quarta-feira, 30 de junho de 2021

A vida é como a mãe Bubulina

Docemente, sem perceber, fui levado pelo sono. No dia seguinte, de madrugada, vi Zorba sorridente, repousado, vir puxar meus pés.
Levante-se, patrão — disse ele. — quero lhe contar meu projeto. Está me ouvindo?
Estou.
Sentou-se no chão à turca e pôs-se a explicar como ele instalaria um teleférico do pico da montanha até o mar; nós faríamos descer assim toda a madeira de que precisávamos para abrir galerias, e poderíamos vender o resto como madeira de construção.
Tínhamos decidido alugar uma floresta de pinheiros que pertencia ao mosteiro, mas o transporte custava caro e nós não encontrávamos mulas. Zorba havia, portanto, imaginado pôr em construção um teleférico com um grosso cabo, pilares e polias.
De acordo? — perguntou ele quando acabou. — você topa?
Topo, Zorba. De acordo!
Acendeu o braseiro, pôs a chaleira no fogo, preparou meu café; jogou-me um cobertor sobre os pés para que eu não sentisse frio e partiu, satisfeito.
Hoje — disse ele, — vamos abrir uma nova galeria. Encontrei um filão daqueles: um verdadeiro diamante negro!
Abri o manuscrito sobre Buda e penetrei em minhas próprias galerias. Trabalhei todo o dia, e à medida em que avançava, ia me sentindo aliviado, sentia uma emoção complexa — alivio, orgulho e nojo. Mas, me deixava empolgar porque sabia que, uma vez terminado esse manuscrito, arrumado e guardado, eu estaria livre.
Tinha fome. Comi umas uvas secas, amêndoas e um pedaço de pão. Esperava que Zorba voltasse, portador de todos os bens que alegram os homens — o riso claro, a boa palavra, as comidas saborosas.
No fim da tarde ele apareceu. Preparou o jantar, comemos, mas sua cabeça estava longe. Pôs-se de joelhos, enfiou na terra pequenos pedaços de madeira, estendeu um cordão e suspendeu, em polias minúsculas, um palito de fósforo; esforçava-se em achar a inclinação necessária do cordão para que a amarração toda não desabasse.
Se há mais inclinação do que é preciso, ele me explicava, estamos perdidos do mesmo jeito. É preciso achar a inclinação certa até o menor detalhe. E para isso, patrão, é preciso vinho e ciência.
Vinho temos bastante, mas ciência...
Zorba estalou uma gargalhada:
Você não é bobo, patrão — disse ele olhando-me com carinho.
Sentou-se para descansar e acendeu um cigarro. Ele estava de novo de bom humor e sua língua se desatou.
Se o teleférico tiver sucesso — disse ele, — poderíamos pôr abaixo toda a floresta; abriríamos uma serraria, faríamos tábuas, postes, madeirames, ganharíamos dinheiro à beça.
Depois, meteríamos um veleiro num dique, botávamos ele em ponto de bala e íamos correr o mundo!
Os olhos de Zorba brilharam, encheram-se de mulheres distantes, de cidades, luzes, casas gigantescas, de máquinas, de barcos.
É que já estou de cabelos brancos, patrão, e meus dentes já não são mais firmes; não tenho tempo a perder. Você é jovem, você pode ter paciência. Eu não posso. Palavra de honra, quando mais eu fico velho, mais eu fico selvagem! E não me diga que a idade adoça o homem e acalma o seu ardor! Nem vendo a morte ele estica o pescoço dizendo: “Corte-me a cabeça, faz favor, para que eu vá para o céu!” Eu, quanto mais passa o tempo, mais fico rebelde. Não desço a bandeira, eu quero conquistar o mundo!
Levantou e tirou da parede o seu santuri.
Venha cá, demônio — disse ele. — que está você fazendo nessa parede, sem dizer nada? Canta um pouco!
Eu não me cansava de ver com que precauções e ternura Zorba tirava o santuri dos panos em que o havia envolvido. Parecia que estava descascando um figo, despindo uma mulher.
Pousou o santuri em seus joelhos, debruçou-se sobre ele, acariciou ligeiramente as cordas — dir-se-ia que o consultava sobre a música que iria cantar, que ele lhe pedia para acordar, que ele docemente lhe pedia que viesse faze companhia a sua alma dolorida, fatigada da solidão. Começou uma canção: não deu certo, abandonou-a, começou outra; as cordas arranhavam como sentido dores, como se não quisessem. Zorba apoiou-se na parede, enxugou o suor que subitamente porejou de sua testa.
Ele não quer — murmurou, olhando com esforço para o santuri. — ele não quer.
Guardou-o de novo com cuidado, como se fosse uma fera e ele tivesse medo de ser mordido: levantou-se lentamente e recolocou-o na parede.
Ele não quer — murmurou de novo, — ele não quer e não podemos forçá-lo.
Sentou-se novamente no chão e colocou umas castanhas nas brasas, encheu os copos de vinho. Bebeu, bebeu mais, descascou uma castanha e deu-ma.

Você compreende, patrão? — perguntou-me. — eu não. Todas as coisas têm uma alma: a madeira, as pedras, o vinho que se bebe, a terra onde se caminha... Tudo, tudo, patrão.
Ergueu seu copo:
À sua saúde!
Esvaziou o copo e encheu de novo.
Porcaria de vida! — murmurou ele. — porcaria! Essa é também como a mãe Bubulina.
Pus-me a rir.
Ouça o que eu digo, patrão, não brinque. A vida é como a mãe Bubulina. Ela é velha, hein? Pois bem, e no entanto não deixa de ser picante. Conhece truques de lhe fazer rodar a cabeça. Fechando os olhos, parece que você tem nos braços uma mocinha de vinte anos. Vinte anos ela tem, eu juro, meu velho, quando você está em forma e apaga a luz. Você vai me dizer que ela está passada, que levou a vida de pau-para-toda-obra, que refocilou com almirantes, marinheiros, soldados, pregadores e juízes de paz. E daí? Que tem isso? Ela esquece depressa, a miserável, não se lembra de nenhum dos seus amantes, ela volta a ser, sem brincadeira, uma pomba inocente, uma patinha branca, uma pombinha, e ela cora, pode crer, ela cora e treme como se fosse a primeira vez. É um mistério a mulher, patrão! Ela pode cair mil vezes, que mil vezes se erguerá Virgem. Mas, por que, perguntará? Pois bem, porque ela não se lembra.
O papagaio se lembra, Zorba — disse eu para implicar. — ele grita sempre um nome que não é o seu. Isso não enraivece você, no momento em que você sobe com ela ao sétimo céu, ouvir o papagaio gritar: “Canavarro! Canavarro!” Não sente você vontade de agarrá-lo pelo pescoço e estrangulá-lo? Pelo menos já era tempo de você ensiná-lo a gritar: “Zorba! Zorba!”
Oh! Como você é ultrapassado! — disse Zorba, tapando os ouvidos com suas grandes patas. — por que você quer que eu o estrangule? Eu adoro ouvi-lo gritar esse nome. De noite ela pendura-o em cima da cama, a miserável, e logo que ele nos vê brincando, com seus olhos que furam a obscuridade, o tolo põe-se a gritar!
Canavarro! Canavarro!”... E imediatamente, eu juro patrão, embora você não possa compreender isso, você que está apodrecido pelos seus livrecos, eu juro que me sinto de sapatos de verniz nos pés, com plumas na cabeça, e uma barba doce com seda e que cheira a âmbar. “Buon giorno! Buona será! Mangiate macarroni?” eu viro Canavarro, de verdade. Subo ao meu navio capitânia com mil bocas de fogo e lá vou eu... fogo nas mechas! E o canhoneiro começa!
Zorba riu às gargalhadas. Fechou o olho esquerdo e me olhou.
Você me desculpe, patrão — disse ele, — mas eu pareço meu avô, o Capitão Alexis, Deus tenha sua alma! Com cem anos ele se sentava, de tarde, diante da sua porta para ficar olhando as jovens que iam à fonte. Sua vista estava diminuindo, ele não distinguia mais as formas. Então ele chamava as moças: “Diga-me, quem é você?” — Lenio, filha de Mastrandoni! — “Venha cá um pouco para que eu a toque! Venha, não tenha medo!” ela engolia o sorriso e se aproximava. Meu avô levantava sua mão até o rosto dela e encostava os dedos nele, percorrendo lentamente, com ternura, gulosamente. E lágrimas corriam de seus olhos. “Por que chora, avô?” perguntei-lhe uma vez. “Você acha que não há razão para chorar, meu filho, quando eu estou quase morrendo e deixando atrás tantas moças bonitas?”
Zorba suspirou:
Ah! Meu pobre avô! Como te compreendo! Às vezes eu penso comigo mesmo: Ah! Miséria! Se ao menos todas as mulheres bonitas pudessem morrer ao mesmo tempo que eu! Mas, as danadas viverão, levarão uma boa vida, homens as terão em seus braços, irão beijá-las, e Zorba estará transformado em poeira para que elas passem por cima!
Tirou algumas castanhas das brasas e descasco-as. Tocamos nossos copos. Por muito tempo ficamos ali, bebendo e mastigando sem pressa, como dois grandes coelhos, enquanto ouvíamos lá fora mugir o mar.

Nikos Kazantzakis, in Zorba o Grego

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