“Quando
Bauer, o de pés ligeiros, se apoderou da cobiçada esfera, logo o
suspeitoso Naranjo lhe partiu ao encalço, mas já Brandãozinho,
semelhante à chama, lhe cortou a avançada. A tarde de olhos
radiosos se fez mais clara para contemplar aquele combate, enquanto
os agudos gritos e imprecações em redor animavam os contendores. A
uma investida de Cárdenas, o de fera catadura, o couro inquieto
quase se foi depositar no arco de Castilho, que com torva face o
repeliu. Eis que Djalma, de aladas plantas, rompe entre os
adversários atônitos, e conduz sua presa até o solerte Julinho,
que a transfere ao valoroso Didi, e este por sua vez a comunica ao
belicoso Pinga. A essa altura, já o cansaço e o suor chegam aos
joelhos dos combatentes, mas o Atrida enfurecido, como o leão que,
fiado na sua força, colhe no rebanho a melhor ovelha, rompendo-lhe a
cerviz e despedaçando-a com fortes dentes, para em seguida
sorver-lhe o sangue e as entranhas — investe contra o desprevenido
Naranjo e atira-o sobre a verdejante relva calcada por tantos pés
celestes. Os velozes Torres, Madri e Avellan quedam paralisados,
tanto o pálido temor os domina; e é quando o divino Baltasar, a
quem Zeus infundiu sua energia e destreza, arremete com a submissa
pelota e vai plantá-la, como pomba mansa, entre os pés do siderado
Carbajal…”
Assim
gostaria eu de ouvir a descrição do jogo entre brasileiros e
mexicanos, e a de todos os jogos: à maneira de Homero. Mas o estilo
atual é outro, e o sentimento dramático se orna de termos técnicos.
Mesmo assim, quando o cronista especializado informa que o Botafogo
“não estava numa tarde de grande inspiração” ou que Zizinho
“se desempenhou com o seu habitual talento”, fico imaginando que
há no futebol valores transcendentes, que nós, simples curiosos,
não captamos, mas que o bom torcedor vai intuindo com a argúcia
apurada em uma longa educação da vista.
Confesso
que o futebol me aturde, porque não sei chegar até o seu mistério.
Entretanto, a criança menos informada o possui. Sua magia opera com
igual eficiência sobre eruditos e simples, unifica e separa como as
grandes paixões coletivas. Contudo, essa é uma paixão individual
mais que todas.
Cada
um tem sua maneira própria de avaliar as coisas do gramado, e onde
este vê a arte mais fina, outro apenas denuncia a barbeiragem ou
talvez um golpe ignominioso. Pelo nosso clube fazemos o possível, e
principalmente o impossível. O jogador nos importa menos que suas
cores, e se muda de camisa pode baixar em nossa estima, à revelia de
toda justiça.
A
estética do torcedor é inconsciente; ele ama o belo através de
movimentos conjugados, astuciosos e viris, que lhe produzem uma
sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes
uma emoção política. Somos fluminenses ou vascos pela necessidade
de optar, como somos liberais, socialistas ou reacionários. Apenas,
se não é rara a mudança do indivíduo de um para outro partido,
nunca se viu, que eu saiba, torcedor de um clube abandoná-lo em
favor de outro.
Finalmente,
a grande ilusão do gol confere alta dignidade à paixão popular,
que não visa a um resultado positivo e duradouro no plano real, mas
se satisfaz com uma abstração: vinte e dois homens se atiram uns
contra outros, e era de esperar que os mais combativos ou engenhosos,
saindo triunfantes, deixassem os demais no campo, arrebentados. Não.
O objeto de couro transpõe uma linha convencional, e o que se chama
de vitória aparece aos olhos de todos com uma evidência corporal
que dispensa a imolação física. Não podemos acusar de
primitivismo aos que se satisfazem com este resultado ideal.
Carlos Drummond de Andrade, in Fala, Amendoeira
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