Dasdores
(assim se chamavam as moças daquele tempo) sentia-se dividida entre
a Missa do Galo e o presépio. Se fosse à igreja, o presépio não
ficaria armado antes de meia-noite e, se se dedicasse ao segundo, não
veria o namorado.
É
difícil ver namorado na rua, pois moça não deve sair de casa,
salvo para rezar ou visitar parentes. Festas são raras. O cinema
ainda não foi inventado, ou, se o foi, não chegou a esta nossa
cidade, que é antes uma fazenda crescida. Cabras passeiam nas ruas,
um cincerro tilinta: é a tropa. E viúvas espiam de janelas, que se
diriam jaulas.
Dasdores
e suas numerosas obrigações: cuidar dos irmãos, velar pelos doces
de calda, pelas conservas, manejar agulha e bilro, escrever as cartas
de todos. Os pais exigem-lhe o máximo, não porque a casa seja
pobre, mas porque o primeiro mandamento da educação feminina é:
trabalharás dia e noite. Se não trabalhar sempre, se não ocupar
todos os minutos, quem sabe de que será capaz a mulher? Quem pode
vigiar sonhos de moça? Eles são confusos e perigosos. Portanto, é
impedir que se formem. A total ocupação varre o espírito. Dasdores
nunca tem tempo para nada. Seu nome, alegre à força de repetido,
ressoa pela casa toda. “Dasdores, as dálias já foram regadas
hoje?” “Você viu, Dasdores, quem deixou o diabo desse gato
furtar a carne?” “Ah, Dasdores, meu bem, prega esse botão para
sua mãezinha.” Dasdores multiplica-se, corre, delibera e
providencia mil coisas. Mas é um engano supor que se deixou
aprisionar por obrigações enfadonhas. Em seu coração ela voa para
o sobrado da outra rua, em que, fumando ou alisando o cabelo com
brilhantina, está Abelardo.
Das
mil maneiras de amar, ó pais, a secreta é a mais ardilosa, e eis a
que ocorre na espécie. Dasdores sente-se livre em meio às tarefas,
e até mesmo extrai delas algum prazer. (Dir-se-ia que as mulheres
foram feitas para o trabalho... Alguma coisa mais do que resignação
sustenta as donas-de-casa.) Dasdores sabe combinar o movimento dos
braços com a atividade interior — É uma conspiradora — e sempre
acha folga para pensar em Abelardo. Esta véspera de Natal, porém,
veio encontrá-la completamente desprevenida. O presépio está por
armar, a noite caminha, lenta como costuma fazê-lo no interior, mas
Dasdores é íntima do relógio grande da sala de jantar, que não
perdoa, e mesmo no mais calmo povoado o tempo dá um salto repentino,
desafia o incauto: “Agarra-me!” Sucede que ninguém mais, salvo
esta moça, pode dispor o presépio, arte comunicada por uma tia já
morta. E só Dasdores conhece o lugar de cada peça, determinado há
quase dois mil anos, porque cada bicho, cada musgo tem seu papel no
nascimento do Menino, e ai do presépio que cede a novidades.
As
caixas estão depositadas no chão ou sobre a mesa, e desembrulhá-las
é a primeira satisfação entre as que estão infusas na prática
ritual da armação do presépio. Todos os irmãos querem colaborar,
mas antes atrapalham, e Dasdores prefere ver-se morta a ceder-lhes a
responsabilidade plena da direção. Jamais lhes será dado tocar,
por exemplo, no Menino Jesus, na Virgem e em São José. Nos
pastores, sim, e nas grutas subsidiárias. O melhor seria que não
amolassem, e Dasdores passaria o dia inteiro compondo sozinha a
paisagem de água e pedras, relva, cães e pinheiros, que há de
circundar a manjedoura. Nem todos os animais estão perfeitos; este
carneirinho tem uma perna quebrada, que se poderia consertar, mas
parece a Dasdores que, assim mutilado e dolorido, o Menino deve
querer-lhe mais. Os camelos, bastante miúdos, não guardam proporção
com os cameleiros que os tangem; mas são presente da tia morta, e
participam da natureza dos animais domésticos, a qual por sua vez
participa obscuramente da natureza da família. Através de um
sentimento nebuloso, afigura-se-lhe que tudo é uma coisa só, e não
há limites para o humano. Dasdores passa os dedos, com ternura,
pelos camelinhos; sente neles a macieza da mão de Abelardo.
Alguém
bate palmas na escada; ô de casa! amigas que vêm combinar a hora de
ir para a igreja. Entram e acham o presépio desarranjado, na sala em
desordem. Esta visita come mais tempo, matéria preciosa (“Agarra-me!
Agarra-me!”). Quando alguém dispõe apenas de uns poucos minutos
para fazer algo de muito importante e que exige não somente largo
espaço de tempo mas também uma calma dominadora — algo de muito
importante e que não pode absolutamente ser adiado — se esse
alguém é nervoso, sua vontade se concentra, numa excitação aguda,
e o trabalho começa a surgir, perfeito, de circunstâncias adversas.
Dasdores não pertence a essa raça torturada e criadora; figura no
ramo também delicado, mas impotente, dos fantasistas. Vão-se as
amigas, para voltar duas horas depois, e Dasdores, interrogando o
relógio, nele vê apenas o rosto de Abelardo, como também percebe
esse rosto de bigode, e a cabeleira lustrosa, e os olhos acesos,
dissimulados nas ramagens do papel da parede, e um pouco por toda
parte. A mão continua tocando maquinalmente nas figuras do presépio,
dispondo-as onde convém. Nada fará com que erre; do passado a tia
repete sua lição profunda. Entretanto, o prazer de distribuir as
figuras, de fixar a estrela, de espalhar no lago de vidro os patinhos
de celulóide, está alterado, ou subtrai-se. Dasdores não o
saboreia por inteiro. Ou nele se insinuou o prazer da missa? Ou o
medo de que o primeiro, prolongando-se, viesse a impedir o segundo?
Ou um sentimento de culpa, ao misturar o sagrado ao profano, dando,
talvez, preferência a este último, pois no fundo da caminha de
palha suas mãos acariciavam o Menino, mas o que a pele queria sentir
— sentia, Deus me perdoe — era um calor humano, já sabeis de
quem. Aqui desejaria, porque o mundo é cruel e as histórias também
costumam sê-lo, acelerar o ritmo da narrativa, prover Dasdores com
os muitos braços de que ela carece para cumprir com sua obrigação,
vestir-se violentamente, sair com as amigas — depressa, depressa—,
ir correndo ladeira acima, encontrar a igreja vazia, o adro já quase
deserto, e nenhum Abelardo. Mas seria preciso atribuir-lhe, não
braços e pernas suplementares, e sim outra natureza, diferente da
que lhe coube, e é pura placidez. Correi, sôfregos, correi ladeira
acima, e chegai sempre ou muito tarde ou muito cedo, mas continuai a
correr, a matar-vos, sem perspectiva de paz ou conciliação. Não
assim os serenos, aqueles que, mesmo sensuais, se policiam. O dono
desta noite, depois do Menino, é o relógio, e este vai mastigando
seus minutos, seus cinco minutos, seus quinze minutos. Se nos
esquecermos dele, talvez pule meia hora, como um prestidigitador
furta um ovo, mas, se nos pusermos a contemplá-lo, os números
gelam, o ponteiro imobiliza-se, a vida parou rigorosamente. Saber que
a vida parou seria reconfortante para Dasdores, que assim lograria
folga para localizar condignamente os três reis na estrada, levantar
os muros de Belém. Começa a fazê-lo, e o tempo dispara de novo.
“Agarra-me! Agarra-me!” Nas cabeças que espiam pela porta
entreaberta, no estouvamento dos irmãos, que querem se debruçar
sobre o caminho de areia antes que essa esteja espalhada, na muda
interrogação da mãe, no sentimento de que a vida é variada demais
para caber em instantes tão curtos, no calor que começa a fazer
apesar das janelas escancaradas — há uma previsão de malogro
iminente. Pronto, este ano não haverá Natal. Nem namorado. E a
noite se fundirá num largo pranto sobre o travesseiro.
Mas
Dasdores continua, calma e preocupada, cismarenta e repartida,
juntando na imaginação os dois deuses, colocando os pastores na
posição devida e peculiar à adoração, decifrando os olhos de
Abelardo, as mãos de Abelardo, o mistério prestigioso do ser de
Abelardo, a auréola que os caminhantes descobriram em torno dos
cabelos macios de Abelardo, a pele morena de Jesus, e aquele cigarro
— quem botou! — ardendo na areia do presépio, e que Abelardo
fumava na outra rua.
Carlos
Drummond de Andrade, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
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