inteira riscando traços diante daquele homem, que também riscava. De manhã cedo, Tortr já havia compreendido tudo. Ele era um e os outros eram outros. Aquela imagem no folhelho era ele mesmo. Seria preciso agora mostrar isso a todos e ensinar cada um a diferenciar-se. Entre os riscos produzidos durante aquela noite, Tortr encontrou uma combinação casual que o alegrava. Era um risco vertical e reto, cortado por três riscos horizontais e paralelos. Era a letra E, que nascia naquele momento e que, alguns dias mais tarde, serviu para que Tortr inventasse também o pronome “eu”, com que podia discriminar-se de todos, possibilitar a todos que também se discriminassem e que, mais tarde, inventassem em conjunto as primeiras canções, os poemas, as guerras e as palavras “elefante”, “ébano” e “ecgonina”, cujo significado ninguém conhece até os dias de hoje.
Noemi Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto