sábado, 28 de novembro de 2020

Diderot, Jacques, le Fataliste

         O espaço de Diderot entre os pais da literatura contemporânea vem aumentando continuamente e por mérito sobretudo de seu antirromance-metarromance-hiper-romance Jacques, o Fatalista, e seu amo, cuja riqueza e carga de novidade jamais se terminará de explorar.
Comecemos por dizer que, invertendo aquilo que já então era a intenção principal de todo romancista — fazer o leitor esquecer que está lendo um livro, para que se abandone à história narrada como se a estivesse vivendo —, Diderot põe em primeiro plano o duelo entre o autor que está contando sua história e o leitor que não deseja nada além de ouvi-la: as curiosidades, as expectativas, as desilusões, os protestos do leitor e as intenções, as polêmicas, os arbítrios do autor ao decidir a sequência da história são um diálogo que serve de moldura para o diálogo dos dois protagonistas, por sua vez moldura de outros diálogos…
Transformar a relação com o livro de aceitação passiva para questionamento contínuo ou até uma espécie de ducha escocesa que mantenha aceso o espírito crítico: esta é a operação com a qual Diderot antecipa de dois séculos aquilo que Brecht quis fazer com o teatro. Com a diferença de que Brecht o fará em função de suas pretensões didáticas precisas, ao passo que Diderot aparenta querer apenas eliminar todo preconceito.
Convém observar que Diderot joga um pouco com o leitor como o gato com o rato, abrindo-lhe o leque das várias possibilidades a cada nó da história, como para deixar-lhe a liberdade de escolher a continuação que mais lhe agradar, para depois desiludi-lo descartando todas exceto uma que é sempre a menos “romanesca”. Aqui Diderot se adianta à ideia de “literatura potencial” cara a Queneau, mas também a desmente um pouco; de fato, Queneau irá elaborar um modelo de Conto à sua maneira em que parecem ecoar os convites de Diderot ao leitor para que escolha ele a continuação, mas na realidade Diderot queria demonstrar que a história só podia ser uma. (O que correspondia a uma opção filosófica precisa, como veremos.)
Obra que não se enquadra em nenhuma regra nem classificação, Jacques le fataliste é uma espécie de termo de comparação para testar um bom número de definições cunhadas pelos teóricos da literatura. O esquema do “relato diferido” (é Jacques que começa a narrar a história de seus amores e, entre interrupções, divagações, outras histórias colocadas em cena, só termina no final do livro), articulado em numerosos emboîtements de um relato no outro (“contos encadeados”), não é só ditado pelo gosto por aquilo que Bakhtin chamará de “conto polifônico” ou “menipeu” ou “rabelaisiano”: é para Diderot a única imagem verdadeira do mundo vivo, que não é nunca linear, estilisticamente homogênea, mas cujas coordenações embora descontínuas revelam sempre uma lógica.
Em tudo isso não se pode negligenciar a influência de Tristram Shandy de Sterne, novidade explosiva daquele período no plano da forma literária e da atitude em relação às coisas do mundo, exemplo de uma narrativa livre e errante, antípoda do gosto setecentista francês. A anglofilia literária foi sempre um estímulo vital para as literaturas do continente; Diderot fez dela sua bandeira na cruzada pela “verdade” expressiva. Os críticos assinalaram frases e episódios que do romance de Sterne passaram para Jacques; e o próprio Diderot, para demonstrar quão pouco lhe importavam as acusações de plágio, antepõe a uma das cenas finais a declaração de tê-la copiado do Shandy. Na realidade, algumas páginas tomadas ao pé da letra ou parafraseadas não significam muito; em linhas gerais, Jacques, história picaresca de uma vagabundagem de duas personagens a cavalo que contam, ouvem e vivem várias aventuras, é bastante diferente do Shandy, que borda sobre episódios domésticos de um grupo de familiares e conterrâneos, especialmente sobre os detalhes grotescos de um parto e sobre as primeiras desventuras de uma criança. O parentesco entre as duas obras deve ser buscado num nível mais profundo: o verdadeiro tema de uma e de outra é a concatenação das causas, o inextricável conjunto de circunstâncias que determinam até o mínimo acontecimento e que tem para os modernos o papel de Fado.
Na poética de Diderot, não contava tanto a originalidade quanto o fato de que os livros se respondem, se combatem, se completam reciprocamente: é no conjunto do contexto cultural que cada operação do escritor ganha sentido. O grande legado de Sterne não só a Diderot mas à literatura mundial, que em seguida passaria a explorar o filão da ironia romântica, é o corte desenvolto, o desabafo de humores, as acrobacias da escritura.
E recordemos que um grande modelo declarado tanto por Sterne quanto por Diderot era a obra-prima de Cervantes; mas diversas são as heranças que dela extraem: um valendo-se da feliz mestria inglesa em criar personagens plenamente caracterizadas na singularidade de poucos traços caricaturais, o outro recorrendo ao repertório das aventuras picarescas de estalagem e de estrada principal na tradição do roman comique.
Jacques, o servidor, o escudeiro, vem antes — já no título —, precedendo o patrão, o cavaleiro (do qual não se sabe nem o nome, como se só existisse em função de Jacques, enquanto son maître; e também como personagem permanece mais apagado). Que as relações entre os dois sejam aquelas de patrão e empregado é certo, mas são também as de dois amigos sinceros; as relações hierárquicas não foram ainda postas em discussão (a Revolução Francesa ainda há de tardar pelo menos dez anos), porém foram esvaziadas por dentro. (Sob todos esses aspectos, leia-se a ótima introdução de Michele Rago a Jacques il fatalista e il suo padrone, na coleção Einaudi “Centopagine”, uma completa e precisa exposição tanto do quadro histórico quanto da poética e da filosofia desse livro.) É Jacques quem toma todas as decisões importantes; e, quando o patrão se torna imperioso, pode também recusar-se a obedecer, mas até um certo ponto e não demais. Diderot descreve um mundo de relações humanas baseadas nas influências recíprocas das qualidades individuais, que não cancelam os papéis sociais mas não se deixam esmagar por eles: um mundo que não é de utopia nem de denúncia dos mecanismos sociais, mas como se fosse visto de modo transparente numa situação de passagem.
(A mesma coisa se pode dizer quanto às relações entre os sexos: Diderot é “feminista” por sua mentalidade natural, não pelo partido tomado: para ele a mulher está no mesmo plano moral e intelectual que o homem, bem como no direito a uma felicidade dos sentimentos e dos sentidos. E aqui a diferença com Tristram Shandy, alegre e obstinadamente misógino, é insuperável.)
Quanto ao “fatalismo” do qual Jacques se faz porta-voz (tudo aquilo que acontece estava escrito no céu), vemos que, longe de justificar resignação ou passividade, leva Jacques a dar sempre provas de iniciativa e a jamais se dar por vencido, ao passo que o patrão, que parece inclinar-se mais para o livre-arbítrio e a vontade individual, tende a desencorajar-se e a deixar-se levar pelos acontecimentos. Como diálogos filosóficos, os deles são um tanto rudimentares, mas alusões esparsas remetem à ideia de necessidade em Spinoza e em Leibniz. Contra Voltaire, que polemiza com Leibniz em Cândido ou Do otimismo, Diderot em Jacques, o Fatalista parece tomar o partido de Leibniz e mais ainda o de Spinoza, que sustentara a racionalidade objetiva de um mundo único, geometricamente inelutável. Se para Leibniz esse mundo era um dentre os muitos possíveis, para Diderot o único mundo possível é este, bom ou mau que seja (ou melhor, mesclado sempre de mal e de bem), e a conduta do homem, bom ou mau que seja (ou melhor, mesclado sempre também ele), vale enquanto está em condições de responder ao conjunto das circunstâncias em que se encontra. (Inclusive com a astúcia, o engano, a ficção enganosa; ver os “romances no romance” inseridos em Jacques: as intrigas de mme. de La Pommeraye e do padre Hudson que põem em cena na vida uma calculada ficção teatral. Estamos muito distantes de Rousseau, que exaltava a bondade e a sinceridade na natureza e no homem de natureza.)
Diderot intuíra que é justamente das concepções do mundo mais rigidamente deterministas que se pode extrair uma carga propulsora para a liberdade individual, como se vontade e livre escolha pudessem ser eficazes só se abrissem suas passagens na dura pedra da necessidade. Isso era verdadeiro nas religiões que mais exaltavam o querer de Deus acima do homem e será também verdadeiro nos dois séculos que se sucederão ao de Diderot e que hão de ver novas teorias tendencialmente deterministas serem afirmadas na biologia, na economia e sociedade, na psique. Podemos hoje dizer que elas abriram caminho para liberdades reais justamente quando estabeleciam a consciência da necessidade, ao passo que voluntarismos e ativismos só conduziram a desastres.
Contudo, não se pode absolutamente dizer que Jacques, o Fatalista “ensine” ou “demonstre” isso ou aquilo. Não existe axioma teórico que coincida com as variações e arrancos dos heróis diderotianos. Se por duas vezes o cavalo pega Jacques pela mão e o transporta a uma colina onde há forcas preparadas e, uma terceira vez, à casa de seu antigo proprietário, o carrasco, esse é certamente um epílogo iluminista contra a crença nos sinais premonitórios, mas é também uma antecipação do romantismo “negro” com os enforcados espectrais no alto de colinas áridas (embora ainda estejamos longe dos efeitos de Potocki). E se o final se precipita numa sequência de aventuras condensadas em poucas frases, com o patrão que mata um homem em duelo, Jacques que se torna bandido junto com Mandrin e depois reencontra o patrão e salva o castelo dele de um saque, reconhecemos a concisão setecentista que se choca com o pathos romântico do imprevisto e do destino como acontecerá em Kleist. Os casos da vida em sua singularidade e variedade são irredutíveis a normas e classificações, embora cada um responda a uma lógica própria. A história dos dois oficiais inseparáveis, que não podem viver longe um do outro mas que, de vez em quando, precisam bater-se em duelo, é contada por Diderot com uma objetividade lacônica que não esconde a ambivalência de uma ligação passional.
Se Jacques é o anti-Candide, é porque pretende ser o anti-conte philosophique: Diderot está convencido de que não se pode encerrar a verdade numa forma, numa fábula que demonstre uma tese; a homologia que sua invenção literária quer atingir é aquela com uma vida inexaurível, não com uma teoria enunciável em termos abstratos.
A escritura livre de Diderot se opõe tanto à “filosofia” quanto à “literatura”, mas hoje aquela que nós reconhecemos como a verdadeira estrutura literária é justamente a sua. Não é uma casualidade que Jacques e seu amo tenha sido recentemente “refeito” sob forma teatral e moderna por um escritor inteligente como Milan Kundera. E que o romance de Kundera, A insustentável leveza do ser, o revele como o mais diderotiano dos escritores contemporâneos por sua arte ao mesclar romance de sentimentos, romance existencial, filosofia, ironia.

Italo Calvino, in Por que ler os clássicos

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