quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Como aprendi que as palavras escritas são portais para o encontro

 

Liana das Neves

Minha família nunca foi de leitores, e eu vivi uma infância longe dos livros. Mas não demorei para encontrar o que as palavras escritas revelam àqueles que constroem uma relação íntima, duradoura com elas. Antes mesmo dos livros, o poder da palavra escrita me foi revelado ainda na infância, com a descoberta de diários íntimos e cartas mantidas em caixas nos armários dos adultos da família — confidências que, quando me atrevi a explorar, me tomaram de um espanto que eu nunca havia experimentado, nem sequer imaginado. Era o encontro com verdades raras, guardadas, nunca ditas.

A partir daquela descoberta, sempre que eu conseguia me distanciar da atenção das pessoas em casa, fuçava guarda-roupas e lia as cartas que minhas irmãs recebiam de namorados e amigos, tanto quanto seus diários. Também vasculhava as caixas de fotos da família e encontrava cartões-postais enviados por gente que eu não conhecia, com declarações e piadas internas de amigos dos meus pais que haviam ficado para trás. As palavras que eu encontrava eram o caminho para atravessar os limites das regras sociais e invadir a intimidade dos outros, onde a verdade era vivida no talo, e da qual eu era testemunha.

Desconfio que essa experiência foi responsável por, na pré-adolescência, me arrebatar com tanta insistência para a prática da leitura e da escrita, como se fosse aquele mesmo espanto que eu buscasse quando me atrevi a jogar com as palavras: escrever não para criar imagens ou fantasias, mas para nomear inquietações que nunca dizemos numa conversa olho no olho. Escrever como quem coloca no mundo o seu estado mais irrevelável.

A minha coleção de contatos imediatos com as palavras escritas tem uma experiência particularmente marcante. Numa manhã de sábado, meu pai, segurando um pedaço de papel, veio até o quarto das minhas irmãs, onde brincávamos livres da obrigação de ir para a escola. Não sei onde minha mãe estava naquele momento — talvez tivesse saído para comprar pão, ou estendia roupas no quintal? Meu pai queria que ouvíssemos o que minha mãe tinha escrito e que ele encontrara. O título do texto era Desabafo. Reproduzo abaixo, sem muita fidelidade, o que me lembro desta carta sem destinatário.

Estou exausta. Tem dias em que não aguento mais lavar roupas, ter que cuidar de três crianças sozinha. Me sinto obrigada a fazer de tudo para ter certeza de que o meu marido vai ficar comigo, quando ele é quem devia me implorar para não sumir. Antes de arrumar um trabalho, eu preparava todos os dias os meus filhos pra escola, e enquanto eles estavam fora eu tinha que limpar toda a casa. E quando eles voltavam era uma bagunça que logo me deixava exausta. Agora que finalmente tenho um emprego, as tarefas se multiplicam, e tudo fica acumulado. À noite começo um terceiro turno de trabalho: estender roupas no varal, tirar roupas do varal, passar as roupas, varrer a casa, passar o pano, limpar o jardim, lavar o banheiro, preparar o jantar e deixar o almoço de amanhã pronto, lavar a louça. Às vezes, nos finais de semana, minhas filhas me ajudam. Mas parece que nenhum alívio dá conta entre segunda e sexta-feira. Tem dia que tudo o que eu mais quero é fugir, sair dessa casa e não voltar nunca mais. Desaparecer.

Nunca tive dúvida de que minha mãe era uma mulher de força, mas em algumas raras ocasiões eu a flagrei chorando. Uma vez, enquanto ela guardava roupas nas gavetas do armário, bati meus olhos nos olhos dela e descobri uma expressão bizarra. Foi assustador ver a minha mãe com um rosto deformado, mas no instante seguinte eu entendi. Não falei nada, não sabia o que dizer, e ela também estava em silêncio, com os olhos o tempo inteiro focados na tarefa de guardar as roupas limpas, imaculadas, alheias às suas lágrimas. A minha sensação naquele momento foi muito parecida com a de ouvir o seu desabafo pela voz do meu pai: eu invadia uma intimidade secreta, que não me pertencia. Não sabia o que a fazia chorar nesses momentos, e os motivos podiam ser os mais diversos, mas eu tinha agora a suspeita de que era exatamente pelo que aquela carta havia nomeado: a exaustão da rotina sufocada por atividades que, se ela não cumprisse, ninguém naquela casa cumpriria, deixando o caos nos engolir.

Mais ou menos naquela época eu e minhas irmãs pegamos o hábito de escrever declarações de aniversário aos nossos pais, uma prática derivada dos cartões de festas que tínhamos que fazer nas escolas — e que eu aproveitei como via de exploração dos segredos não falados. Quando entregava o envelope aos meus pais, eu ficava vendo como reagiam à leitura de palavras óbvias e nunca ditas, como “Eu te amo” ou “Tenho sorte de viver com você”, escritas numa caligrafia de principiante. Eles sempre choravam. Ali, nas expressões e nas lágrimas provocadas pela revelação das palavras, eu sabia que também tinha o poder de atingir um lugar raro e bem-guardado nas pessoas, assim como era atingido ao ler os segredos alheios.

A partir dali, quando comecei a ler histórias e interpretações do mundo nos livros, ou quando me atrevi a escrever, sabia que estava em busca daquele mesmo tipo de revelação, uma busca pela nomeação acolhedora do que é a matéria imediata da nossa mente e das nossas sensações. É uma busca pelo encontro com o nunca dito e muito nosso, e é um esforço por fazê-lo se revelar. E isto só parece ser possível na palavra: o encontro, a revelação e o acolhimento a um só tempo.

Thiago Barbalho, in Ornitorrinco (site)

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