sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Poesia de luto: morre em Manaus, aos 95 anos, o poeta Thiago de Mello


Faleceu hoje, na capital amazonense, Thiago de Mello, um dos maiores poetas brasileiros do último século, traduzido em mais de trinta países e autor de obras célebres, como o poema “Estatutos do Homem”.

O poeta esteve em Mossoró em março de 2013, quando foi homenageado pela passagem do Dia Nacional da Poesia (dia 14) e ministrou palestra sobre o fazer poético. O evento aconteceu na Estação das Artes Elizeu Ventania, com a presença de grande público.



Aos 95 anos, Amadeu Thiago de Mello nasceu em Barreirinha, Amazonas, em 30 de março de 1926. Além de tradutor e ensaísta, era um dos poetas mais influentes e respeitados do país, reconhecido como um ícone da literatura regional. A luta política, o lirismo, as relações de família e os amores marcam a sua obra.
Preso durante a ditadura militar (1964-1985), exilou-se no Chile, encontrou-se com Pablo Neruda, de quem se tornou amigo e colaborador. Da amizade veio a decisão de traduzirem os poemas um do outro.
Morou na Argentina, no Chile, em Portugal, na França e na Alemanha. Publicou, entre outros livros, “Acerto de Contas”, “Como Sou”, “Melhores Poemas” e “Amazonas – Pátria da Água”.

Os Estatutos do Homem
(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony

Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Fotos: Elilson Batista/Rapadura Cult
http://rapaduracult.blogspot.com/

Caio César Muniz, in difusoramossoro.com.br

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