Docemente, sem perceber, fui levado pelo
sono. No dia seguinte, de madrugada, vi Zorba sorridente, repousado,
vir puxar meus pés.
— Levante-se, patrão — disse ele. —
quero lhe contar meu projeto. Está me ouvindo?
— Estou.
Sentou-se no chão à turca e pôs-se a
explicar como ele instalaria um teleférico do pico da montanha até
o mar; nós faríamos descer assim toda a madeira de que precisávamos
para abrir galerias, e poderíamos vender o resto como madeira de
construção.
Tínhamos decidido alugar uma floresta de
pinheiros que pertencia ao mosteiro, mas o transporte custava caro e
nós não encontrávamos mulas. Zorba havia, portanto, imaginado pôr
em construção um teleférico com um grosso cabo, pilares e polias.
— De acordo? — perguntou ele quando
acabou. — você topa?
— Topo, Zorba. De acordo!
Acendeu o braseiro, pôs a chaleira no
fogo, preparou meu café; jogou-me um cobertor sobre os pés para que
eu não sentisse frio e partiu, satisfeito.
— Hoje — disse ele, — vamos abrir
uma nova galeria. Encontrei um filão daqueles: um verdadeiro
diamante negro!
Abri o manuscrito sobre Buda e penetrei
em minhas próprias galerias. Trabalhei todo o dia, e à medida em
que avançava, ia me sentindo aliviado, sentia uma emoção complexa
— alivio, orgulho e nojo. Mas, me deixava empolgar porque sabia
que, uma vez terminado esse manuscrito, arrumado e guardado, eu
estaria livre.
Tinha fome. Comi umas uvas secas,
amêndoas e um pedaço de pão. Esperava que Zorba voltasse, portador
de todos os bens que alegram os homens — o riso claro, a boa
palavra, as comidas saborosas.
No fim da tarde ele apareceu. Preparou o
jantar, comemos, mas sua cabeça estava longe. Pôs-se de joelhos,
enfiou na terra pequenos pedaços de madeira, estendeu um cordão e
suspendeu, em polias minúsculas, um palito de fósforo; esforçava-se
em achar a inclinação necessária do cordão para que a amarração
toda não desabasse.
— Se há mais inclinação do que é
preciso, ele me explicava, estamos perdidos do mesmo jeito. É
preciso achar a inclinação certa até o menor detalhe. E para isso,
patrão, é preciso vinho e ciência.
— Vinho temos bastante, mas ciência...
Zorba estalou uma gargalhada:
— Você não é bobo, patrão — disse
ele olhando-me com carinho.
Sentou-se para descansar e acendeu um
cigarro. Ele estava de novo de bom humor e sua língua se desatou.
— Se o teleférico tiver sucesso —
disse ele, — poderíamos pôr abaixo toda a floresta; abriríamos
uma serraria, faríamos tábuas, postes, madeirames, ganharíamos
dinheiro à beça.
Depois, meteríamos um veleiro num dique,
botávamos ele em ponto de bala e íamos correr o mundo!
Os olhos de Zorba brilharam, encheram-se
de mulheres distantes, de cidades, luzes, casas gigantescas, de
máquinas, de barcos.
— É que já estou de cabelos brancos,
patrão, e meus dentes já não são mais firmes; não tenho tempo a
perder. Você é jovem, você pode ter paciência. Eu não posso.
Palavra de honra, quando mais eu fico velho, mais eu fico selvagem! E
não me diga que a idade adoça o homem e acalma o seu ardor! Nem
vendo a morte ele estica o pescoço dizendo: “Corte-me a cabeça,
faz favor, para que eu vá para o céu!” Eu, quanto mais passa o
tempo, mais fico rebelde. Não desço a bandeira, eu quero conquistar
o mundo!
Levantou e tirou da parede o seu santuri.
— Venha cá, demônio — disse ele. —
que está você fazendo nessa parede, sem dizer nada? Canta um pouco!
Eu não me cansava de ver com que
precauções e ternura Zorba tirava o santuri dos panos em que o
havia envolvido. Parecia que estava descascando um figo, despindo uma
mulher.
Pousou o santuri em seus joelhos,
debruçou-se sobre ele, acariciou ligeiramente as cordas —
dir-se-ia que o consultava sobre a música que iria cantar, que ele
lhe pedia para acordar, que ele docemente lhe pedia que viesse faze
companhia a sua alma dolorida, fatigada da solidão. Começou uma
canção: não deu certo, abandonou-a, começou outra; as cordas
arranhavam como sentido dores, como se não quisessem. Zorba
apoiou-se na parede, enxugou o suor que subitamente porejou de sua
testa.
— Ele não quer — murmurou, olhando
com esforço para o santuri. — ele não quer.
Guardou-o de novo com cuidado, como se
fosse uma fera e ele tivesse medo de ser mordido: levantou-se
lentamente e recolocou-o na parede.
— Ele não quer — murmurou de novo, —
ele não quer e não podemos forçá-lo.
Sentou-se novamente no chão e colocou
umas castanhas nas brasas, encheu os copos de vinho. Bebeu, bebeu
mais, descascou uma castanha e deu-ma.
— Você compreende, patrão? —
perguntou-me. — eu não. Todas as coisas têm uma alma: a madeira,
as pedras, o vinho que se bebe, a terra onde se caminha... Tudo,
tudo, patrão.
Ergueu seu copo:
— À sua saúde!
Esvaziou o copo e encheu de novo.
— Porcaria de vida! — murmurou ele. —
porcaria! Essa é também como a mãe Bubulina.
Pus-me a rir.
— Ouça o que eu digo, patrão, não
brinque. A vida é como a mãe Bubulina. Ela é velha, hein? Pois
bem, e no entanto não deixa de ser picante. Conhece truques de lhe
fazer rodar a cabeça. Fechando os olhos, parece que você tem nos
braços uma mocinha de vinte anos. Vinte anos ela tem, eu juro, meu
velho, quando você está em forma e apaga a luz. Você vai me dizer
que ela está passada, que levou a vida de pau-para-toda-obra, que
refocilou com almirantes, marinheiros, soldados, pregadores e juízes
de paz. E daí? Que tem isso? Ela esquece depressa, a miserável, não
se lembra de nenhum dos seus amantes, ela volta a ser, sem
brincadeira, uma pomba inocente, uma patinha branca, uma pombinha, e
ela cora, pode crer, ela cora e treme como se fosse a primeira vez. É
um mistério a mulher, patrão! Ela pode cair mil vezes, que mil
vezes se erguerá Virgem. Mas, por que, perguntará? Pois bem, porque
ela não se lembra.
— O papagaio se lembra, Zorba — disse
eu para implicar. — ele grita sempre um nome que não é o seu.
Isso não enraivece você, no momento em que você sobe com ela ao
sétimo céu, ouvir o papagaio gritar: “Canavarro! Canavarro!”
Não sente você vontade de agarrá-lo pelo pescoço e estrangulá-lo?
Pelo menos já era tempo de você ensiná-lo a gritar: “Zorba!
Zorba!”
— Oh! Como você é ultrapassado! —
disse Zorba, tapando os ouvidos com suas grandes patas. — por que
você quer que eu o estrangule? Eu adoro ouvi-lo gritar esse nome. De
noite ela pendura-o em cima da cama, a miserável, e logo que ele nos
vê brincando, com seus olhos que furam a obscuridade, o tolo põe-se
a gritar!
“Canavarro! Canavarro!”... E
imediatamente, eu juro patrão, embora você não possa compreender
isso, você que está apodrecido pelos seus livrecos, eu juro que me
sinto de sapatos de verniz nos pés, com plumas na cabeça, e uma
barba doce com seda e que cheira a âmbar. “Buon giorno! Buona
será! Mangiate macarroni?” eu viro Canavarro, de verdade. Subo ao
meu navio capitânia com mil bocas de fogo e lá vou eu... fogo nas
mechas! E o canhoneiro começa!
Zorba riu às gargalhadas. Fechou o olho
esquerdo e me olhou.
— Você me desculpe, patrão — disse
ele, — mas eu pareço meu avô, o Capitão Alexis, Deus tenha sua
alma! Com cem anos ele se sentava, de tarde, diante da sua porta para
ficar olhando as jovens que iam à fonte. Sua vista estava
diminuindo, ele não distinguia mais as formas. Então ele chamava as
moças: “Diga-me, quem é você?” — Lenio, filha de
Mastrandoni! — “Venha cá um pouco para que eu a toque! Venha,
não tenha medo!” ela engolia o sorriso e se aproximava. Meu avô
levantava sua mão até o rosto dela e encostava os dedos nele,
percorrendo lentamente, com ternura, gulosamente. E lágrimas corriam
de seus olhos. “Por que chora, avô?” perguntei-lhe uma vez.
“Você acha que não há razão para chorar, meu filho, quando eu
estou quase morrendo e deixando atrás tantas moças bonitas?”
Zorba suspirou:
— Ah! Meu pobre avô! Como te
compreendo! Às vezes eu penso comigo mesmo: Ah! Miséria! Se ao
menos todas as mulheres bonitas pudessem morrer ao mesmo tempo que
eu! Mas, as danadas viverão, levarão uma boa vida, homens as terão
em seus braços, irão beijá-las, e Zorba estará transformado em
poeira para que elas passem por cima!
Tirou algumas castanhas das brasas e
descasco-as. Tocamos nossos copos. Por muito tempo ficamos ali,
bebendo e mastigando sem pressa, como dois grandes coelhos, enquanto
ouvíamos lá fora mugir o mar.
Nikos Kazantzakis, in Zorba o Grego
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