quarta-feira, 17 de agosto de 2022

As primeiras quinze vidas de Harry August | Capítulo 2

Comecemos pelo começo.
O Clube, o cataclismo, minha décima primeira vida e as mortes que se seguiram — nenhuma delas em paz — são todas sem sentido, um instante de violência que explode e se esvai, vingança sem motivo, até que você perceba onde tudo começou.
Meu nome é Harry August.
Meu pai é Rory Edmond Hulne; minha mãe, Elizabeth Leadmill, embora só tenha descoberto esses fatos num estágio bem avançado da minha terceira vida.
Não sei dizer se meu pai estuprou minha mãe. A lei teria dificuldade em interpretar o caso; talvez o júri se deixasse levar por algum advogado esperto que defendesse um lado ou outro. Disseram que ela não gritou, não resistiu, nem chegou a negar quando ele apareceu na cozinha na noite da minha concepção e, nos vinte e cinco inglórios minutos de paixão — e uso esse termo posto que raiva, ciúme e ódio também são paixões —, vingou-se de sua esposa infiel através da ajudante de cozinha. Nesse sentido, minha mãe não foi forçada, mas, levando-se em conta que ela era uma garota de vinte e poucos anos que vivia e trabalhava na casa do meu pai e dependia do dinheiro dele e da boa vontade de sua família, eu diria que resistir não era uma opção para ela, coagida pela situação tal qual houvesse uma faca encostada em sua garganta.
Quando a gravidez da minha mãe começou a aparecer, meu pai já havia voltado à ativa na França, onde serviria até o fim da Primeira Guerra Mundial como um major sem destaque da Guarda Escocesa. Em meio a um conflito no qual regimentos inteiros poderiam ser varridos do mapa num único dia, passar despercebido era considerado um feito digno de dar inveja. Portanto, ficou a cargo de Constance Hulne, minha avó paterna, expulsar minha mãe de casa sem escrever sequer uma carta de referência durante o outono de 1918. O homem que acabaria se tornando meu pai adotivo — e, ainda assim, um pai mais verdadeiro para mim do que qualquer relação biológica — levou minha mãe ao mercado local na traseira de sua carroça de pôneis e a deixou lá com alguns xelins na bolsa e a recomendação de que procurasse ajuda de outras mulheres do condado que estivessem passando por apuros. Um primo chamado Alistair, que compartilhava apenas um oitavo da carga genética da minha mãe, mas cujo superávit de riqueza mais do que compensava o déficit de conexões familiares, empregou minha mãe em sua fábrica de papel em Edimburgo. No entanto, à medida que a gravidez avançava, dificultando o cumprimento das tarefas, ela acabou discretamente dispensada por um funcionário subalterno a três cargos de distância do responsável pelo setor. Desesperada, ela escreveu para o meu pai biológico, mas a carta foi interceptada pela minha astuta avó, que a destruiu antes de ele ler o apelo de minha mãe; então, na véspera do Ano-novo ainda em 1918, minha mãe gastou os últimos tostões e comprou a passagem de trem mais barata saindo da estação Waverley, em Edimburgo, rumo a Newcastle e, uns quinze quilômetros ao norte de Berwick-upon-Tweed, entrou em trabalho de parto.
Um sindicalista de nome Douglas Crannich e sua esposa, Prudence, foram os dois únicos presentes no meu nascimento, que se deu no banheiro da estação de trem. Disseram que o agente ferroviário ficou do lado de fora da porta para evitar que qualquer mulher inocente entrasse ali, com as mãos cruzadas atrás das costas e o quepe, coberto de neve, abaixado tapando seus olhos de um jeito que sempre imaginei ser misterioso e maligno. Tão tarde da noite, não havia médicos na enfermaria, ainda mais num dia festivo como aquele, por isso o médico demorou três horas para chegar. Chegou tarde demais. O sangue já se cristalizava no chão, e Prudence Crannich me segurava nos braços. Minha mãe estava morta. Quanto às circunstâncias de seu falecimento, conto apenas com o relato de Douglas, mas acredito que tenha sofrido uma hemorragia, e ela está enterrada numa sepultura com os dizeres “Lisa, † 1 de janeiro de 1919 — Que os Anjos a Guiem em Direção à Luz”. Quando o coveiro perguntou à senhora Crannich o que devia constar na lápide, ela percebeu que nunca chegou a saber o nome completo da minha mãe.
Houve discussão sobre o que fazer comigo, aquela criança subitamente órfã. Acredito que a senhora Crannich tenha se sentido bastante tentada a ficar comigo, mas sua situação financeira e o lado prático da ação a levaram a não seguir por esse caminho, assim como a interpretação taxativa e literal da lei feita por Douglas Crannich, bem como seu entendimento, esse mais pessoal, de propriedade. A criança tinha pai, exclamou ele, e o pai tem direito à criança. O assunto teria dado pano para manga, não fosse o fato de que minha mãe carregava consigo o endereço do meu futuro pai adotivo, Patrick August, aparentemente com a intenção de pedir sua ajuda para ver meu pai biológico, Rory Hulne. Houve averiguações para saber se esse homem, Patrick, poderia ser meu pai biológico, o que causou uma grande comoção no vilarejo, pois Patrick se via num casamento sem filhos com aquela que viria a ser minha mãe adotiva, Harriet August, e um casamento estéril num vilarejo afastado, onde a simples ideia da camisinha seguia sendo um tabu até os anos 1970, era sempre tópico para debates acalorados. A questão foi tão chocante que logo chegou à casa senhorial, a Mansão Hulne, onde residiam minha avó Constance, minhas tias Victoria e Alexandra, meu primo Clement, e Lydia, a infeliz esposa do meu pai. Acho que imediatamente minha avó teve suspeitas de quem era meu pai e da situação em que eu me encontrava, mas se recusou a se responsabilizar por mim. Foi Alexandra, minha tia mais jovem, quem demonstrou presença de espírito e uma compaixão que faltava ao restante dos familiares, e, vendo que as suspeitas recairiam bem rápido sobre a sua família assim que se revelasse a verdadeira identidade da minha falecida mãe, ela abordou Patrick e Harriet August com esta proposta: caso adotassem e criassem o bebê como se fossem deles — com os papéis de adoção formalmente assinados e a família Hulne como testemunha para acabar com todos os rumores de um caso extraconjugal, pois ninguém tinha mais autoridade do que os moradores da Mansão Hulne, então, ela cuidaria pessoalmente para que todo mês recebessem uma quantia por todo o incômodo e para dar apoio à criança, e também para que, quando crescesse, tivesse perspectivas adequadas — não excessivas, que fique claro, mas pelo menos ele não viveria na situação deplorável que se espera de um filho bastardo.
Patrick e Harriet discutiram o assunto durante um tempo e, por fim, aceitaram. Fui criado como filho deles, como Harry August, e só comecei a entender de onde vinha e o que era na terceira vida.

Claire North, in As primeiras quinze vidas de Harry August

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