segunda-feira, 30 de novembro de 2020

O general Loewenhielm

          O general Loewenhielm percorrera o trajeto de Fossum a Berlevaag num estranho estado de espírito. Não visitava aquela parte do país havia trinta anos. Viera agora para um descanso de sua atribulada vida na corte, mas não encontrara descanso algum. A velha casa de Fossum era bastante tranquila e parecia de certo modo pateticamente pequena em comparação às Tulherias e ao Palácio de Inverno. Mas havia ali uma figura nada tranquila: o jovem tenente Loewenhielm passeava por seus aposentos.
O general Loewenhielm via a figura bela e esbelta passar diante dele. E, ao fazer isso, o jovem lançava ao homem mais velho um rápido relance de olhos e um sorriso, o sorriso altivo e arrogante que a juventude lança à idade. O general poderia ter sorrido de volta, gentil e um pouco triste, como a idade sorri para a juventude, não fosse o fato de que não estava com a menor disposição para sorrisos; estava, como a tia escrevera, deprimido.
O general Loewenhielm conseguira tudo o que almejara na vida e era admirado e invejado por todos. Somente ele tinha conhecimento de um fato esquisito, que trazia inquietação à sua próspera existência: o de que não era perfeitamente feliz. Alguma coisa estava errada em algum lugar e ele cuidadosamente apalpava o próprio eu espiritual aqui e ali, assim como alguém aperta com o dedo para determinar o local de um espinho profundamente encravado, invisível.
Gozava de grande favor junto à realeza, saíra-se bem em sua vocação, tinha amigos por toda parte. O espinho não estava em nenhum desses lugares
Sua esposa era uma mulher inteligente e ainda bonita. Talvez negligenciasse um pouco a casa em prol das visitas e festas; trocava de criados de três em três meses e as refeições do general na casa careciam de pontualidade. O general, que tinha a boa comida em alta conta na vida, sentia por isso uma certa amargura contra a mulher e secretamente a culpava pela dispepsia de que às vezes sofria. Ainda assim, o espinho não estava aí, tampouco.
Não, mas uma coisa absurda vinha acontecendo ultimamente com o general Loewenhielm: pegava-se preocupado com sua alma imortal. Haveria alguma razão para que o fizesse? Era uma pessoa de moral, leal a seu rei, sua esposa e seus amigos, um exemplo para todos. Mas havia momentos em que o mundo lhe parecia não uma questão moral, mas mística. Olhava-se no espelho, examinava o monte de condecorações em seu peito e suspirava: “Vaidade, vaidade, tudo é vaidade!”.
O estranho encontro em Fossum impelira-o a fazer o balanço de sua vida.
O Lorens Loewenhielm jovem atraíra sonhos e fantasias como uma flor atrai abelhas e borboletas. Lutara para se libertar deles; fugira e eles o seguiram. Tivera medo da huldre da lenda familiar e declinara de seu convite para acompanhá-la à montanha; rejeitara firmemente o dom da clarividência.
O Lorens Loewenhielm velho pegou-se a desejar que um pequeno sonho cruzasse seu caminho e uma cinzenta mariposa do crepúsculo fosse visitá-lo antes que a noite caísse. Pegou-se desejando a faculdade da clarividência, assim como um cego almeja a faculdade normal da visão.
Pode a soma de inúmeras vitórias em muitos anos e em muitos países constituir uma derrota? O general Loewenhielm cumprira os desejos do tenente Loewenhielm e mais do que satisfizera suas ambições. Podia-se dizer que ganhara o mundo todo. E acontecia agora que o imponente e vivido homem mais velho virava-se para a jovem e ingênua figura a fim de lhe perguntar, gravemente e até com amargura, com que proveito? Em algum lugar alguma coisa se perdera.
Quando a senhora Loewenhielm contara ao sobrinho a respeito do aniversário do deão e ele resolvera acompanhá-la a Berlevaag, sua decisão não se resumira a aceitar um convite para jantar.
Estava determinado, nessa noite, a fazer um ajuste de contas com o Lorens Loewenhielm jovem, que se mostrara uma figura tímida e triste na casa do deão e que, no fim, sacudira o pó das botas de equitação. Deixaria o jovem lhe provar, de uma vez por todas, que trinta e um anos antes tomara a escolha acertada. Os cômodos baixos, o hadoque e o copo d’água na mesa diante dele seriam chamados todos a testemunhar que em seu meio a existência de Lorens Loewenhielm teria se tornado em pouco tempo pura infelicidade.
Deixava sua mente divagar para longe. Em Paris, ganhara certa vez um concours hippique e fora aclamado por altos oficiais da cavalaria francesa, entre eles, príncipes e duques. Um jantar em sua homenagem fora dado no restaurante mais elegante da cidade. À sua frente, na mesa, estava uma dama da nobreza, uma famosa beldade a quem havia tempos cortejava. Na metade do jantar, ela erguera os olhos negros aveludados acima da borda de sua taça de champanhe e, sem dizer palavras, prometera-lhe a felicidade. No trenó ele agora de repente lembrava-se de que, por um segundo, vira o rosto de Martine diante dele e o rejeitara. Por uns instantes ficou ouvindo o tilintar dos sininhos do trenó, depois sorriu ligeiramente ao refletir como iria nessa noite dominar as conversas em torno daquela mesma mesa onde o jovem Lorens Loewenhielm se sentara mudo.
Grandes flocos de neve caíam densamente; na esteira do trenó as marcas sumiam rapidamente. O general Loewenhielm permanecia sentado imóvel ao lado da tia, o queixo afundado no espesso colarinho de pelo de seu casaco.

Karen Blixen, in A festa de Babette

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