quarta-feira, 23 de setembro de 2020

A sentença para Zé Bebelo

         Rente que nesse resto de tempo decerto cruzaram palavras, que não deram para eu ouvir. Pois porque Zé Bebelo teve ordem de falar, devia de ter tido. A licença. Principiou. Foi discorrendo vagaroso, de entremeado, coisa sem coisa. Vi e vi! ele estava só apalpando o vau. Sujeito finório. Aí o qualquer zunzo que houvesse, ele colhia e entendia no ar ― estava com as orêlhas por isso, aquela cabeça sobrenadando. Já um pouco descabelado. Mas serenou sota, para diante.
...Altas artes que agradeço, senhor chefe Joca Ramiro, este sincero julgamento, esta bizarria... Agradeço sem tremor de medo nenhum, nem agências de adulação! Eu. José, Zé Bebelo, é meu nome: José Rebêlo Adro Antunes! Tataravó meu Francisco Vizeu Antunes ― foi capitão-de-cavalos... Demarco idade de quarenta-e-um anos, sou filho legitimado de José Ribamar Pachêco Antunes e Maria Deolinda Rebêlo; e nasci na bondosa vila mateira do Carmo da Confusão...
Oragos. Para que a tanta sensaboria toda, essas filosofias? Mas porém ele pronunciava com brio, sem as papeatas de em antes, sem o remonstrar nem os reviretes: 
...Agradeço os que por mim bem falaram e puniram... Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem-Bem, Só Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que não estão... Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa que eu queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois, de vós, também. Estou vendo que a gente só brigou por um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim, para deputado... Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive e não tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante! Perdi ― isto é ― por culpa de má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos alheios... De ter sido guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de julgamento, isto é que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos jagunços do Norte são civilizados de calibre! que não matam com o distrair de mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são essas estrebarias... Estou a cobro de desordens malinas. Estimei. Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes, comandantes de seus terços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou de altas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...
Anda que fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao que, de vez, foi grandeúdo!
...Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos. Não vim socolor de disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por um desguardo. Não por má chefia minha! Não devia de ter querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de. Não confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é! tudo que fiz, valeu por bem feito. E meu consueto. Mas, hoje, sei! não devia-de. Isto é! depende da sentença que vou ter, neste nobre julgamento. Julgamento, digo, que com arma ainda na mão pedi; e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta fidalguia... Julgamento ― isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para que? Para não se ter medo! E o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem que não tenho medo... Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço. Perdão, pedir, não peço! que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço, fortemente. Também não posso me oferecer de servir debaixo darmas de Joca Ramiro ― porque tanto era honra, mas não condizia bem. Mas minha palavra dando, minha palavra as mil vezes cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem mais por dizer, espero vossa distinta sentença. Chefe. Chefes.
Digo ao senhor, foi um momento movimentado. 
Zé Bebelo, acabando nas palavras, ali sentadinho ficou, repequeno, pequenininho, encolhido ao mais. Já um pouco descabelado. Era uma bolinha de gente. Fechou-se um homem. Olhei, olhei. Só a gente mal ouvisse o sussurro de todos lá; que foi bom: conheci que era. ― O sujeito machacá! Assopres! ― Arre, maluco é ― mas frege... Capaz que castra garrote com as unhas dos dedos... Não o que Diadorim não disse ― mas ele estava assim por pálido. Vai, vi os chefes. Eles conversaram um circuitozinho, ligeiro. O Hermógenes e o Ricardão ― e Joca Ramiro para eles sorriu, seus compadres. O Ricardão e o Hermógenes ― eles dois eram chouriço e morcela. Só Candelário ― conforme seus conformes, avançante ― Joca Ramiro sorriu para Só Candelário. O jeito de João Goanhá ― richarte. Só Titão Passos espiava desolhadamente, ele tão aposto homem tão bom, tão sério: com as mãos ajuntadas baixo, em frente da barriga ― só esperava o nada virar coisas. Acontecesse o que. Joca Ramiro ia decidir! Sobre o simples, o Hermógenes ainda ia se debruçar, para um dizer em orêlha. Mas Joca Ramiro encurtou tudo num gesto. Era a hora. O poder dele veio distribuído endireito em Zé Bebelo. O quando falou:
O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?
Reconheço ― Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até: ― Reconheço. Reconheço! Reconheço... ― estréques estalos de gatilho e pinguelo ― o que se diz! essas detonações.
Bem. Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?
Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, pois! 
A palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor determine minha ida em modo correto, como compertence.
A falando? 
Que! se ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir comigo, igualmente…
Ao que Joca Ramiro disse! ― Topo. Topo. 
...E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-de-sela arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma munição, mais o de-comer para os três dias, legal...
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes! ― Topo. Topo! 
...Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a pergunta faço! pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns dois, três anos?
Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem... 
Joca Ramiro aí disse, em final. E se levantou, num de repente. Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia ― as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo ― feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria! todo o mundo já estava com cansaço de dar julgamento, e se tinha alguma certa fome. Diadorim me chamou, fomos caminhando, no meio da queleleia do povo. Mesmo eu vi o Hermógenes! ele se amargou, engulindo de boca fechada. ― Diadorim ― eu disse ― esse Hermógenes está em verde, nas portas da inveja... ― Mas Diadorim por certo não me ouviu bem, pelo que começou dizendo: ― Deus é servido... Não sosseguei. Aquele pessoal tribuzava. O encarregado da Sempre-Verde abriu cozinha: panelas grandes e caldeirões, cozinhando de tudo o que vale a valer. Tinha sempre algum batendo mão-de-pilão. Digo, não por nada não, mas pelo exato ser: eu tinha estalando nos meus olhos a lembrança do Hermógenes, na hora do julgamento. De como primeiro ele, sortuno, não se sobressaía, só escancarava muito as pernas, facãozão na mão; mas depois ficou artimanhado, com uma tristeza fechada aos cantos, como cão que consome raivas. E o Ricardão? Esse: uma pesadureza na cara toda, mas, quando esbarrou de cochilar, aqueles olhos grossos, rebolando que nem apostemados, sem bom preceito. Assente, enfim, tudo estava passado, terminado. Estava? Pois, pedi espera a Diadorim, na beira do rego, eu queria cuidar do meu cavalo, dissesse, desarrear e escovar. Dei com o Hermógenes. Dito, a bem, eu cacei onde estava o Hermógenes, tempo parei perto dele. Virando que eu quis ir lá, e escutar, quase quis. Um dizer ouvi: ― ...Mamãezada... Ao que seria? O Hermógenes não era nenhum toleimado, para desfazer na decisão de Joca Ramiro. 
Mamãezada? Mais não ouvi, relembro que não sei direito. Com pouco, Zé Bebelo estava dando as despedidas. Se viu, montado num bom cavalo de duas cores, arreado com sela boa de Minas-Velhas. Deram que levasse carabina, suas outras armas, e cruz-cruz cartucheiras. Aí já tinha jantado. E o bornal com matlotagem. Sobre o cavalo se houve, se upou na sela. Se foi. Saíu em marcha de estrada, sem olhar para trás, o sol na beira. Só o Triol devia de prestar acompanhamento a ele, por o uso de resguardado território, de uma légua. Me deu certa tristeza. Mas a minha satisfação ainda era maior.

Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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