sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Chega de saudade | Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1958

 “Dream team” da bossa nova em 1962: Vinicius e Tom (no piano), João Gilberto e Os Cariocas


Canção-símbolo da bossa nova, marco inicial da mais radical mudança de rumo na história da música brasileira, “Chega de saudade” foi escrita por Antônio Carlos Jobim (1927-1994) e Vinicius de Moraes (1913-1980) e gravada pela primeira vez no início de 1958 por Elizeth Cardoso no LP Canção do amor demais. Porém, na forma tradicional que Elizeth a cantava, de bossa nova a música não tinha nada – apenas a batida diferente do violão de João Gilberto, que, ao fundo e no meio da orquestra, passou quase despercebida. Apesar da popularidade e do prestígio de Elizeth, e da qualidade das canções da dupla, o disco passou batido pelo público e pela crítica.
Seis meses depois, com um arranjo moderno e minimalista de Tom Jobim e uma introdução à maneira de regional de choro puxada pela flauta, João Gilberto regravou “Chega de saudade”. Agora, com a batida de seu violão integrada à sua voz, canto com um mínimo de volume e um máximo de suingue e precisão, alterando acordes e divisões rítmicas, valorizando as palavras da letra coloquial, carinhosa e cheia de diminutivos de Vinicius de Moraes. Nascia a bossa nova. E logo se transformava em um improvável sucesso nacional, começando pelas rádios de São Paulo e se alastrando para o resto do país. O estilo provocou polêmica e virou a melhor novidade do ano, conquistando a juventude e se tornando trilha sonora dos alegres e otimistas “Anos JK”.
No rótulo do histórico 78 rpm, a música era identificada como “samba-canção”. A prática de classificar os gêneros musicais dos discos começava a ser abolida pelas gravadoras na época e, na verdade, o próprio João Gilberto nunca aprovou o rótulo de bossa nova. Como sempre disse, a batida de seu violão era samba, um samba minimalista e sincopado, mas sempre samba.
Para Tom Jobim, “Chega de saudade” era mais um “samba-choro”, que compôs baseado em sequências de acordes básicos de um método para violão comprado para uma sobrinha, como contou a Tárik de Souza no livro Tons sobre Tom. Sobre essa sequência, alterou os acordes e escreveu uma melodia que em sua primeira parte é toda em tom menor, saudoso e melancólico, para se abrir em tom maior na segunda, quando a letra se ilumina a partir de “Mas, se ela voltar / se ela voltar que coisa linda, que coisa louca / pois há menos peixinhos a nadar no mar / do que os beijinhos que darei na sua boca”.
Foi uma overdose de escândalos. Um cantor que não tinha voz para os padrões da era do rádio, cantando de uma forma doce e feminina no reinado dos cantores viris e grandiloquentes. Um ritmo esquisito que sambistas tradicionais chamaram pejorativamente de “violão gago”. Um poeta místico e dramático com a obra e a respeitabilidade de Vinicius rimando beijinhos com peixinhos.
Embora secundária como música e letra na obra monumental de Tom e Vinicius, o tempo provou que a melodia sinuosa e os acordes dissonantes, a letra coloquial e inovadora e a nova batida de violão envolvendo o canto mínimo e exato de João Gilberto resultaram na criação de um novo gênero musical que, em seguida, também ganharia os Estados Unidos, a Europa e o Japão, e seria uma das maiores contribuições brasileiras para a beleza e a alegria do mundo.

Nelson Motta, in 101 canções que tocaram o Brasil

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