O general Loewenhielm percorrera o
trajeto de Fossum a Berlevaag num estranho estado de espírito. Não
visitava aquela parte do país havia trinta anos. Viera agora para um
descanso de sua atribulada vida na corte, mas não encontrara
descanso algum. A velha casa de Fossum era bastante tranquila e
parecia de certo modo pateticamente pequena em comparação às
Tulherias e ao Palácio de Inverno. Mas havia ali uma figura nada
tranquila: o jovem tenente Loewenhielm passeava por seus aposentos.
O general Loewenhielm via a figura bela e
esbelta passar diante dele. E, ao fazer isso, o jovem lançava ao
homem mais velho um rápido relance de olhos e um sorriso, o sorriso
altivo e arrogante que a juventude lança à idade. O general poderia
ter sorrido de volta, gentil e um pouco triste, como a idade sorri
para a juventude, não fosse o fato de que não estava com a menor
disposição para sorrisos; estava, como a tia escrevera, deprimido.
O general Loewenhielm conseguira tudo o
que almejara na vida e era admirado e invejado por todos. Somente ele
tinha conhecimento de um fato esquisito, que trazia inquietação à
sua próspera existência: o de que não era perfeitamente feliz.
Alguma coisa estava errada em algum lugar e ele cuidadosamente
apalpava o próprio eu espiritual aqui e ali, assim como alguém
aperta com o dedo para determinar o local de um espinho profundamente
encravado, invisível.
Gozava de grande favor junto à realeza,
saíra-se bem em sua vocação, tinha amigos por toda parte. O
espinho não estava em nenhum desses lugares
Sua esposa era uma mulher inteligente e
ainda bonita. Talvez negligenciasse um pouco a casa em prol das
visitas e festas; trocava de criados de três em três meses e as
refeições do general na casa careciam de pontualidade. O general,
que tinha a boa comida em alta conta na vida, sentia por isso uma
certa amargura contra a mulher e secretamente a culpava pela
dispepsia de que às vezes sofria. Ainda assim, o espinho não estava
aí, tampouco.
Não, mas uma coisa absurda vinha
acontecendo ultimamente com o general Loewenhielm: pegava-se
preocupado com sua alma imortal. Haveria alguma razão para que o
fizesse? Era uma pessoa de moral, leal a seu rei, sua esposa e seus
amigos, um exemplo para todos. Mas havia momentos em que o mundo lhe
parecia não uma questão moral, mas mística. Olhava-se no espelho,
examinava o monte de condecorações em seu peito e suspirava:
“Vaidade, vaidade, tudo é vaidade!”.
O estranho encontro em Fossum impelira-o
a fazer o balanço de sua vida.
O Lorens Loewenhielm jovem atraíra
sonhos e fantasias como uma flor atrai abelhas e borboletas. Lutara
para se libertar deles; fugira e eles o seguiram. Tivera medo da
huldre da lenda familiar e declinara de seu convite para
acompanhá-la à montanha; rejeitara firmemente o dom da
clarividência.
O Lorens Loewenhielm velho pegou-se a
desejar que um pequeno sonho cruzasse seu caminho e uma cinzenta
mariposa do crepúsculo fosse visitá-lo antes que a noite caísse.
Pegou-se desejando a faculdade da clarividência, assim como um cego
almeja a faculdade normal da visão.
Pode a soma de inúmeras vitórias em
muitos anos e em muitos países constituir uma derrota? O general
Loewenhielm cumprira os desejos do tenente Loewenhielm e mais do que
satisfizera suas ambições. Podia-se dizer que ganhara o mundo todo.
E acontecia agora que o imponente e vivido homem mais velho virava-se
para a jovem e ingênua figura a fim de lhe perguntar, gravemente e
até com amargura, com que proveito? Em algum lugar alguma coisa se
perdera.
Quando a senhora Loewenhielm contara ao
sobrinho a respeito do aniversário do deão e ele resolvera
acompanhá-la a Berlevaag, sua decisão não se resumira a aceitar um
convite para jantar.
Estava determinado, nessa noite, a fazer
um ajuste de contas com o Lorens Loewenhielm jovem, que se mostrara
uma figura tímida e triste na casa do deão e que, no fim, sacudira
o pó das botas de equitação. Deixaria o jovem lhe provar, de uma
vez por todas, que trinta e um anos antes tomara a escolha acertada.
Os cômodos baixos, o hadoque e o copo d’água na mesa diante dele
seriam chamados todos a testemunhar que em seu meio a existência de
Lorens Loewenhielm teria se tornado em pouco tempo pura infelicidade.
Deixava sua mente divagar para longe. Em
Paris, ganhara certa vez um concours hippique e fora aclamado
por altos oficiais da cavalaria francesa, entre eles, príncipes e
duques. Um jantar em sua homenagem fora dado no restaurante mais
elegante da cidade. À sua frente, na mesa, estava uma dama da
nobreza, uma famosa beldade a quem havia tempos cortejava. Na metade
do jantar, ela erguera os olhos negros aveludados acima da borda de
sua taça de champanhe e, sem dizer palavras, prometera-lhe a
felicidade. No trenó ele agora de repente lembrava-se de que, por um
segundo, vira o rosto de Martine diante dele e o rejeitara. Por uns
instantes ficou ouvindo o tilintar dos sininhos do trenó, depois
sorriu ligeiramente ao refletir como iria nessa noite dominar as
conversas em torno daquela mesma mesa onde o jovem Lorens Loewenhielm
se sentara mudo.
Grandes flocos de neve caíam densamente;
na esteira do trenó as marcas sumiam rapidamente. O general
Loewenhielm permanecia sentado imóvel ao lado da tia, o queixo
afundado no espesso colarinho de pelo de seu casaco.
Karen Blixen, in A festa de Babette
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