terça-feira, 28 de setembro de 2021

Acima de tudo o boi

Os chapéus parecem andar sozinhos;
mas a paisagem é ainda mais fantástica
quando chove e cogumelos deslizam
negros no espelho que então se estende

pela Place de la Concorde e se fecham
e desabrocham e correm sabe-se lá para
onde; ver o mundo e entender o tanto
que se esconde é melhor sem folhas

embora nua a noite fique assim tão fria
com seus esqueletos agarrados nas ilhas
de luz dos postes que gentis são guardas
monótonos, sempre de dieta e paletó;

mais divertidas vão as sombras que se
espicham quando o sol cai nas calçadas
onde a bicicleta é ela mais duas rodas
se uma claridade quadrada vem apanhá-la

e uma carroça parece uma carruagem
fantástica; na vizinhança de tais alegrias,
rumino certos pensamentos e monotonias,
o movimento, por exemplo, não é mais

que efeito do vento; o corre-corre, o lusco-
-fusco, o zigzag, ilusão de nada encobre
o certo: que as coisas são preenchimento
momentâneo de um pasto vazio, outros

chamarão deserto, alma, onde assisto
a pequenas euforias flores tabuletas
nuvens de cigarro correria gatos e
sobretudo as máquinas do progresso;

balões gigantes debruçam encantos
e futuras bombas sobre mim, sobre
as chaminés, as noivas e os rabinos;
dos balões pode-se ver minha solidão;

cabeças de edifícios não pensam mas
nelas pensa-se melhor porque daqui,
mais alto que o mais alto galinheiro,
avistamos o teatro inteiro; tudo assim

é pequeno; coisas me perguntam a razão
de elas estarem ali ou então sou eu
que lhes pergunto a razão de estar
aqui, porque é sempre espantoso,

cada coisa vive estranha e sem razão
nenhuma; mas nada supera a liberdade,
poder estar assim, exilado e livre,
doido, sinfônico, chifre-chafariz sobre

a cidade boquiaberta, boi sem igual,
sem causa, sem meta, dos telhados
de Paris ver girar num salto-
-mortal a Terra.

Eucanaã Ferraz

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