Vai-se
falar da vida de um homem; de cuja morte, portanto. Romão — esposo
de Nhemaria, mais propriamente a Drá, dita também a Pintaxa —
ímpar o par, uma e outro de extraordem. Escolheram-se, no Cunhãberá,
destinado lugar, onde o mal universal cochila e dá o céu um azul do
qual emergir a Virgem. Sua história recordada foi longa: de tigela e
meia, a peso de horror. O fundo, todavia, de consolo. Esse é um amor
que tem assunto. Mas o assunto enriquecido — como do amarelo
extraem-se ideias sem matéria. São casos de caipira.
Foi
desde. Parece até que iam odiar-se, moço e moça, no então.
Divulgue-se a Drá: cor de folha seca escura, estafermiça,
abexigada, feia feito fritura queimada, ximbé-ximbeva; primeiro
sinisga de magra, depois gorda de odre, sempre própria a figura do
feio fora-da-lei. Medonha e má; não enganava pela cara. Olhar muito
para uma ponta de faca, faz mal. Dizia-se: — “Indicada.”
Romão,
hem, gostou dela, audaz descobridor. Pois — por querer também os
avessos, conforme quem aceita e não confere? Inexplica-o a natureza,
em seus efeitos e visíveis objetos; ou como o principal de qualquer
pergunta nela quase nunca se contém. Romão, meão, condiçoado,
normalote, pudesse achar negócio melhor. Mas ele tinha em si uma
certa matemática. E há os súbitos, encobertos acontecimentos,
dentro da gente.
De
namoro e noivado, soube-se pouco. Também da sem-graça cerimônia ou
maneira, de que se casaram, padrinhos Iô Evo e Iá Ó e quiçá os
de Romão e Drá anjos entes. Àquilo o povo assistiu com
condolência? Tais vezes, a gente ao alheio se acomoda — preto no
branco, café na xícara. Cunhãberá via-os não via, sem pensar em
poder entender: anotava-os.
Mas
o casal morou na Rua-dos-Altos, onde o Romão estava bom sapateiro.
Para fora, deviam de ser moderados habitantes. Era um silêncio quase
calado. Comparem-se: o vagalume, sua luzinha química; fatos
misteriosos — a garça e o ninho por ela feito. Iam, consortes,
para os anos que tendo de passar.
Se
como o nem faro e cão — mas num estado de não e sim, rodavam
tantas voltas — juntos, pois. A Drá contra a ocasião de
querer-bem se tapava, cobreando pelos cabelos, nas mãos um pedaço
de pedra. Ela não perdoava a Deus. — “Padece o que é...” —
deduzia Iá Ó. Da dor de feiura, de partir espelho. Iô Evo disse:
que tomava culpa, de ter testemunhado.
Romão,
hem, se botava de nada? Não o deixava ela, enxerente, trabalhar nem
lazer; ralhava a brados surdos; afugentou os de sua amizade. Romão
amava. Decerto ela também, se sabe hoje, segundo a luz de todos e as
sombras individuais. O estudo do mundo.
Todo
o tempo o atanazava, demais de cenhosa, caveirosa, dele, aquela
mulher mandibular. Vês tu, ou vê você? Romão punha-lhe devoção,
com pelejos de poeta, ou coisa ou outra, um gostar sentido e
aprendido, preciso, sincero como o alecrim.
Tinhava-se,
a Drá. Seus filhos não quiseram nascer. Romão imutava-se coitado.
Disso ninguém dava razão: o atamento, o fusco de sua tanta
cegueira? Sapateiro sempre sabe. Ou num fundo guardasse memória
pré-antiquíssima. Tudo vem a outro tempo.
Então,
quando deles no diário ninguém mais se espantava, de vez, houve.
Sortiu-se a Drá, o diabo às artes, égua aluada, e com formigas no
umbigo. Em malefaturas, se perdeu, por outro, homem vindiço, mais
moço. O povo, vendo, condenava-a; de pena do Romão — a tragar
borras. Ele, não, a quem o caso de mais perto tocava. E a Iô Evo
disse: que bom era ela crer, que valia, que dela gostavam... Romão
olhava em ponto, pisava curto, tinham receio de sua responsabilidade.
Nem
o moço de fora a quis mais. Desrazoável, mesmo assim, a Drá de
casa se sumiu, com seus dentes de morder. Romão esperou, sem prazo.
Se esforçava, nesse eixar-se, trincafiava, batia sola. Seguro que,
por meio de Iá Ó, pediu que ela tornasse.
Drá
voltou, empeçonhada, trombuda, feia como os trovões da montanha.
Romão respeitava-a, sem ralar-se nem mazelar-se, trocando pesares
por prazeres, fazendo-lhe muita fidelidade. Fez-lhe muita festa. De
por aí, embora, seresma ela se aquietou, em desleixo e relaxo. Nem
fazia nada, de cabeça que dói. Só empestava. Vivia e gemia —
paralelamente. Chamou-a então Pintaxa o bufo do povo.
Foi,
e teve ela uma grande doença, real, de que escapou pelo Romão, com
seus carinhos e tratos. Sarou e engordou, desestragadamente, saco de
carnes e banhas, caindo-lhe os cabelos da cabeça, nos beiços criado
grosso buço, de quase barba. Era bem a Pintaxa, a esta só
consideração. Cunhãberá jurou-a por castigada. Romão queria
vê-la chupar laranjas, trivial, e se enfeitar sem ira nem desgosto.
Ele envelhecia também. Os dois, à tarde, passeavam. Quem espera,
está vivendo.
Depois,
ele se enfermou, à-toa, de mal de não matar. A Drá alvoroçou o
lugar. Ela chorava, adolorada: teve, de de em si, notícia, das que
não se dão. Pedia socorro.
O
povo e o padre no quarto, o Romão onde se prostrava, decente,
chocho, em afogo, na cama. Ele estava tão cansado; buscava a Drá
com os olhos. Que quis falar, quis, pôde é que foi não. Iá Ó
passava um lenço, limpava-lhe a cara, a boca. Iô Evo mandou-o ter
coragem, somente.
Dando-se,
no Cunhãberá, o fato, de inaudimento.
Romão
por derradeiro se soergueu, olhou e viu e sorriu, o sorriso mais
verossímil. Os outros, otusos, imaginânimes, com olhos emprestados
viam também, pedacinho de instante: o esboçoso, vislumbrança ou
transparecência, o aflato! Da Drá, num estalar de claridade, nela
se assumia toda a luminosidade, alva, belíssima, futuramente... o
rosto de Nhemaria.
Romão
dormido caiu, digo, hem, inteiro como um triângulo, rompido das
amarras. Ele era a morte rodeada de ilhas por todos os lados. Mentiu
que morreu. Deu tudo por tudo.
A
Drá esperançada se abraçou com o quente cadáver, se afinava,
chorando pela vida inteira. Todo fim é exato. Só ficaram as flores.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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