quarta-feira, 30 de junho de 2021

Bicho-de-pé

Todo menino tinha bicho-de-pé. Eu tive muitos. Ter um bicho-de-pé era uma felicidade...
Como é provável que a maioria dos meus leitores nem tenha tido a felicidade de ter um bicho-de-pé no dedo do pé e nem mesmo tenha ouvido falar desse minúsculo animal, trato de dar as informações devidas. Trata-se de uma espécie de pulga, nome científico Tunga penetrans, que tem especial predileção pelos dedos dos pés. Esse gosto é específico das fêmeas, que, penetrando sob a pele dos humanos, ali se põem a botar uma enorme quantidade de ovos minúsculos que formam uma bolha transparente, como se fosse de plástico, do tamanho de uma pimenta-do-reino. Essa bolha recebe vulgarmente o nome de “batata”.
A descoberta de uma ou mais batatas nos dedos era sempre um motivo de felicidade, por uma razão que explicarei depois. A extração de uma batata requeria uma habilidade protocirúrgica, ou seja, a manipulação de uma agulha de costura. Procedia-se de forma ordenada: com a ponta da agulha ia-se cortando a pele circularmente à volta da batata até que, completada a operação, espetava-se a mesma no seu centro, marcado pelo ponto negro da Tunga penetrans, para então cuidadosamente proceder-se à conclusão da cirurgia, qual seja, puxar a batata para fora. Sendo bem-sucedida a operação, a batata saía redonda e inteira, sendo exibida triunfalmente como um troféu pela cirurgiã. No seu lugar fica uma pequena cratera, cratera esta que tem uma capacidade enorme de produzir prazer, sob a forma de coceira.
Coceira é uma coisa estranha: dor que dá prazer. Todo mundo já teve frieira — prazer parecido com o da batata. A gente coça até sair sangue. É provável que o mistério do masoquismo encontre sua explicação mais profunda no prazer doloroso da coceira. Meu irmão Murilo, por medo da agulha, não deixava que suas batatas fossem extraídas. Mas tratava de obter o prazer a que tinha direito por meio de um interminável esfrega-esfrega das batatas com uma bucha.
O amor à verdade obriga-me a uma informação desagradável: o bicho-de-pé, para existir, precisa de sujeira. É nos chiqueiros que ele engorda. Há prazeres que necessitam de um ambiente suíno para existir.
O bicho-de-pé, juntamente com as pulgas, eram partes normais da vida, conviviam com os humanos. De noite as pulgas começavam a fazer cócegas, andando sobre a pele, à procura de um lugar propício à sua mordida hematófaga. Mas depois vieram os inseticidas, o BHC, o Neocid, e elas se foram. Hoje só sobrevivem em locais distantes. São animais em perigo de extinção, mas ninguém sai em sua defesa. Os bichos-de-pé mereceriam sobreviver pelo seu uso metafórico na educação sexual. A jovem, com medo da noite de núpcias, perguntou à mãe se doía muito. Ao que a mãe respondeu: “É feito bicho-de-pé. Dói um pouquinho mas depois a gente não quer parar de esfregar...” .

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

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