sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

A primeira desintoxicação

Carlotta acordou, durante a quarta semana seguida de chuva daquele mês de outubro, na ala de desintoxicação do hospital do condado. Estou num hospital, ela pensou, e foi andando cambaleante pelo corredor. Havia dois homens num quarto grande, que seria ensolarado se não estivesse chovendo. Os homens eram feios e usavam roupas de brim preto e branco. Estavam cheios de manchas roxas e de curativos sujos de sangue. Devem ter sido trazidos da prisão para cá, ela pensou, mas depois viu que também estava usando uma roupa de brim preto e branco e também estava cheia de manchas roxas e de curativos sujos de sangue. Lembrou de algemas, de uma camisa de força.
Era Halloween. A voluntária do AA os ensinou a fazer abóboras. Você enche o balão, ela dá o nó no bico. Depois você cola tiras de papel grudentas em volta do balão todo. Na noite seguinte, quando o seu balão estiver seco, você o pinta de cor de abóbora. A voluntária recorta os olhos, o nariz e a boca. Você pode escolher se quer um sorriso ou uma careta na sua abóbora. Você não pode usar tesoura.
Houve muitas risadas pueris, por causa dos balões escorregadios, das mãos trêmulas deles. Era difícil fazer as abóboras. Se tivessem tido permissão para recortar os olhos, o nariz e a boca, eles teriam recebido aquelas tesouras sem ponta ridículas. Sempre que queriam escrever, recebiam lápis grossos, como na primeira série.
Carlotta se divertiu bastante na ala de desintoxicação. Os homens a tratavam de um jeito galante e encabulado. Ela era a única mulher, era bonita e “não tinha a menor pinta de pinguça”. Seus olhos cinzentos eram claros e seu riso, fácil. Ela havia transformado o seu pijama preto e branco com uma echarpe de um tom bem vivo de vermelho.
Os homens eram em sua maioria beberrões de rua. A polícia os trazia para o hospital ou eles simplesmente vinham por conta própria quando a pensão que recebiam do governo acabava, quando não tinham vinho nem abrigo. O hospital do condado era um ótimo lugar para largar o álcool, eles disseram. Ali, eles te dão Valium, Thorazine, Dilantin se você tiver convulsão. Uma enorme cápsula amarela de Nembutal à noite. Isso não ia durar por muito tempo; logo, logo só iam existir clínicas de desintoxicação “modelo social”, sem droga nenhuma. “Que merda… pra que vir, então?”, perguntou Pepe.
A comida é boa, mas fria. Você tem que pegar a sua própria bandeja do carrinho e levá-la para a mesa. A maior parte das pessoas não consegue fazer isso no início, ou deixa a bandeja cair. Alguns dos homens tremiam tanto que era preciso lhes dar comida na boca, ou eles simplesmente abaixavam a cabeça e comiam direto do prato, como gatos.
Os pacientes recebiam Antabuse depois do terceiro dia. Se ingerir bebida alcoólica no período de setenta e duas horas depois de tomar Antabuse, você passa muito, muito mal. Convulsões, dores no peito, choque, muitas vezes morte. Os pacientes viam o filme sobre o Antabuse todos os dias às nove e meia da manhã, antes da terapia de grupo. Mais tarde, no solário, os homens calculavam quanto tempo faltava para eles poderem beber de novo. Anotavam em guardanapos, com lápis grossos. Carlotta era a única que dizia que não ia mais beber.
O que é que tu bebe, mulher?”, Willie perguntou.
Jim Beam.”
Jim Beam?” Os homens todos riram.
Tu não é bebona nem aqui nem na China, porra. Nós, bebuns, bebe vinho doce.”
Ôôô… e como é doce!”
Que diabo tu tá fazendo aqui, afinal?”
Você quer dizer o que uma boa moça como eu…?” O que ela estava fazendo ali, afinal? Ainda não tinha pensado nisso.
Jim Beam. Tu não precisa de distochicação nenhuma…”
Ah, ela tava precisando sim. Ela tava doidinha quando eles trouxe ela pra cá, tava descendo o braço naquele polícia chinês, o Wong. Depois ela teve um treco dos feio e ficou uns três minuto se debatendo que nem uma galinha de pescoço torcido.”
Carlotta não se lembrava de nada. A enfermeira lhe disse que ela havia batido com o carro num muro. Os policiais a tinham levado para o hospital e não para a prisão porque descobriram que ela era professora, tinha quatro filhos, não tinha marido. E também não tinha antecedentes, o que quer que isso fosse.
Você já teve DT?”, Pepe perguntou.
Já”, ela mentiu. Meu Deus, o que eu estou dizendo… por favor, me aceitem, caras. Por favor gostem de mim, seus vagabundos de olhos remelentos.
Eu não sei o que é DT. O médico também me perguntou isso. Eu disse que sim e ele tomou nota. Acho que tive isso a vida inteira, se isso é, de fato, ter visões de demônios.
Todos eles riam, colando tiras de papel em seus balões. Joe contou que tinha sido convidado a se retirar do Adam and Eve e achado que podia encontrar um bar melhor. Entrou num táxi e gritou: “Para o Shalimar!”. Só que o táxi era uma radiopatrulha e eles o trouxeram para o hospital. A diferença entre um connaisseur e um bebum? O connaisseur tira a garrafa de dentro do saco de papel. Mac, sobre as virtudes do vinho Thunderbird: “Os idiota dos chicano esquece de tirar as meia”.
À noite, depois dos balões e do último Valium, vinha o pessoal do AA. Metade dos pacientes cochilava a reunião inteira, ouvindo o pessoal contar que também tinha estado no fundo do poço. Uma mulher do AA contou que costumava mascar alho o dia inteiro para que ninguém sentisse cheiro de bebida no hálito dela. Carlotta mascava cravos. A mãe dela inalava Vick Vaporub. Tio John vivia com pedaços de pastilha Sen-Sen grudados nos dentes, de modo que ele parecia uma das nossas abóboras, sorrindo.
Carlotta gostava mais da parte final da reunião, quando todos se davam as mãos e rezavam o pai-nosso. Eles tinham que acordar os companheiros e escorá-los como os soldados mortos de Beau Geste. Ela se sentia próxima dos homens quando eles rezavam pedindo sobriedade para todo o sempre.
Depois que o pessoal do AA ia embora, os pacientes recebiam leite, biscoitos e Nembutal. Quase todo mundo ia dormir, inclusive as enfermeiras. Carlotta jogava pôquer com Mac, Joe e Pepe até as três horas da manhã. Sem coringa.
Ela telefonava para casa todos os dias. Seus filhos mais velhos, Ben e Keith, estavam cuidando de Joel e Nathan. Estava tudo bem, eles diziam. Não havia muito que ela pudesse dizer.
Ela ficou sete dias no hospital. Na manhã em que foi embora, havia um cartaz na sala de recreação escura e chuvosa. “Boa sorte! Luta, Lotta!” A polícia tinha deixado o carro dela no estacionamento. Um amassado enorme, um espelho quebrado.
Carlotta entrou no carro e foi até Redwood Park. Ligou o rádio bem alto e se sentou no capô amassado, na chuva. Lá embaixo, brilhava o templo dourado mórmon. A baía estava coberta de neblina. Era bom estar ao ar livre, ouvir música. Ela fumou, planejou o que ia fazer nas aulas da semana seguinte, anotou planos de aula, livros da biblioteca de que iria precisar.
(Justificativas tinham sido dadas na escola. Um cisto no ovário… Benigno, felizmente.)
Lista de compras de supermercado. Ela ia fazer lasanha para o jantar — o prato preferido dos filhos. Massa de tomate, carne de vitela, carne de boi. Salada e pão de alho. Sabonete e papel higiênico provavelmente. Bolo de cenoura para a sobremesa. As listas a tranquilizavam, juntavam os cacos de novo.
Seus filhos e Myra, a diretora da escola, eram os únicos que sabiam onde ela tinha estado. Eles haviam lhe dado bastante apoio. Não se preocupe. Vai ficar tudo bem.
Sempre ficava tudo bem, de alguma forma. Ela era uma boa professora e uma boa mãe, mesmo. A casinha deles transbordava de projetos, livros, discussões, risadas. Todo mundo cumpria suas obrigações.
No fim do dia, depois de lavar a louça e a roupa e corrigir trabalhos, havia a televisão, Scrabble, charadas, cartas ou conversas bobas. Boa noite, meninos! Um silêncio então, que ela celebrava duplicando as doses de bebida, agora sem pedras de gelo maníacas.
Se acontecia de acordarem, os filhos davam de cara com a loucura dela, que, até então, só de vez em quando respingava na manhã. Mas, até onde se lembrava, ela ouvia Keith, tarde da noite, verificando cinzeiros, a lareira. Apagando luzes, trancando portas.
Aquele tinha sido o primeiro encontro dela com a polícia, embora não se lembrasse de nada. Nunca havia dirigido bêbada antes, nunca havia perdido mais do que um dia de trabalho, nunca… Não fazia ideia do que ainda estava por vir.
Farinha. Leite. Ajax. Ela só tinha vinagre de vinho em casa, o que, com o Antabuse, poderia lhe causar convulsões. Escreveu vinagre de maçã na lista.

Lucia Berlin, in Manual da faxineira: Contos escolhidos

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