quinta-feira, 31 de março de 2022

Reforma das persianas

Modesto beneficiário do INPS, X. foi ao banco receber o benefício aumentado de fim de ano. Junto ao guichê, o desconhecido de cara aberta catucou-o:
Dá-me o prazer de aceitar uma pequenina lembrança?
(Mais um chato querendo me impingir um brinde que não servirá para nada e me custará cinquenta cruzeiros.)
O homem estendeu-lhe um desses calendários de bolso, que reduzem o ano às proporções de um dia de folhinha de desfolhar.
(Em breve, a que se reduzirá o tempo?)
Obrigado — e recebeu o presente.
Quem agradece sou eu. Sinto verdadeira satisfação em oferecer calendários a determinados cavalheiros.
(Esse cara é gozado. Por que fica satisfeito com uma coisa dessas? Pensa que está me dando um lote de ações do Banco do Brasil?)
A estampa é bonita — comentou, para dizer qualquer coisa.
Não é? Eu que bolei. A janela aberta para o céu e para o mar. Janela de cobertura, vê-se logo. Repare que não se enxerga nem a praia nem a rua. Só o essencial, o infinito.
(Além do mais, com babados de literato.)
Não preciso chamar a atenção do amigo para os símbolos. Sei que beliscou imediatamente a minha ideia.
(Não precisa chamar, mas está chamando, para o que ele chama de símbolos.)
Perfeito. Vejo pelo anúncio que o senhor é técnico…
Em restauração de persianas e venezianas, e também de gelosias, para servi-lo. Minha especialidade.
Pois quando eu precisar lá em casa, sr. Teopompo, me lembrarei do senhor.
Quero que se lembre sempre de mim. Pode parecer que estou botando banca, mas não é à toa que me chamo Teopompo.
(Matusquela.)
Como assim?
Enviado de Deus, sabe? Foi o professor Nascentes que me explicou. Claro que não me atribuo tamanha importância. Mas um nome assim influi na gente, é responsabilidade. Ele ditou minha profissão.
(É; diagnóstico perfeito.)
Não sirvo para missionário, me faltam as luzes, aquele saber, mas restaurando janelas abro um horizonte para os meus semelhantes, não lhe parece?
E fecha também.
Não diga isso. Quando a persiana desce, está abrindo para o espaço, como direi… interior. O mesmo que fechar os olhos. Fechar os olhos é abri-los para o miolo da gente. É cavar um túnel dentro de nós mesmos. De vez em quando, ou melhor, frequentemente, é ótimo fazer isto.
(Onde que ele quer chegar com esse papo furado?)
Com licença. O caixa vai me pagar.
Toda. Como eu dizia, os homens têm necessidade de usar uma janela, coisa que pouco se faz hoje em dia. Quem é que chega à janela do apartamento para ver, não digo a batida de carro na rua, mas as nuvens, o sol rompendo ou baixando, as gaivotas, os pombos, as cores, os reflexos? Quem vê mais a Lua? O senhor? Duvido. Não leve a mal, mas a gente, o senhor inclusive, só espia o que está a meio metro de distância, nem isso. Hoje tudo é televisão, é cassete, se vê e se ouve por tabela. Troço sem graça.
(E daí?)
Bom, vou me despedir.
Se permite, mais uma palavrinha. Cuide bem de suas janelas.
Terei presente.
No material e no moral. Pessoas de sua idade…
(Minha idade? Que diabo ele tem com isso?)
Como?
É quando se deve olhar mais em redor, reparar bem, para descobrir o que vale a pena, o coração de cada coisa. Janeiro está estourando aí, vamos abrir a janela para janeiro.
Isso todo mundo abre, queira ou não queira.
Falo de um modo particular de abrir. Com jeito, com mansidão. Não escancarar logo, entende? Aos golinhos, não deixando as réguas da persiana se embaralhar, os cordões embolar. Descobrir o ano novo como… posso dizer?
Não sendo contra a segurança nacional, pode.
Como se despe a mulher amada, ou ela se despe pra gente. Valorizando as coisas.
(Até que ele tem ensino.)
Olhe devagar, saboreando a novidade das coisas que embaçaram com o ano velho e voltam a ficar lustrosas no ano novo. Não gaste com o olhar, hem? para que elas durem o ano inteiro. Se é bom, dura até mais. Mas doze meses é prazo regular de duração. Tempo de restaurar a janela.
(Pronto. Entra a mensagem.)
Restaurar a janela é um meio de restaurar a vista e o visto. Não digo isto para vender o meu peixe. Pergunto por perguntar: há muito tempo que não reforma suas persianas?
Francamente, não me recordo.
Então, meu caro, elas devem estar caindo de cansadas. Neste caso…
Agora percebi.
O quê?
O senhor fica junto ao guichê dos aposentados porque acha que eles devem morar em apartamentos adquiridos há mais de trinta anos, portanto com persianas gastas. Fatalmente serão seus clientes.
E haverá mal nisso? Não acha que eu faço bem aos aposentados? A reforma das persianas é um começo de reforma de vida. Vamos, comece bem o ano! Quem lhe fala é Teopompo Cardoso, semienviado de Deus!
X. aprendeu a lição mais simples de ano novo.

Carlos Drummond de Andrade, in De Notícias e Não Notícias Faz-se A Crônica

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