quinta-feira, 31 de março de 2022

Pega lá uma chave de fenda

Domingo. Chegaram, pai e filha, da loja de móveis meia-boca com a escrivaninha branca que ela dizia ser a mágica solução para passar no vestibular de Medicina.
Sentaram-se no chão, abriram a caixa, separaram os parafusos, as peças que pareciam ser todas iguais e um folheto que fingia explicar a montagem.
Ele, como bom pai, ignorava o folheto e começava a montar o móvel sem nenhum bom senso. A menina perguntou se o tampo da mesa não deveria ser o último. Ele percebeu que ela tinha razão e disse que só pegou “pra olhar um negócio”.
Virou-se para a filha e falou:
Lu, vai lá na lavanderia, abre a caixa de ferramentas e pega lá uma chave de fenda pra a gente.
Ela gostava daquele “pra a gente”. Foi. Abriu a caixa com alguma dificuldade, pegou, voltou e se jogou no chão ao lado dele.
Não, filha. Isso é uma chave-inglesa. Troca lá, a chave de fenda tem o cabo amarelo.
Deu uma suspiradinha, foi de novo, voltou, colocou a ferramenta na frente do pai.
Luísa, isso é um alicate.
Caramba, mas você que falou que era a do cabo amarelo.
Caramba, mas confundir uma chave de fenda com um alicate é que nem confundir tremoço com salame. Troca lá.
Bufou. Levantou e saiu andando com o vestido rendado, dando passos bravos como só as mulheres sabem dar. Gritou da lavanderia:
Não tem mais nada de cabo amarelo aqui!
Quê?
(Homens têm cerca de 70% da capacidade auditiva reduzida quando estão concentrados em alguma coisa.)
Não tem mais nada amarelo, pai, só a trena!
Vem cá, então!
Voltou irritada, com a testa franzida, igualzinha à mãe, já metralhando no caminho:
Por que você não levanta e vai? A culpa deve ser dessa sua barriga imensa! A mamãe sempre fala pra você voltar pra natação, mas você não ouve!
Me ouve, Luísa. Eu preciso apertar esse parafuso. Procura na caixa a única ferramenta que tem uma ponta que se encaixa nessa fenda aqui e que depois a gente gira para o parafuso ir afundando.
Pai, por que que você nunca facilita pra mim? Custava você levantar e ir? É a mesma coisa que você faz com os vidros de palmito! Eu sempre te peço pra abrir, e você vem com aquela conversa de “pega uma faquinha, força a tampa e deixa o ar sair!”. Ok, funciona, mas custa me mimar um pouco, que nem os outros pais? Custa ser um pai normal?
Ele fez que não ouviu.
Vai, filha, pega lá. Já, já começa o jogo, e hoje a gente não pode perder de jeito nenhum, que é contra o Inter, jogo de seis pontos.
Eu sei. E o pior é que o Miranda tá suspenso.
Chegou na lavanderia. Bateu o olho na caixa. Localizou a chave de fenda de primeira. Voltou, passou-a às mãos do pai e disse:
Isso é laranja, não amarelo.
Montaram a escrivaninha. Ficou quase boa. Assistiram ao jogo com pipoca, comemoraram o gol de falta.
Passaram-se os meses, e, de fato, ela tinha razão, era só a escrivaninha que faltava para passar no vestibular. Foi morar no interior do estado. O pai morria de orgulho e de saudades.
Um dia, à noitinha, uma das amigas com quem dividia apartamento gritou da cozinha:
Alguma mulher forte se habilita a abrir esse vidro de palmito?
Luísa deu meio sorriso, levantou-se e foi. Não tinha erro: faquinha, ar, tampa aberta. A outra menina, surpresa, disse:
Nossa. Nunca vi isso. Meu pai sempre me deu o vidro aberto.
E ela pensou enquanto voltava para o quarto: “O meu me deu o vidro fechado. O vidro fechado e asas”.

Ruth Manus, in Pega lá uma chave de fenda: e outras divagações sobre o amor

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