sábado, 30 de novembro de 2019

Jorge

Arte: Kaleb de Carvalho

Eu devia ter uns três anos de idade e não me lembro de nada. A família já melhorara de vida, passara da fase que a minha mãe lembra como a fase dos caixotes — móveis improvisados feitos de embalagens de madeira — e ocupava um apartamento melhorzinho, grande o bastante para receber um hóspede, pelo menos um hóspede magro: Jorge Amado. Ele ficou alguns dias na nossa casa, escondido da polícia política. Minha irmã brincava de cabeleireira com seus cabelos, e ele inventou que eu não tinha cara de Luis Fernando, tinha cara de João. Até a última vez em que nos encontramos, me chamou de João. Não foram muitos os encontros. Ele fez mais algumas visitas a Porto Alegre — nunca mais como fugitivo —, a Lúcia e eu levamos nosso convite de casamento para ele e a Zélia no seu apartamento do Rio (minha intenção, confesso, era impressionar a noiva), eu fui visitá-los uma vez no apartamento do Marais, em Paris, depois participei das comemorações dos seus 80 anos, em Salvador, e conheci a casa do Rio Vermelho onde agora estão as suas cinzas.
Desde o seu rápido asilo conosco, ele e meu pai, Erico Verissimo, foram amigos, mas a amizade passou por alguma turbulência no final dos anos 40 e início dos 50, quando a questão do engajamento político dividiu os intelectuais do país. Meu pai contava uma cena dolorosa e cômica que se passara no banheiro de um quarto de hotel no Rio, ele dentro de uma banheira de água quente tentando aliviar uma cólica renal e ao mesmo tempo convencer o Jorge, sentado num banquinho ao lado, que, com toda a sua simpatia pelo socialismo, não podia aceitar o dogmatismo comunista e o totalitarismo, e o amigo tentando convencê-lo da justificativa histórica do stalinismo. Mas continuaram se gostando e se admirando, e acabaram se aproximando politicamente também, engajados no repúdio a qualquer sistema desumano. Quando o lamentável Buzaid, então ministro da Justiça, ameaçou instaurar a censura prévia de livros no Brasil, os dois assinaram um manifesto conjunto contra a ideia que ajudou a matá-la no nascedouro. Eles mantiveram uma correspondência esparsa mas afetuosa até a morte do meu pai. Depois disso, ele e a Zélia e minha mãe telefonavam-se frequentemente — e as mensagens dele sempre incluíam “lembranças para o João”.
Gosto de uma história que contou o pintor Calasans Neto, amigo de Jorge. A mãe do escritor comentou numa roda que, graças a Deus, seu filho nunca se envolvera em política. Depois de um instante de espanto silencioso, alguém disse: “Mas dona Eulália, o Jorge foi deputado constituinte pelo Partido Comunista!”. E dona Eulália: “Ah, um partidinho de nada...”.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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