sábado, 30 de novembro de 2019

A mão do Senhor

Bendita seja, Senhor, a mão, que tantas graças em mim tem derramado. Vós me destes progenitores imaculados, que buscaram ensinar-me a não errar os vossos caminhos. Liberalizastes-me cinquenta anos de atividade ao serviço do meu país. Mais de quarenta me permitistes de união com uma companheira, que tem sido a vida de minha vida, a alma de minha alma, a flor sempre viva da vossa bondade no meu lar. Já me deixastes ver a segunda geração de uma descendência que me não deslustra. Ao cabo de tantas dádivas, me vejo agora cercado, tão assinaladamente pela benquerença dos meus concidadãos. E, sobre essa profusão de benefícios, ainda me cabe a dita, sem preço, de ver, no esboçar-se da vitória dos povos contra os déspotas, na confissão do valor dos pequenos pelos grandes Estados, na próxima União das Nações, o amanhecer desses ideais de legalidade e direito, de tolerância e democracia, de paz e fraternidade, que os vossos Evangelhos nos entremostram há mais de 1.900 anos. É muito, Senhor, para quem tão pouco merece, e, por mais dura que me tenha sido a carga do trabalho, por mais que me haja custado o amargor dos trabalhos, nada me resta, nada se apura do meu escasso crédito, comparado à dívida infinita, de que a vossa misericórdia me acabrunha.
Mas, Senhor, se a quem nada tem com que pagar, ainda será lícita a ousadia de pedir (e tal é, para convosco, a condição de todas as criaturas), dai que hoje, daqui, do alto desta solenidade, cujo esplendor só a vós pode ser tributado, juntemos todos as nossas orações às que há quatro anos se elevam aos vossos pés, de todos os cantos do planeta, num oceano de lágrimas, soluços e vidas, pela regeneração da vossa obra inenarrável, desnaturada hoje totalmente com a renascença do antigo paganismo na política anticristã, que baniu a moral, o direito e a verdade, substituídas pelo interesse, pela servidão e pela mentira.
Da vitória do bem não duvidei jamais, porque nunca me vacilou a crença na vossa justiça.
Rui Barbosa, in Antologia

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